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Samba Paulistano
 
5 de novembro de 2021, nº 49

SAMBA-ENREDO ACADÊMICOS DO TATUAPÉ 2022
A Acadêmicos do Tatuapé traz uma nova roupagem para um enredo que já passou por aqui. A história do Café já foi tema e deu título no Anhembi, mas vem renovada pela narrativa de perspectiva original. Com Preto Velho como narrador, o tema ganha ares de africanidade e originalidade.

Enredo: Preto Velho conta a saga do café num canto de fé!
Carnavalesco: Wagner Santos


História do café ganha narrativa de Preto Velho, figura importante da Umbanda

Sinopse do Enredo

Num cantinho do terreiro, com o congá firmado, velas acesas, ervas, arruda, guiné e alecrim tomam o ambiente. Tudo preparado pois o Preto-Velho vai chegar, ogans, yaôs, pais de santo e cambones se preparam para mais uma linda história que o velho vem contar. Ele vem chegando com seu rosário e seu patuá, saravá Preto-Velho.

Ê, Preto-Velho chegou! Preto-velho demora, mas chega…Deus abençoe vocês, meus fios! Zambi, meu pai criador, abençoe esse cazuá! Preto velho veio cachimbar, vamos prosear e que o tempo passe bem devagar. Meus fios, eu sou preto como a noite sem estrelas. Sou velho porque trago em mim as marcas do tempo… e põe tempo nisso, meus fios. E essas marcas são que alumia minha alma. Sou velho e hoje espalho no mundo mensagens de fé, trazendo esperança com minha humildade, deixando sementes de caridade, secando a mentira e regando a verdade. Sou velho e celebro a vida, mas também trago na lembrança todas as dores que eu passei nesse lugar, nessa Terra de meu Deus que me criou. Sou preto, mas a fumaça que sai do meu cachimbo, forma nuvens brancas quando encontra o céu, e pra ajudar vocês meus fios, com muita fé, trago comigo axé e arruda, guiné e café…

EU sou Velho, eu sou preto, eu sou escuro como o ventre da Mãe África, origem de toda a minha ancestralidade. Lá é a fonte de tudo, é o início do mundo! Salve, Zambi, meu “ Pai Maior” e Deus da criação. Num sopro de Zambi, o continente se criou e dele nasceram as árvores, os animais, os mares e o Ayê.

Ayê é Terra. África é Ayê. Terra de montes e vales, rios e mares, de danças e mitos, cheia de herança. Terra dos animais selvagens, onde na savana, leões, búfalos, elefantes e outros mais, ensinaram meus irmãos guerreiros a arte da luta e da sobrevivência, da amizade e lealdade. Eu sou velho como as vidas de meus irmãos antepassados lá da África, lugar que Deus escolheu pra humanidade crescer e o café nascer. Ah, sou preto igual ao café… Ah, o café…

Meus fios, esse café que hoje vocês oferecem pra esse velho preto, surgiu lá no chifre da Mãe África, na Etiópia, e de grão em grão, se espalhou pelo mundo. E pra isso acontecer, Deus Pai Zambi guiou Kaldi, um pastor de cabras até as montanhas de Kaffa, lugar bonito demais e onde nascia umas frutinhas vermelhas nos arbustos selvagens. Ao perceber que as cabras ficavam mais alegres e motivadas ao comerem esse fruto avermelhado foi correndo chamar um monge para conferir a novidade e este julgou que os frutos fossem coisa do demônio. Vê se pode! Levou-os consigo e os atirou no fogo para exorcizá-los. Um aroma delicioso encheu o monastério. O monge teria interrompido a combustão e, como as frutas estavam quentes, derramado água sobre elas. Estava preparado o primeiro cafezinho, meus fios.Logo o monge se convenceu de que algo tão delicioso só podia ser divino. Tomou uma dose e rezou a noite toda, sem sentir sono. E nas tribos desse meu paraíso, do café logo nasceu um ritual. As Senhoras do Café secavam, torravam e faziam pasta com os grãos para que seus guerreiros africanos, meus irmãos, tivessem mais força física e espiritual.

