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Samba Paulistano
 
2 de novembro de 2021, nº 48

SAMBA-ENREDO GAVIÕES DA FIEL 2022
Recuperando a veia crítica, os Gaviões da Fiel apresentam uma temática que pedirá o fim de três graves problemas da humanidade: a desigualdade social, o racismo e o fascismo. A escola traz o fim destes dissabores do mundo como valores da defesa da democracia, que é o fio condutor da proposta.

Enredo: Basta!
Carnavalesco: Zilkson Reis


Gaviões da Fiel virá com uma crítica social para o próximo desfile

Sinopse do Enredo

ABERTURA — Desumanidade
 
A sociedade em que vivemos é desigual e injusta. À margem da ética e da fraternidade, o mundo se divide entre os que se consideram superiores e os inferiorizados, entre patrões e empregados. Alguns insensíveis esbanjam suas fortunas, enquanto milhares trabalham até a exaustão ou morrem de fome. Toda essa riqueza é fruto do sangue e do suor de incansáveis trabalhadores, que, dia a dia, se entregam a impiedosas jornadas de exploração e desrespeito.

SETOR 1 — Pelo fim da tirania

Sempre existiram os ricos e os pobres, os algozes e suas vítimas. Nefastos imperadores e inquisidores impiedosos condenaram à morte todos que se recusaram a se submeter ao poder absoluto. Usurpadores de terras dizimaram populações pacíficas, na sede de suas conquistas. Senhores de engenho lavraram seus domínios, com a força e o sangue do trabalho escravizado. Soberanos covardes e ditadores facínoras obtiveram suas glórias, espalhando o terror e a intolerância. Exploraram os mais pobres, escravizaram e assassinaram milhares de inocentes, destruíram futuros, mas encontraram seus destinos ao serem vencidos em grandes batalhas e memoráveis revoluções que conquistaram a liberdade. Esses tiranos cruéis estão presos à sentença implacável da história e serão sempre condenados por gerações que saberão das barbaridades que cometeram. A lembrança de seus nomes provoca o horror, a vergonha e o nojo… Genocidas se tornaram exemplos de covardia e crueldade e são considerados a escória da humanidade. Hoje, ocupam seu devido lugar na latrina da história. E assim devem permanecer…

SETOR 2 — A vida que agoniza

A desigualdade, até hoje, não foi vencida e continua a provocar injustiça e opressão. Muitas vidas se perderam e ainda são ceifadas pela violência e pela pobreza. No banquete dos poderosos, não sobra nem migalha que alimente os miseráveis. Malfeitores querem saquear até as reservas indígenas, territórios delimitados por aqueles que ocupam quase a totalidade das terras que pertenciam aos povos originários. Queimam a floresta e as aldeias por ganância. A intolerância não respeita nada, nem o lugar da fé. A estupidez só deixa rastros de destruição e tristeza. O preconceito mata, fecha fronteiras e separa famílias. Nos hospitais lotados, a luta contra o fim da vida acontece todos os dias, em todos os cantos do mundo. E, até hoje, a escravidão persiste… Esconde-se nas lavouras de cana-de-açúcar a amargar a boca de quem trabalha pesado, sol a sol, sem descanso. E a sangrar os corpos pretos de quem apanha e sacode nos camburões. A força dos que vencem a morte é a esperança do recomeço, de um mundo sem desigualdade, sem miséria, sem tortura.

SETOR 3 — Nas Avenidas, lutamos pela vida!

Em nome dos que lutam contra o racismo e já cruzaram essas ruas clamando por liberdade, não pise nesse asfalto berrando palavras de ódio. O que vocês disseminam é crime! Em homenagem às corajosas mulheres que conquistaram a igualdade de direitos, levantamos as nossas bandeiras! Por todos que lutaram contra as ditaduras assassinas de regimes militares… Pelos que morreram pela liberdade… Aos que depuseram suas armas, entreguem flores… Contra a brutalidade e o preconceito, caminhamos juntos lutando pelo respeito às diferenças… Que o futuro seja de educação para todos… Por tudo isso, os Gaviões ocupam as avenidas, pela democracia! Foi preciso muita luta, revoltas e revoluções, para se conquistar a liberdade, a democracia e os sonhos, outra vez. Em 2021, o som que ecoa na Avenida é o canto pela vida. Nenhum passo atrás, nenhum direito a menos. É tempo de reconquistar, de avançar em direção a um futuro sem fome, sem miséria, sem violência. O canto dos Gaviões da Fiel é um aviso aos que alimentam o desrespeito, o racismo e a opressão. E aos que não entenderam que todo poder emana do povo para que possamos construir uma sociedade livre, justa e solidária, diremos: “Saiam do caminho!”. Os Gaviões vão passar e ocupar a Avenida! E os que semeiam o ódio e a mentira não passarão… Basta!

