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SAMBA-ENREDO ROSAS DE OURO 2022
por Bruno Malta
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cura é o enredo da Roseira para o próximo Carnaval.
Trazendo três vertentes distintas (fé, ciência e
samba) que se conectam entre si, a azul e rosa aposta numa
temática de densidade alta e complexa para cessar os males dos
últimos anos.
Apostando na cura, a Rosas de Ouro mira voltar a brigar pelo título – Uma pequena conversa com Deus. “Se eu quiser falar com Deus…tenho que ter mãos vazias ter a alma e o corpo nus…” Olá, meu Deus! Como está? Estranhando eu falar contigo agora, né? Mas não estranhe, pois esta nossa conversa não é para fazer um pedido; vim aqui somente para te agradecer. Sei que a sua bênção e sua proteção eu sempre terei. A minha voz é uma entre milhares, mas sei que você me ouve. Sabe, meu Deus, passamos por momentos difíceis, os dias não foram fáceis, porém sei que já enfrentamos coisas parecidas algumas vezes e sempre conseguimos encontrar um caminho, uma solução. Alguns dizem que é obra de Deus; outros dizem que é a ciência, e os mais sábios dizem que é tudo isso junto, porque a cura de nossos males está nas mãos, nas mentes, na alma e na fé. Mas sabe como é… No sofrimento, somente a cura do mal interessa. “Enquanto todo mundo, espera a cura do mal e a loucura finge que isso tudo é normal…” Às vezes, eu gostaria de ser como você: um Deus! E sair por aí ajudando e curando os males das pessoas. Pois, enquanto estamos curando o outro, ao mesmo tempo estamos nos curando. Pois eu creio que somos um, mas juntos somos um todo e esse todo é que faz a diferença, que faz a energia vibrar mais forte. Afinal, o homem foi destinado à alegria e assim merece ser. Eu queria me sentir um deus, um ser mitológico, um salvador, um orixá…, cercado de mistérios, segredos, carregando meus búzios e cabaças, levando comigo fé, milagre, perdão e cura. “Wá To To A Jú Gbé Rò”. “E o amor é a própria cura, remédio pra qualquer mal cura o amado e quem ama, o diferente e o igual…” Desde os tempos pré-históricos, o homem se preocupava em derrotar as doenças e enfrentar a morte. Este talvez seja o maior desafio da humanidade desde então. E esse desafio, seja ele corporal, espiritual, seja sobrenatural, vai encontrando semelhanças entre várias civilizações. Para vencer esse desafio foram estabelecidos ritos, cerimônias e práticas religiosas, nas quais a participação do indivíduo o libertava dos males. Por meio de rituais extraordinários, o homem sempre procurou se tornar o mediador entre os deuses, a natureza e a si mesmo. Em alguns momentos, tornando-se a própria divindade. Eu queria viajar no tempo, ser sacerdote, xamã, monge ou espírito-guardião. Percorrer templos e santuários. Assistir a cerimônias, sacrifícios, banhar-me em rios sagrados, brincar com o fogo, beber águas purificadas…Queria dançar e cantar ao som de tambores e maracas, invocando o sobrenatural e, através de oferendas, viajar a outros mundos, buscar a liberdade… Ganhar a eternidade! “… E toda raça então experimentará para todo mal a cura.” Eu queria me libertar de mim, poder me transformar em outros; ser uma entidade, bruxo, mago, pajé, feiticeiro. Enfrentar e exorcizar demônios. Encantar e dominar seres mitológicos. Levitar. Entrar em êxtase! Afastar o mal. Caminhar com a ciência, a magia, a feitiçaria, a religião e a natureza. Abrir as florestas, desvendar seus encantos e descobrir seu “ÀŞẸ”. Cercar-me e proteger com fetiches, amuletos, patuás e encantamentos. Queria unir o real e a fantasia; o mágico e o bárbaro e materializar o invisível. “Acima de todas as crenças, ela representa uma proteção, a fé que move montanhas independe de credo ou religião, o equilíbrio existe entre o bem e o mal…” “O homem precisa da fé até para crer na razão.” A fé está muito além dos verbos crer, confiar ou acreditar. Ela independe de religião. Ela é a certeza da verdade; é o inexplicável. E com fé eu queria orar, tocar, benzer, abençoar e curar. A fé nos permite isso. A fé permite até que falsos profetas vendam a cura, ofereçam “rituais mágicos” em troca de dinheiro. A falsa fé enriquece. A fé “opera” milagres. Caridade, amor e doação: a fé nos leva ao bem. Com as mãos eu posso curar, independentemente de ser um rei, um plebeu ou um padre. É a Imposição das Mãos. É o Toque Régio. Com as mãos eu posso benzer, “tornar santo”. É como uma prece poderosa, de força e caridade, pela fé! Mãos unidas em oração, mãos que se fecham em torno de velas. As mãos seguem um ritual de fé que se transforma em um ritual de cura. E seguem procissões, romarias, teatro, música e dança. É a luta do bem contra o mal, e com fé o bem sempre triunfa. Mas a fé também santifica. Ela traz o silêncio, a oração, a paciência e a união, pois “ninguém se salva sozinho”. “[…] São Rafael, saúde dos doentes, rogai por