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SAMBA-ENREDO COLORADO DO BRÁS 2022
por Bruno Malta
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se afirmar no Grupo Especial, o Colorado do Brás apresenta a
vida e a obra de Carolina de Jesus. É a vida de Carolina em seu
estado bruto com todas nuances dramáticas e de luta que
ela passou.
Tom Farias, autor de um livro sobre Carolina de Jesus, conta um pouco de sua trajetória nesse vídeo
Sinopse do Enredo Chegou o carnaval! De Colorado me enfeitei Para a grande noite. Escolhi o vestido mais bonito, Rodado e Colorido, Bordado de estrelas e estórias. Nos pés, sapatos de cristal, Refletindo minhas andanças; Na cabeça, além do adorno tradicional, Há borboletas de memórias, Que fiz questão de colocar no papel. Eu sou Carolina Maria de Jesus - Nua e crua, escritora de nascença, Negra e poetiza da vida. Calei-me para o sofrimento, Gritei mais alto que pude Para o destino que eu escolhi. Eu sou a filha de Dona Cota, Do “Quilombo do Patrimônio”, Menina Bitita, Da pequena cidade de Sacramento; Sonhadora e curiosa, Chamada por muito de “perguntadeira”, Que mesmo vivendo sem eira e nem beira, Desde pequena, já lia de um tudo E fugindo da realidade do mundo, Ao ler “A Escrava Isaura”, Pela Literatura me encantei. Já carpi roçado na aurora, Enxada nas mãos calejadas, De sol a sol, o ano inteiro. E, descontente com a lida, poema escrevi, “O colono e o fazendeiro.” Fui jovem avoada, não parava em serviço. Em meio aos reboliços, muito vexame passei – Valha-me São Cipriano! Caluniada, “Carolina do diabo”, Até cadeia peguei. Mas nunca emudeci, forte fiquei E as feridas que em minhas pernas ardiam Não foram capazes de cessar o meu caminhar, Pois meu sonho era maior que a dor – Ainda tinha o mundo para conquistar Foi então que, em mim, a vontade de partir Abriu-se feito o nascimento de uma libélula E, encorajada pela ação do tempo, Tomada pela forte intuição do vento, Me deixei levar. Então, em São Paulo, Na Estação da Luz cheguei. A visão pueril que eu fazia desta cidade Logo foi apagada pela dura realidade Que aqui enfrentei. Na via-crúcis de cortiços fétidos, Largada nas marquises dos viadutos, Pelas ruas, sob o sereno das noites frias, Vivendo tal qual uma mendiga, mas Ainda assim, com o peito cheio de esperança. Como uma “Gata Borralheira” fui à luta Queimando feijão em casa de madame. Embora muitas vezes abatida pela fome, A cozinha nunca foi meu lugar predileto; Nas mansões, eu era dada às bibliotecas – Como a do Dr. Zerbini, “o mago do coração” – Onde eu podia me alimentar de letras, Divagando sem notar o passar das horas. Como doméstica escrevia bastante… Não tanto como eu queria, obstante, Dada a correria que a labuta exigia. E meu excesso de imaginação, quem diria?! Me entristecia ao esperar, As migalhas de reconhecimento E a atenção que não vinham, Nem todo mundo queria ouvir a poetisa: Mulher preta e pobre não tinha vez não; Era transparente por ocasião. Vida sofrida, sem tento e nem comida, Fui parar no Canindé — que desilusão! No “Quarto de Despejo” da cidade Lugar sem dignidade, feio de se ver Às margens do rio onde se lavava roupas, O famoso Tietê! Da Igreja de Nossa Senhora do Brasil Fiz meu pequeno casebre de ripas De onde podia se ver a chuva, O sol ou a lua, por toda sorte de vão. E naquele barraco úmido e ambiente vil, Principiei-me no cargo de mãe solteira, Pelas fofoqueiras, mulher de má reputação – Que judiação! Outrora perdi um filho, Contudo, os que vieram depois nasceram sãos. Primeiro vingou João José, Que logo ganhou José Carlos de irmão; Por último, a menina Vera Eunice, Pra dividir a dor e o pão. Foram tempos difíceis que vivi: Pelas ruas catando xepa, lixo e papelão Numa batalha diária pela sobrevivência, Encarando doença e até humilhação. Para dar o mínimo para meus filhos Nunca tive escolha e nem opção; Pois a fome sentida na favela Tinha cor e era amarela, Triste fonte de inspiração Da sucursal do inferno, Que coloquei no meu diário Feito com folhas de caderno vagabundo, Que eu encontrava perdidas no mundo, Ao me agachar pelo chão. Detalhei personagens ordinários: Mulheres escandalosas, submissas, Valentões, pinguços fazendo arruaças, Zombando da própria desgraça, Parindo e vivendo famintos como ratos, Naquele gabinete do diabo. Eu tinha pena dos meus filhos, Convivendo com aqueles cidadãos, À margem da sociedade, Na boca de cena daquele teatro sujo, Que me fazia sentir nojo de tudo, Como objeto fora de uso, Digno de um quarto de despejo. O centro da cidade era diferente, Vendo o conforto daquela gente, Meus devaneios me levavam Para a sala de visitas de um grande palácio, Com seus