Samba-Enredo

Gravação de estúdio

Samba ao vivo

Não tem

Compositores: Grandão, Sukata, Jairo Roizen, Morganti, Guinê, Xérem, Claudio Gladiador, Ribeirinho, Claudinho e Meiners, Luciano Costa, Felipe Yaw, Marcelo Adnet, Fadico, Júnior Fionda, Lequinho, Fábio Palácio (Mentirinha), Leonel Querino, Altemir Magrão, Marcelo Valente, Sandro Lima e Rodrigo Dias
Intérprete: Ernesto Teixeira

Letra do Samba

Sou eu, um filho dessa pátria-mãe hostil
Herdeiro da senzala Brasil
Refém da maculada inquisição
Axé meu irmão!
O pai de mais um João e de mais um Miguel
Na mira da cega justiça
Que enxerga o negro como réu
Sou eu o clamor da favela
O canto da aldeia, a fome do gueto
Meu punho é luz de Mandela
No samba o levante do novo Soweto
Cacique Raoni da minha gente
Guerreiro GAVIÃO, presente!

Essa terra é de quem tem mais
“conquistada” através da dor
As migalhas que você me oferece
Só aumentam minha força
Pra mostrar o meu valor

Meu lugar de fala, a voz destemida
Cabeça erguida por nossos direitos
Quando o fascismo do asfalto
É opressor a militância por respeito
O ventre das mazelas sociais
Ante ao preconceito vai se libertar
Vidas negras nos importam
O grito da mulher não vão calar
Meu gavião! Chegou o dia da revolução
Onde a democracia desse meu Brasil
Faça o amor cantar mais alto que o fuzil

Escute o meu clamor… óh pátria amada
É hora da luta sair do papel
Basta é o grito que embala o povo
Eu sou Gaviões, sou a voz da fiel

Análise

Com um enredo crítico político-social intitulado como “Basta!”, os Gaviões da Fiel prometem trazer uma mensagem forte e antenada no que acontece no Brasil e no mundo. Para entender a escolha, é preciso relembrar a veia histórica da agremiação. Muito além do Carnaval, a instituição é bastante ativa em protestos que tocam o “dedo na ferida”. Em maio do ano passado, inclusive, esteve presente nas manifestações que lutaram pela democracia. Além de outros protestos políticos em momentos diferentes da história como quando mencionou o famoso caso da merenda que envolvia o promotor Fernando Capez, inimigo de longa data das organizadas em São Paulo. Por fim, essa temática recupera a imagem da escola de samba em si. Ao longo da sua trajetória carnavalesca, a alvinegra levou para a passarela do samba, mensagens que tinham o conceito crítico; As mais chamativas aconteceram nos carnavais de 1992, 1996, 1997 e, principalmente, em 2002 quando se sagrou campeã com Xeque-Mate.

O samba apresentado é fruto de uma junção de duas obras que venceram o concurso interno. O resultado conta com vinte e dois poetas, — Luciano Costa, Felipe Yaw, Marcelo Adnet, Fadico, Júnior Fionda, Lequinho, Fábio Palácio (Mentirinha), Leonel Querino, Altemir Magrão, Marcelo Valente, Sandro Lima, Rodrigo Dias, Grandão, Sukata, Jairo Roizen, Thiago Morganti, Guinê, Xérem, Claudio Gladiador, Ribeirinho, Claudinho e Thiago Meiners — e é certamente uma composição que minimizou os problemas oriundos da disputa e ainda deu uma cara mais forte ao enredo, mesmo que escorregue em alguns trechos.

O início é interessante já que parte da premissa de colocar a narrativa no lamento do negro, mostrando o primeiro dissabor principal do enredo: O racismo. Os versos “Sou eu, um filho dessa pátria-mãe hostil // Herdeiro da senzala Brasil // Refém da maculada inquisição” são uma boa abertura, mesmo com certa redundância com pátria-mãe e Brasil. A partir daí, a sequência “O pai de mais um João e de mais um Miguel // Na mira da cega justiça // Que enxerga o negro como réu” inicia uma excelente associação entre o tema e os fatos da vida cotidiana.

Antes de tudo é importante abrir um parêntese para explicar quem são João e Miguel e o que a morte de ambos significa: O João citado faz menção a João Pedro, garoto negro, morto em São Gonçalo em maio de 2020. O jovem de 14 anos foi assassinado durante uma operação policial no Complexo do Salgueiro, tomando, inclusive, entre os tiros de que foi alvo, um pelas costas, segundo laudo cadavérico da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Um caso claro de brutalidade policial contra um negro. Já Miguel era filho de uma empregada doméstica que sem condições de cumprir isolamento social, precisou levá-lo para o trabalho. A partir disso, através de um pedido da empregadora, a mãe do garoto foi passear com os cachorros da casa e deixou o filho aos cuidados da chefe. Em seguida, surge uma imagem da criança conversando com a patroa no elevador. A mulher, então, aperta um botão e a porta se fecha. O elevador para no 7º andar, mas o menino só desce no 9º. Minutos depois, o jovem escalou uma grade, na área dos aparelhos de ar-condicionado, que fica na parte comum do andar, fora do ambiente do apartamento, e caiu, falecendo em seguida. Para muitos especialistas da área de história, a morte do jovem era um exemplo claro da herança escravista. Fecha o parêntese.