Tão sentindo o cheirinho de café no ar, meus fios? Pois logo esse aroma pegou fama e viajou para outras terras desse mundo. Na Arábia virou bebida sagrada e, com carinho, foi chamada de vinho. Na Turquia o sucesso foi tanto que lá nasceu o Kiva Kan, a primeira cafeteria. E no Egito, não foi diferente, o café conquistou muita gente. Na Holanda, nasceu o primeiro cafezal em terras européias e o café virou fonte de inspirações e idéias. Na Inglaterra, terra da realeza, o café roubou o trono do chá, com toda sutileza. E assim, meus fios, o café vai seguindo o seu caminho, porque a vida melhora depois de um cafezinho, não é verdade? Mas foi na França, lugar de rara beleza, que o Café se tornou uma proeza. O Rei Luís XIV ganha de presente algumas mudas de café de um nobre holandês e, depois desse cultivo, a prosperidade se faz cada vez mais presente na realeza. E tempos depois, meus fios, Paris já tinha as cafeterias mais charmosas da Europa e elas viraram lugar das reuniões de gente que iriam mudar a política e a vida do povo no país. Viva o Café né meus fios? E como chegou o café no Brasil? O café por aqui é igual preto velho. A estrada é longa e velho caminha devagar. É devagar, é devagarinho, mas quem anda com Preto Velho nunca ficou no caminho. Pelas mãos de um fio chamado Francisco de Melo Palheta o café chegou nessa terra sagrada. Mirongueiro igual Preto Velho, ele encantou a mulher do Governador da Guiana Francesa e trouxe pra Belém do Pará, sem pudores, preciosas sementes de café escondidas num ramalhete de flores. Mas foi no Rio de Janeiro que o café vingou e a prosperidade por esse país se espalhou. Brasil ainda era colônia e os ricos fazendeiros ganhavam do Imperador, por causa do cultivo do grão, o título de Barão. E rapidinho a produção cafeeira superou a açucareira e, com a exportação, o café rompeu fronteira. Até apelido ganhou: Ouro Negro, todo mundo assim chamou. Ah, meus fios, mas aí que o caldo entornou. Os barões cada vez mais ricos e a escravidão dos pretos cada vez mais se enraizou. Valei-me, meu Pai!