nós… […] São Rafael, cujo nome significa cura, rogai por nós… […] São Rafael, repleto da graça da cura, rogai por nós… […] Amém…” Desde o início, ciência e magia caminharam junto. Misticismo, segredo, religião, astrologia e ciência em um único objetivo: a cura! Pela religião, veremos os orixás e pajés em rituais de folhas; a alquimia, em busca da imortalidade; a medicina, buscando solução para pestes e epidemias; os cientistas, em rituais solitários nos laboratórios em busca de vacinas e remédios. São outros tempos, outros “sacerdotes”, outros rituais. Inclusive rituais de alegria para espantar a tristeza e desesperança de quem está em um hospital. Até que ponto se separa ciência e crença? Diversas descobertas científicas mudaram a história da humanidade e vêm salvando muitas vidas. O ritual da ciência usa outros métodos, entretanto a essência é a mesma: a fé. A fé em Deus, a fé no homem e a fé em si. Tudo é fé! Afinal, a receita para a cura é… A cura! “Pra que nossa esperança…seja mais que um caminho que se deixa de herança.” Sabe, meu Deus, lá no início quando eu disse que queria ser como você é porque eu também queria ser onipresente, estar pertinho abraçando cada cientista, cada médico e cada enfermeiro que lutam bravamente para curar o próximo. Curar é um ato de amor! É esperança! E que cada abraço tenha um desejo de: não desista! Pois nós, sambistas, não desistiremos, afinal o carnaval é um ritual que cura os males… Os males da alma! E agora, eu posso ver minha Roseira novamente em flor, desabrochando, feliz! E como forma de agradecimento, deixo para você, meu Deus, uma Rosa. Porque “Rosas” é a mais linda flor. Venha conhecer! Amém! Samba-Enredo Gravação do Estúdio Samba ao vivo
Compositores: Godoi, Luciano Godoi, Diego Nicolau, André Ricardo, Marcelo Adnet, Douglas Chocolate, Jacopetti, Cacá Mascarenhas, Liso, Antonio Júnior, Hudson Luiz e Andréia Araújo Intérprete: Royce do Cavaco Letra do samba A bênção, meu velho Meu velho, Obaluaê No seu xaxará, a cura Na palha, o seu poder Visto azul e rosa Evoco os ancestrais Peço proteção Começam os rituais… Couro do tambor, coração xamã Água do rio, purificação É fogo que o tempo não apaga Atabaque firma o ponto, rezadeira benze a alma Dança, pajé… é magia da floresta Deixa girar… o povo de Aruanda Amém, pro santo louvar Canta, Roseira, deixa a fé te guiar Apago a luz e acendo vela pra saudar Dobro os joelhos e me curvo para o pai Pai de tantas faces e caminhos Em tuas mãos, entrego o meu destino Deus onipotente, onipresente, salvador Faço minhas preces ao senhor Que a ciência seja a fonte do saber A medicina, esperança pra salvar O povo cantando em oração A alma e o brilho no olhar Entenda que o samba também tem o dom de curar Vem celebrar, é festa no terreiro Tem identidade, meu batuque curandeiro Saudade de te abraçar Rosas, a mais linda flor Num gesto de amor Análise O Rosas de Ouro, sob novo comando na condução plástica, aproveita do recente desejo insano por uma cura para falar sobre o assunto de duas formas distintas que estão unidas na mesma temática de título Sanitatem. A azul e rosa traz a cura através da fé em rituais— como surgiram, quais são, quem exerce e até sobre quem vende falsas promessas — e do ponto de vista da ciência — através da medicina e de seus avanços com destaque especial para os médicos. Por fim, também mostra que para o sambista, o samba é mesmo um artificio salvador na luta contra os dissabores do dia-a-dia. O cenário formado pelo tema é de uma densidade em grande escala e muitos elementos a serem citados, tornando ainda mais complexo o trabalho do compositor. Nesse sentido, a obra escolhida pela agremiação dos autores Godoi, Luciano Godoi, Diego Nicolau, André Ricardo, Marcelo Adnet, Douglas Chocolate, Jacopetti, Cacá Mascarenhas, Liso, Antonio Júnior, Hudson Luiz e Andréia Araújo optou por uma construção focando no lado místico da narrativa apresentada. É como se entre as três principais vertentes do tema, a escolha tem sido por uma só, até para dar uma cara “única” para a defesa do enredo mesmo que isso transmita menos criatividade — ou até espaço reduzido — nos outros setores da proposta. Quando destrinchamos a composição entre letra e melodia, percebemos claramente a proposta de “pesar” o samba. Isso é feito mais nos desenhos melódicos que na letra em si até para causar o efeito “ritual” para quem escuta. E apesar dessa decisão, os pontos primordiais da narrativa são respeitados, mesmo sem a mesma inventividade e riqueza poética em todos os versos. Por conta disso e considerando o contexto idealizado, o resultado, no geral, é bom, mesmo que crie um cenário peculiar. Antes de entrarmos propriamente no balanço, é preciso entender o que propõe a sinopse do enredo. A premissa criada no texto-base é de uma história onde uma pessoa conversa com Deus e durante esse diálogo, sublinha pontos históricos