Na sequência, a estrofe traz um novo “sou eu” que representa uma troca de narrativa. “Sou eu, o clamor da favela, o canto da aldeia, a fome do gueto”. São três citações de elementos distintos que não conseguem indicar o caminho do samba a partir dali. É tão notório que há uma série de menções quase que jogadas para complementar. Mandela e o Novo Soweto representam o clamor da favela e a luta do negro, Cacique Raoni representa o “canto da aldeia” e o guerreiro gavião seria a fome do gueto. Por mais que tudo se complemente, não dá para dizer que fica exatamente simples de se entender e há uma redundância evidente (-0,1 fid.). No refrão central, a composição chega no primeiro grave percalço. Os versos “essa terra é de quem tem mais // conquistada através da dor” fazem referência aos poderosos que detém o poder, o problema é que não há conversa com o restante do refrão “As migalhas que você me oferece // Só aumentam minha força // Pra mostrar o meu valor”. As migalhas são oferecidas a quem? Aos índios? Aos negros? Aos dois? Desse modo, não fica claro já que a segunda transição narrativa não é bem feita, deixando margem para dubiedade de interpretações (-0,1 fid.)

A segunda estrofe é aberta com “meu lugar de fala, a voz destemida // cabeça erguida por nossos direitos” que dá mais uma interpretação, já que a expressão “meu lugar de fala” é cabível de utilização por vários movimentos sociais. E, ademais, os versos seguintes também não conseguem traduzir exatamente quem está narrando esse trecho. Pode ser o negro, o índio ou até um torcedor organizado, por exemplo. Só que os erros meio que param por aí. A sequência do samba é praticamente quase incontestável. Tudo é muito bem amarrado, contextualizado e, sobretudo, pertinente ao que está sendo desenvolvido. A composição passa a falar claramente do fascismo, um perigo alarmante na sociedade atual. Para isso, utiliza “Quando o fascismo do asfalto é opressor a militância por respeito”.

Ou seja, é tocado, literalmente, o dedo na ferida. Aí saí de baixo. O fascismo para a agremiação é representado pela polícia que oprime qualquer manifestação democrática, como uma greve de professores ou…um protesto de torcida organizada. Tudo a ver com a história da Fiel Torcida. E é muito por apresentar o cenário que surge outro momento onde o dedo quase escorrega de tanto tocar na ferida. No verso “O ventre das mazelas sociais ante ao preconceito vai se libertar”, a expressão do desvio moral de caráter fica latente, sem que os Gaviões abram mão de denunciar. 

A composição deixa de ser um simples samba de enredo e vira grito de protesto, integralmente. Observem: Se os negros e as mulheres são os mais atingidos pelo preconceito, a escola diz que vidas negras importam e que não vão calar o grito da mulher. Perfeito. Mais perfeito ainda é que os versos seguintes simplesmente conclamam o Brasil ao combate através da agremiação. Com “Meu gavião! Chegou o dia da revolução // Onde a democracia desse meu Brasil // Faça o amor cantar mais alto que o fuzil”, a Torcida Que Samba demonstra que a democracia é a saída para o fim da intolerância contra os negros, as mulheres, as minorias em geral e, claro, para o fim do fascismo. Pronto. Tudo categórico.

Mas tem o refrão principal e é ele quem “atrapalha” um fechamento tão bonito da obra. Com os previsíveis “Escute o meu clamor… óh pátria amada // É hora da luta sair do papel // Basta é o grito que embala o povo //Eu sou Gaviões, sou a voz da fiel”, o samba não diz nada e ainda fica ainda mais redundante. Se a democracia desse Brasil fará o amor cantar mais alto que o fuzil, qual é a justificativa desse “escute o meu clamor…óh pátria amada” ou até do “basta é o grito que embala o povo”? Nenhuma. Apenas para preencher e dar sustentação. Erro de adequação (-0,1 adeq.). Mesmo assim, o resultado, como disse acima, é muito bom e traz a sensação de que a escolha do tema valeu a pena. Se a ideia da agremiação era ter um samba que servisse como um soco na cara no meio de tanta desigualdade no país, conseguiu. Desse modo, a preto-e-branca certamente terá uma composição que orgulhará todos os muitos gaviões nas ruas e avenidas da cidade.

Nota: 9,7

Falhas:

⦁    Fidelidade: -0,2

⦁    Adequação: -0,1
 

 Bruno Malta
Twitter: @BrunoMalta_