Nasci e morri na Fazenda, no interior de Minas Gerais. Lá, o café era ouro que meu patrão transformava em anel, as custas do trabalho do meu povo, um trabalho muito cruel. Em troca de tanto esforço, nada recebia, apenas vestia uns trapos no corpo e só pão embolorado comia. E assim, vi muito suor e sangue dos meus irmãos no cafezal. Mãos calejadas da enxada e suja de terra, que sempre exigia mais de nossos corpos suados, de nossos corpos cansados. Era a senzala, era o tronco, era o chicote que arrancava nosso couro, era a lida, era a colheita, que para nós era estafa, mas para o senhor, era Ouro. Quantas vezes, depois que o sol se escondia, lá no fundo da senzala, com os mais velhos aprendia, que o nosso destino no fim, não seria sempre assim… E eu só conseguia suplicar: “Meus orixás, livrai-nos de todo esse mal”. Com o passar do tempo, das ervas eu fazia remédio e, de mironga em mironga, curava as feridas das chibatadas que meus irmãos levavam dos “homi” sem coração. Até os fios das Sinhazinhas (Ê iá iá), eu fazia curador quando eles não tinham mais jeito nas mãos do doutor. E com as folhas do café, eu fazia defumação na nossa senzala, no nosso cativerá, com muita fé. Os brancos me chamavam de negro fedido benzedeiro e nem obrigado diziam, mas meus irmãos agradeciam : “Viva preto velho mirongueiro, viva velho preto curandeiro”. Mas era na Senzala que meu povo negro se aliviava da dor da escravidão. Da Casa Grande se ouvia o som do tambor que contagiava e, com fé e alegria, o nosso povo dançava. Banzé e jongo era o que todo mundo mais gostava. Nossas danças, nossos sons… e isso ninguém escravizava. Ao som do tambor, um canto forte ecoava! Sou preto jongueiro e meu povo eu alegrava! Auê, meu cativeiro! Auê, meu CATIVERÁ! E era a fé que nos mantinham em pé. Enquanto a senzala dormia, minha oração eu fazia. Ajoelhado pedia clemência, Oh, São Benedito, que meu povo seja bendito! Então, meus fios, sempre que vocês tomarem um golinho de café se lembrem que a semente desse grão tem o ciclo da vida que nossos sofridos irmãos escravos plantaram um dia. Chegou a modernização, o café trouxe muitas benfeitorias pra esse chão. Meus fios, nunca vou esquecer da emoção em ver o trem na ferrovia e a luz elétrica que alumiava meu caminho na estrada fria. E bota estrada nisso, meus fios. Eram tantas que a gente até se perdia e tudo pra escoar até os portos o volume de tanto café que a gente produzia. Era tanto trabalho que os barões do café tiveram que importar mão-de-obra de outros lugares desse mundo e com isso os imigrantes italianos aqui chegaram e trabalharam para que o café continuasse sendo a riqueza do Brasil. Era tanta riqueza que até um ramo de café, depois de tanta súplica, foi parar na bandeira do Brasil quando este virou República. E na política, na briga de quem podia mais entre São Paulo e Minas Gerais, ora fazendeiro do café ora fazendeiro do leite, indicava ou se tornava Presidente e isso ficou conhecido como “Política do Café com Leite”. O tempo passou e a economia do mundo levou um choque, a bolsa de Nova York quebrou e o café no Brasil virou estoque, era a chegada da crise de 29. Meus fios, vocês sabiam que o café foi fonte de inspiração pra muitos artistas? Na tela ou no papel, na partitura ou no pincel, é aí que faz parte a coisa mais profunda da vida: a ARTE. A Arte é o que nos tira da realidade e nos leva pra um caminho mais bonito, encantador e cheio de liberdade.

Num cafezal nasci e muitas vezes, torrado pelo sol, pisando na terra vermelha fervente, eu descansava embaixo de um pé de café e de repente a inspiração chegava e eu criava muita cantiga e nem percebia a fadiga. O café era meu irmão! Auê, meu irmão café! E por falar em cantiga, o café foi até tema de ópera na era antiga. Bach, o gênio da música clássica, compôs uma cantata cheia de alegria e beleza e, por aqui, Roberto Carlos, o Rei da nossa música popular, cantou “Café da Manhã” e fez todo mundo suspirar. E teve um pintor que retratou o café com muito amor! Seu nome era Cândido, numa fazenda de café nasceu e seus quadros sobre o grão e a escravidão o mundo conheceu. Até prêmio na Europa Portinari recebeu. Pois é, meus fios. Café é inspiração e os poetas sabem disso. Nos livros, num poema, numa canção, não importa se com amor ou na dor, o café sempre vai ser o melhor amigo do poeta e do escritor. É o líquido da tempestade que gera emoções, não importa a idade. Um gole de café gera poesia: a bebida satisfaz e te leva a um mundo de amor e sonhos enquanto um verso se faz. Um gole de café estimula a sabedoria, pois hoje em dia, em grupo ou solitário, quem nunca aprendeu alguma coisa num café filosófico ou literário?