dos rituais e também envolve umbilicalmente fé e ciência, sem nunca esquecer, claro, que Deus, o outro ponto da comunicação, é a principal referência. Já no samba em si, a primeira estrofe conclama Obaluaê, orixá que na Umbanda é considerado como senhor da cura e médico dos pobres, sempre sendo invocado quando alguém está doente. Os primeiros versos são “A bênção, meu velho // meu velho, Obaluaê // No seu Xaxará, a cura // Na palha, o seu poder” que abrem a construção pedindo por essa entidade. Feito o pedido pela entidade, é hora de “se vestir de Roseira”, convocar ancestrais e conclamar rituais. Com isso, surge o melhor momento da obra. O quadrante “Couro do tambor, coração xamã // água do rio, purificação // é fogo que o tempo não apaga // Atabaque firma o ponto, rezadeira benze a alma” é muito bem amarrado na melodia e você sente a força dos desenhos, especialmente no último que por ser tão pesado ganhou um bis preparando a chegada do refrão central. No refrão central, o fragmento é bem realizado e continua a ideia da apresentação dos rituais e de seus executores. Com “Dança Pajé… é Magia da Floresta // Deixa Girar… O povo de Aruanda // Amém, pro Santo Louvar” temos três versos continuando a construção proposta e mantendo a perspicaz solução de apresentar cada vertente religiosa sem citá-la diretamente. O problema é que o “Canta Roseira, deixa a fé te guiar” é extremamente jogado ali. É evidente que o samba, no enredo, é considerado um ritual de cura, mas não agrega na narrativa já que a impressão sentida é de apenas um “upgrade” para alinhar o enredo no carinho da comunidade, faltando um encaixe mais coerente com o conceito. (-0,1 fid.). A segunda estrofe começa com aquele perfil que a sinopse apresenta. Lembra que eu mencionei que a construção da história é de uma conversa de uma pessoa com Deus? Pois bem, agora isso começa a aparecer em evidência. “Apago a luz e acendo vela pra saudar // dobro os joelhos e me curvo para o pai // pai de tantas faces e caminhos // em tuas mãos, entrego o meu destino”. Isso é bonito e bem feito, apesar da repetição do “pai” no verso 2 e 3 que causa o efeito do “meu velho” da primeira estrofe (-0,1 riq.poé). O ponto é que a nova formatação ARREBENTA com a ideia de criar um samba pesado voltado pro ritual. Em momento algum, Deus foi citado na primeira estrofe + refrão central e aí vira o protagonista na segunda estrofe. Um erro de explanação. (-0,1 fid.). Prosseguindo, a letra reforça o protagonismo da figura da divindade com “Deus onipotente, onipresente, salvador // faço minhas preces ao senhor //Que a ciência seja a fonte do saber // A medicina, esperança pra salvar” que amarra bem tudo isso, mesmo que não traga nenhuma associação de imagem nova, apenas liste — com competência! — seu efeito na temática. Só que aí vem o momento mais complicado do enredo no samba. Buscando a “síncope”, o “épico”, o samba abandona tudo e apenas berra o “O povo cantando em oração // a alma e o brilho no olhar // entenda que o samba também tem o dom de curar” que embora bem elaborado cria uma espécie de “novo momento” na apresentação temática. Não é errado, mas confunde quem quer entender o enredo apenas pela letra do samba. Encerrando, no refrão principal, há uma celebração com “Vem celebrar, é festa no terreiro // tem identidade, meu batuque curandeiro” que consegue construir uma associação interessante entre a ideia de reforçar um “ritual” e aderir a Roseira nisso, já que o “tem identidade” relacionado ao batuque, faz referência a bateria da agremiação que se chama Bateria Com Identidade. Antes de prosseguir, parêntese: Fico pensando que a obra toda poderia ter seguido esse caminho e o resultado, possivelmente, seria muito melhor. Fecho parêntese. Mas aí vem o inacreditável “Saudades de te abraçar” que simplesmente não entra em nada. Não vem conversando com o que vem sendo contado e nem agrega nos versos finais “Rosas, a mais linda flor // num gesto de amor” conceito que simplifica a ideia da apresentação desse tema como um gesto de amor da escola para o samba. O “saudades de te abraçar” fica absolutamente sem sentido ali. Não tem necessidade dele existir. É incompreensível (-0,1 adeq.). De todo modo, a obra é um bom samba, talvez melhor do que o enredo poderia oferecer, especialmente por sua divisão peculiar. O que me faz crer, inclusive, que é uma música melhor como samba em si do que samba de enredo. Até por conta do fato de mesmo com pequenos percalços já mencionados, é envolvente e cativa por ter versos emocionantes, gerando uma expectativa positiva para seu resultado na avenida. Muito, é claro, por contar com o experiente intérprete Royce do Cavaco e a tradicional comunidade empolgada da Freguesia do Ó. Nota: 9,6 Falhas: ⦁ Fidelidade: -0,2 ⦁ Riqueza Poética: -0,1 ⦁ Adequação: -0,1 Bruno Malta |
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