lustres cristalinos, Seus tapetes de veludo fino E almofadas de cetim. A favela não era lugar pra mim. Não se via jardins tampouco sala de jantar. Mesmo acordada, sonhava em sair de lá, Mas a realidade cruel insistia impedir: Afinal de contas… Não nasci homem, nem branco; Não tive berço de ouro, garanto, Teria que labutar duas vezes mais Para um teto melhor conquistar. Então, Trabalhei feito burro de carga, Sofri preconceito e fome, Criando sozinha meus filhos Com meu sobrenome — Jesus, Que de tanto ouvir minhas preces, Como num conto de fadas, Enviou-me uma espécie de fada madrinha, Que não foi à favela fazer mágica, Transformar ratos em cavalos; Tampouco moranga em carruagem; Foi lá fazer apenas uma reportagem E me encontrou. Audálio Dantas era seu nome, Repórter do popular e renomado Jornal “Folha da noite”. Um jornalista visionário, Que ao se interessar pelo meu diário, Em formato de livro, o publicou. E de repente, de um dia para outro, Eu, que era a escritora improvável da favela Do Canindé, me tornei a “Cinderela”, Ingressando no baile mais aguardado. Paradoxalmente, Mesmo recebida com pompas de fidalguia, Lembrada era, pelo lugar de onde eu vim, Sendo a autora de um best-seller, A mais concorrida e comentada, Defensora de Getúlio Vargas, A “língua de fogo” das mazelas sociais; Ainda assim, a favelada, Aplaudida e apedrejada pela miséria, enfim. Entretanto, não me deixei abater – Sob os olhos da inveja e da soberba Dancei a valsa do sucesso pra valer, E sem perder o compasso, Rodopiei pelo mundo em outras línguas; Banho de loja tomei; Deixei de viver às minguas E numa “Casa de alvenaria” Com as crianças entrei. Estampei capas de jornais do momento Ao lado de artistas de muito talento Que queriam, na verdade, de perto ver A catadora de papelão que “enriqueceu”, A “Mãe Preta” dos negros e ex-favelada Reverenciada no rádio, teatro e TV, Até em filme alemão fui aparecer, Me agarrando às oportunidades que surgiam. Ganhei o título de “Cidadã Paulistana”, Marquei presença vip em concursos de beleza E nos encontros com mestres da literatura – Que a essa altura, na maior gentileza – Faziam questão de me cumprimentar. Nessa época, extasiada, me arrisquei a cantar Para realizar o meu desejo, sem me importar, Com o que iriam dizer e até criticar. As minhas composições vindas de lampejo – A Vedete da favela, O Malandro, entre outras, Autorais do LP “Quarto de despejo”, Que com a minha inconfundível voz fina Fiz questão de lançar. Se antes da fama não era lembrada, Passei a ser a notícia derradeira, Aquela que mais vende jornal. Com meu cartaz de grã-fina, Que a imprensa adorava noticiar, Vieram também as aves de rapina, Querendo tirar proveito do que ganhei, E eu, comprando mais do que precisando, Doando, emprestando e não cobrando, Ingênua, com pouco dinheiro fiquei. E minha vida mudou novamente, De repente, peguei as crianças e fui embora. Recomeçar em Parelheiros. Havia chegado a hora De me reencontrar com Bitita, A menina sonhadora que um dia eu fui. E assim, voltar a plantar e a colher, E com tranquilidade escrever – O que há tempos não fazia mais; E lá viver em paz, até o fim. Hoje estou orgulhosa Vendo a menina Vera calçar lindos sapatos, Enfeitados de conhecimento, Num país que não se importa com o talento, Que não incentiva a cultura, Tampouco a literatura. Caminhos que percorri, Com persistência e vitória E, relembrando cada momento que vivi, Representados de forma notória, Nessa festa sem igual, Me sinto feliz! Vejo que o pé do sapato que faltava, Nessa analogia de Cinderela, Esquecido na escadaria da história, A Colorado do Brás traz agora: O reconhecimento do povo – Algo mais valioso Que alguém pode ganhar! E, se esse foi o meu fim, Você que se pôs a ler certo Pelas linhas tortas da minha vida, Deve estar se perguntando nesse instante: Como isso é possível? É que sempre estarei viva no coração De quem acredita, assim como eu E outras tantas Carolinas, Mulheres negras, mães solteiras Faveladas e periféricas… Na força motriz que me trouxe até aqui E que sirva como um grito de alforria – Coragem! Samba-Enredo Gravação do Estúdio Samba ao vivo Intérprete: Chitão Martins Letra do samba Salve o povo da rua Abra os caminhos, minha história vou contar Sou eu, Carolina de Jesus A voz da pele preta a ecoar Bitita! Livre feito uma borboleta Um quilombo de força e coragem Há fome de esperança e igualdade Menina! Poema de asfalto à luz do luar Em casa de madame pra ganhar o pão Sonhos escritos não foram em vão Lá vou eu pra batalha, não tinha o que comer Fiz verso e poesia retratando o meu viver Quando cheguei a São Paulo sem rumo, nem renda Falei de justiça pra que