Do grão ou do filtro, do pó ou do líquido, nas mãos do artesão, nato ou não, o café vira artesanato. E viva a Arte com café, né meus fios? E quem nunca ouviu a frase: “Aceita um café?” ou nunca falou “Um cafezinho, por favor?” pois com café, gente minha, a vida caminha. Um bom café ajuda quem acorda acreditando que tudo vai dar certo e o dia já começa te deixando esperto. Puro é bom demais, sabor inconfundível, com leite vira pingado, “eita” bebida irresistível. Melhor coisa não há do que numa tarde fria de inverno, você ver descer o café quente no bule reluzente. É bom pra saúde, já disse o doutor. Afasta o sono, põe o sangue em movimento, a digestão acelera e faz toda a diferença, então o café é, de fato, uma potência. Delícias se faz com café também: Bolos, tortas, pudim, biscoitos, pães, sorvete, balas e tudo que dele provém. Seja na roça ou na cidade, de manhã ou de tarde, a moda antiga ou da modernidade, de máquina ou de bule, seja expresso ou de pano coador, o que importa é que o café sempre nos preenche de amor. É por tudo isso, meus fios, que esse Preto Velho gosta de café. E se tiver um bolo de fubá, aí é que esse véio vai mais se alegrar. E vocês querem saber mais? Com o café até o futuro se prevê. Os desenhos da borra no fundo da xícara tem significado e aí você escolhe se vai seguir o caminho indicado. Mas meus fios, não adianta procurar um caminho novo se não mudar o jeito de caminhar. E pra isso, sempre que precisar, é só chamar os pretos velhos que a gente vem aqui ajudar.

Nossa missão é ajudar vocês, porque não há mal que crie raiz onde o amor é plantado. E na energia do café, acreditem, todo mal é retirado, com as folhas de café basta um banho para vocês receberem muito axé. Sentir nas mãos uns grãos de café ajuda muito a concentração na hora da meditação. E pra defumação não existe coisa melhor. O cheiro do café clarifica sua mente e a fumaça limpa toda a energia ruim do ambiente. Que as Pretas Velhas minhas companheiras de vida e de espiritualidade, continuem preparando esse grande Jakutá sem faltar a principal oferenda o café e o Bolo de Fubá, preparando a volta para Aruanda nossa morada Divina. Tudo isso a gente aprende na Aruanda, meus fios. Aruanda é lugar de paz, é o paraíso espiritual, paraíso dos pretos. Lá na Aruanda, atravessando a calunga, o mar de Iemanjá, todo negro encontrou a sua liberdade nos braços de Obatalá. Que todos os orixás sempre estejam ao meu lado para que eu possa continuar fazendo caridade e ajudando meus fios a seguir na estrada da verdade e com muita humildade. E pra vocês meus fios, eu visto meu branco, sim senhor! Eu me visto de paz, muito amor e caridade! Mas esse meu branco é o branco de todo dia. É a roupa da minha alma que me dá essa alegria!

Saravá, povo do samba! Pai Velho vai embora, a sineta do céu de Aruanda tá tocando, Obatalá já diz que é hora!

Não fiquem tristes, preto velho volta, tenham fé!

Tenho muito ainda pra prosear com vocês meus fios da Tatuapé!

ADORÊ AS ALMAS!!!

Samba-Enredo

Gravação de estúdio

Samba ao vivo

Não tem

Compositores: Turko, Cláudio Russo, Valter Filho, Maradona, Silas Augusto, Rafa do Cavaco, Luis Jorge, Vitor Gabriel, Gui Cruz, Rafael Falanga, Portuga, Imperial, Luciano Rosa, Reinaldo Marques, Marçal, Willian Tadeu, Fabiano Tennor, Mike Candido, Luiz Fernando Ramos e Dominguinhos do Estácio (in memoriam)
Intérprete: Celsinho Mody

Letra do Samba

Incorporei…velas acesas no sagrado cazuá
Incorporei…mesmo cansado, vou abrir meu Jakutá
Saravá!
Venho de longe, adorê…êê
Velas no congá…adorê…êê
Arruda e Guiné, benze filho de axé
Preto velho conta a saga do café
“Ah meu fio…vamo proseá”
O café é meu irmão…fruto da mãe África
Gira mundo pelo mundo girou
Vendido, torcado, pilado na dor
Chorava a senzala, um canto negro ecoou

Tanacilê… Tanasanã
Ina inê… Tanuotã

Lerê… lerê na labuta do cafezal
Cresce meu Brasil menino
Lerê… lerê, o progresso trilhou
Reluziu ouro negro, meu sinhô

Eita cheiro bom… o vento leva
Essa mironga do amanhã o que será?
Inspira arte… poesia
Emoldurando a cultura popular
Aruanda… Aruanda…
Eu vou me embora… vou nos braços de Yemanjá
Mas deixo a paz e a esperança
Eu vou me embora… vou nos braços de Yemanjá
Adeus meu fio… Oxalá mandou chamar

Saravá, saravá! Preto velho mirongueiro
Saravá! É a luz do meu terreiro
Adorei as almas, irmão café
Odara ê, Tatuapé

Análise

Bicampeão entre 2017 e 2018, o Acadêmicos do Tatuapé busca recuperar o título para a Zona Leste apresentando o enredo “Preto Velho conta a saga do café num canto de fé!” que narra a trajetória do café, importante grão na história mundial, sob o viés do Preto Velho, entidade poderosa na Umbanda que tem, através da bebida, um ritual importante. O samba, fruto de uma junção polêmica de três obras do concurso interno, ganhou as assinaturas de Turko, Cláudio Russo, Valter Filho, Maradona, Silas Augusto, Rafa do Cavaco, Luis Jorge, Vitor Gabriel, Gui Cruz, Rafael Falanga, Portuga, Imperial, Luciano Rosa, Reinaldo Marques, Marçal, Willian Tadeu, Fabiano Tennor, Mike Candido, Luiz Fernando Ramos e Dominguinhos do Estácio e acabou traduzindo o enredo de modo tradicional, mas com algumas ousadias como muitas repetições de expressões, dois refrães no meio do samba colados e ideias de narrativa que se misturam.

O início da obra traz “Incorporei…velas acesas no sagrado cazuá // Incorporei…mesmo cansado, vou abrir meu Jakutá // Saravá! // Venho de longe, adorê…êê // Velas no congá…adorê…êê // Arruda e Guiné, benze filho de axé // Preto velho conta a saga do café” que, de cara, invoca Preto Velho, sua casa e seu altar para baixar no Anhembi e contar a história do café. Aqui, é como se a narrativa pegasse uma espécie de introdução ancestral antes de entrar na saga em si. Um problema desse momento é que o samba repete algumas expressões de forma literal (Incorporei, por exemplo) e de significado (Cazuá, Jakutá/Congá que na prática significam altar, casa e reduto). É como se durante sete versos, tudo gire em círculos. Num enredo tão denso e tão cheio de referências importantes tanto na história quanto na proposta, acho que não precisava de tudo isso para apenas apresentar uma narrativa (-0,1 adeq.). 

No oitavo verso, enfim, começa a viagem. Aí o samba tem um poder de síntese interessante. “Ah meu fio…vamo proseá // O café é meu irmão…fruto da mãe África // Gira mundo pelo mundo girou // Vendido, trocado, pilado na dor // Chorava a senzala, um canto negro ecoou” traduz uma viagem gigantesca pelo café no mundo. Primeiro, nascido na África, na região da Etiópia, o grão se espalhou pelo mundo. Passou pela Turquia, Inglaterra, França, Egito…foi negociado e desembarcou no Brasil. Aqui, enquanto os escravos eram chicoteados, o café era pilão pelo seu pé para servir a nobreza fazendo o choro da senzala ecoar. Esse pedaço todo do enredo ganha uma explicação detalhadíssima na sinopse e foi resumido de forma impressionante pelos compositores.