o mundo entenda Extra! A negra enriqueceu Sou eu… A mãe preta resistência Bordando em meu quarto sentimentos Mazelas que refletem a consciência Nas folhas de cadernos a verdade se traduz Em meu sobrenome uma prece… Jesus Ser a Cinderela… Do meu Canindé A flor mais bela… Quem é que não quer?! Vencer o preconceito…lutar é nosso direito Não duvide da bravura da mulher Samba da favela… Nega batucada A Colorado é a voz da emoção Um grito de coragem pra cantar o amor Respeita a minha cor Análise Homenageando Carolina de Jesus, com o enredo “Carolina, a Cinderela negra do Canindé”, o Colorado do Brás apresentou uma temática que não tem rodeios. É a vida de Carolina direto ao ponto. Posto isso, o samba escolhido é extremamente adequado ao projeto de desfile que a agremiação pretende apresentar. Composto por uma parceria conhecida e vencedora em São Paulo formada por Thiago Sukata, Turko, Maradona, Rafa do Cavaco, Thiago Meiners, Cláudio Mattos, Luan e Valêncio, a obra segue o padrão de duas estrofes e dois refrães que é conhecidíssimo no gênero. Sem grandes inovações, a composição aposta é na correção para encantar com as audições. A primeira estrofe já abre o samba com a narrativa em primeira pessoa, construída pela própria Carolina de Jesus. Na visão dos compositores, é a homenageada quem conta sua história. O início é bonito com “Salve o povo da rua // abre caminhos pro destino abençoar”, mas que fica deslocado (-0,1 fid) pelo que vem na sequência “Sou eu, Carolina de Jesus” que me parecia mais apropriado para a abertura da obra. Posto isso, acho que o samba vai bem nesse momento, com subidas interessantes no “Bitita! Livre feito uma borboleta!” e no “Menina! Poema de asfalto a luz do luar” que é um efeito muito utilizado pela composição. Nele há respiros melódicos, não tornando a audição cansativa, mesmo que perca, em algum momento, em riqueza poética. No refrão central, acho que a obra ganha seu melhor momento. A interpretação do momento da ida de Carolina para São Paulo ganha versos poéticos e dramáticos em uma construção bastante interessante, alternando efeitos de força e lamento. Observem: “Lá vou eu pra batalha (força) // não tinha o que comer (drama) // fiz verso e poesia (força) // retratando o meu viver (drama) // Quando cheguei a São Paulo (força) // sem rumo, nem renda (drama) // falei de justiça (força) // pra que o mundo entenda (drama)”. Ficou bem casado e, acima de tudo, bonito! Na segunda estrofe, o samba volta a utilizar do recurso mencionado acima com “Extra! A negra enriqueceu”, mas peca no problemático uso do “sou eu… a mãe preta resistência” que parece totalmente jogado para completar a estrofe. Afinal, Carolina já tinha se apresentado e de uma forma muito parecido com “A voz da pele preta a ecoar” na primeira estrofe (-0,1 adeq.). A partir daí, a composição tem outra sequência muito bonita que reflete novamente aquele efeito força e drama que mencionei anteriormente. “Mazelas (drama) que refletem a consciência (força) // nas folhas de cadernos (drama) // a verdade se traduz (força)” que transmitem com poesia a mensagem. Por fim, faz excelentes associações com Jesus — sobrenome da homenageada (em meu sobrenome, uma prece) e um trocadilho interessante com o “Ser a” e “Será” “cinderela” que passa bem, apesar de ser melodicamente questionável, por não deixar claro o sentido (-0,1 div.mel). Por fim, os dois últimos versos fecham bem com “Vencer o preconceito… lutar é nosso direito // não duvide da bravura da mulher” que sintetizam a trajetória de Carolina, mesmo com uma rima que não é das mais inspiradas (Preconceito/Direito) o que, infelizmente, prejudica na riqueza poética. (-0,1 riq.poé). Mas o que vem a seguir é que complica bem. O refrão principal, em partes, é extremamente desconexo com o restante da narrativa. Percebam: “Samba da favela, nega batucada // a Colorado é a voz da emoção” simplesmente não se conecta com nada do que vem anteriormente e nem com o que vem depois (-0,1 adeq.). Os últimos dois versos “Um grito de coragem pra cantar o amor // respeita a minha cor”, inclusive, conversam muito mais com os finais da estrofe, tornando o trecho citado bastante “fora de eixo” na construção. Apontados os poréns, também registro que o andamento da obra — excessivamente acelerado — pode tirar muito do peso poético da composição já que os desenhos melódicos, especialmente no refrão central e na segunda parte acompanham o “força” e “drama” citado. É um ponto a se observar. Nota: 9,5 Falhas: ⦁ Riqueza Poética: -0,1 ⦁ Divisão Melódica: -0,1 ⦁ Adequação: -0,2 ⦁ Fidelidade: -0,1 Bruno Malta |
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