Um ponto interessante da composição é ter dois refrães centrais; O primeiro com uma espécie de cantiga — escrava para alguns e canto iorubá para outros — serve de conectivo para a história. É como se o Preto Velho tivesse dentro de uma senzala ao cantar “Tanacilê… Tanasanã // Ina inê… Tanuotã” e, desse modo, seguisse pronto para contar o que vem a seguir. Já o segundo traduz o progresso do Brasil durante a República Velha e a política do Café com Leite (São Paulo dá café e Minas Gerais dá leite e assim se alternam no alto poder nacional) de uma forma interessante. “Lerê lerê // Na labuta do cafezal // Cresce meu Brasil menino // Lerê lerê // O progresso trilhou // Reluziu ouro negro, meu sinhô”. É como se no toque da escravidão e do açoite, ali pelos cafezais do interior mineiro, o Brasil crescesse e o “progresso” acontecesse. Um progresso torto, baseado em crimes contra a negritude, mas que dava o então ouro negro. Aqui, o samba vai muito bem no poder de resumo e todo o lamento e evolução é bem traduzido, só faltou trazer como a quebra da bolsa de Nova York — importante para explicar a queda do valor do café no mundo e o fim da política brasileira da alternância de poder (-0,1 adeq.) — foi fundamental nessa saga. 

Na segunda estrofe, a obra vai pra arte, a poesia e, claro, pro cafézinho do fim de tarde. Esse trecho ganha mais um ótimo momento em termos de ideia e poder de apanhado. “Eita cheiro bom… o vento leva // Essa mironga do amanhã o que será? // Inspira arte… poesia // Emoldurando a cultura popular”. A tradução é quase intuitiva. O cheiro do café se espalha e mostra que o amanhã inspirou a arte (Portinari e Bach) e poesia (Roberto Carlos) se tornando ainda mais parte da cultura popular seja por essa via ou até pelo dia-a-dia com frases simples como “aceita um café?” cultuadas por todos Brasil afora. 

No final, Preto Velho começa a dizer um “até logo” evocando Iemanjá e Oxalá rumo a Aruanda. Nos versos “Aruanda… Aruanda… // Eu vou me embora… vou nos braços de Yemanjá // Mas deixo a paz e a esperança // Eu vou me embora… vou nos braços de Yemanjá // Adeus meu fio… Oxalá mandou chamar” que fecha a ideia com uma espécie de retorno a ancestralidade da narrativa para seu ponto de partida. É bacana e bem feito, mas acho que simboliza um pouco como o samba alterna momentos. Trechos gigantescos do enredo ganharam agilidade e ideias amarradas dentro de um conceito curto. Outros exigem muitas repetições de palavras e conceitos. Não há equilíbrio na proposta poética, afetando a construção. (-0,1 adeq.).

Chegando no refrão principal — alvo de polêmica por reutilizar um trecho de samba que já tinha sido derrotado em fase anterior do concurso — existe três problemas que eu considero graves. Bem graves. Primeiro que a virada melódica do fim da segunda para o refrão principal não foi bem alinhada. Fica uma espécie de vazio que não dá respiro e causa estranheza (-0,1 div.mel). Segundo que o samba inteiro é narrado pelo Preto Velho e ele “encerra” sua participação no fim da segunda entregando a narrativa para o Tatuapé. Mas isso não segue uma transição ou até uma ideia de “agora é com vocês”. Ele só dá tchau e o refrão é aberto em outro tempo. Erro imperdoável (-0,1 fid.). 

Em relação aos versos, só me incomoda, de novo, a repetição de palavras. “Saravá, saravá! Preto velho milongueiro // Saravá! É a luz desse terreiro // Adorei as almas, irmão café // Odara ê, Tatuapé” que é uma saudação que acaba sendo cansativa. Afinal, além desses seis Saravás do refrão principal (são dois bis), ainda existe mais um ali no terceiro verso da primeira estrofe. Em sete versos, Saravá aparece em três. Não dá. (-0,1 riq.poé). Quando analisamos o geral da obra, acredito que o samba é melhor do que destrinchado verso a verso. Pela força da melodia, pelo canto da agremiação em si e até pela qualidade do intérprete torna-se muito possível a sua funcionalidade no Anhembi.

Nota: 9,4

Falhas:

⦁    Fidelidade: -0,1

⦁    Riqueza Poética: -0,1

⦁    Divisão Melódica: -0,1

⦁    Adequação: -0,3
 

 Bruno Malta
Twitter: @BrunoMalta_