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Samba Paulistano
 
30 de novembro de 2021, nº 56

SAMBA-ENREDO VAI-VAI 2022
O Vai-Vai retorna para o Grupo Especial, trazendo uma temática que fala sobre o negro que sai da África como um grande e busca ao redor do mundo, mesmo com todos os poréns que sofreu, recuperar sua ancestralidade e manter viva a ligação umbilical criada em seu nascimento. O título do enredo faz referência a um pássaro africano de duas cabeças que tem como significado “retornar ao passado para ressignificar o presente”.

Enredo: Sankofa!
Carnavalesco: Chico Spinoza


Ressignificar o presente buscando inspiração no passado é a proposta de cultura ancestral do Vai-Vai

Sinopse do Enredo

É uma grande missão recuperar a dignidade dos povos africanos, que em tempos antigos saíram soberanos de suas terras — da GRANDE MÃE ÁFRICA, levando sua cultura e valores para o resto do mundo. Estes homens e mulheres tiveram o elo de suas vidas rompido dramaticamente pelo episódio da escravidão. Ao reunir os pedaços de suas memórias, pretendemos reestabelecer esta conexão, unindo seus descendentes-herdeiros com as civilizações ancestrais — aquelas que engendraram a escrita, o conhecimento e a grandiosidade que permeiam a verdadeira história africana. A sabedoria de um destes povos, os AXANTES, e sua mitologia povoada de quimeras, nos ajudarão a realizar este reencontro do negro contemporâneo com as suas origens.

JUSTIFICATIVA

Contam que no mundo antigo não havia histórias e nem o saber, por isso era muito triste viver por aqui. Insatisfeito, ANANSE — o ser mitológico que era homem e também era aranha — foi até os céus para negociar com NYAME, O Grande Criador, o preço de seu baú de histórias e ensinamentos.

Para conceder a ele este tesouro, NYAME lhe fez uma proposta: ele deveria presenteá-lo com quatro seres indomáveis, criaturas encantadas que há muito haviam escapado de seus domínios. Com o negócio realizado, ANANSE — malandro, sagaz e muito esperto, conquistou o baú, que era na verdade uma grande cabaça contendo as dádivas tão desejadas. Maravilhado com o próprio feito, ele desceu do céu numa teia de prata e levou a cabaça para o povo de sua aldeia.

Ao quebrá-la, todas as histórias e ensinamentos divinos se espalharam pela terra, através do uso do ADINKRA, um conjunto de ideogramas cujos símbolos expressam ideias através de provérbios. Sendo utilizado ainda hoje pelos AXANTES, o ADINKRA é um dentre os vários sistemas de escrita da África pré-colonial. Ao longo do tempo, ele foi se desenvolvendo e incorporando aspectos da filosofia, acompanhando o momento histórico de seu povo e absorvendo contos folclóricos e culturais.

O SANKOFA, o pássaro sagrado africano que dá nome ao nosso enredo, faz parte deste curioso e fascinante conjunto. Carregando como significado o ensinamento de que “nunca é tarde para voltar atrás e buscar o que ficou perdido”, este símbolo se tornou o norte dos grandes pensadores do movimento negro moderno, chegando até a nossa Pequena África — O Bixiga.

Então, a figura da AVE NEGRA que curva a cabeça para trás em busca de seu bem mais precioso, conduzirá a narrativa do Grêmio Recreativo Cultural e Social Escola de Samba VAI-VAI para o próximo carnaval. Neste voo em liberdade, através de seus pares, as maravilhosas Adinkras, cantaremos as memórias desta ÁFRICA AXANTE e SOBERANA, onde o pensamento floresceu e a riqueza foi inimaginável. Desfilará um novo horizonte para a atualidade, um espelho para onde se deve olhar e se reconhecer. SOMOS TODOS SOBERANOS! SOMOS VAI-VAI!

SINOPSE

No movimento alado do pássaro negro SANKOFA começa o nosso carnaval. Seu olhar para o passado nos leva ao coração da África: o IMPÉRIO AXANTE, seu berço sagrado e um de nossos mais gloriosos ramos ancestrais, lugar onde o pensamento floresceu e o conhecimento se fez imortal.

Segundo contam os antepassados, este legado admirável estaria ligado à influência divina sobre seu povo, dádiva estabelecida num episódio antológico. Diz-se que ANANSE — o heroico tecelão de contos da mitologia AXANTE, teria conquistado o baú do GRANDE CRIADOR NYAME, uma cabaça encantada, onde estariam guardadas todas as histórias e preceitos primordiais. Quando ANANSE quebrou-a no chão, espalhou toda a sabedoria entre os homens, através de símbolos divinos que se formaram a partir de cada pedaço da cabaça, numa imensa profusão de luz.

A estes símbolos — dos quais o SANKOFA faz parte — damos o nome de ADINKRAS. Eles acompanharam o POVO AXANTE durante toda sua trajetória, sendo base para sua construção social e servindo também para registrar seu aprendizado ao longo do tempo. Para cada momento e função havia uma simbologia; para cada passagem, uma forma carregando uma lição a ser aprendida.
E para que se tenha noção da importância destas figuras, o rei — sempre adornado pelo mais áureo metal — só se apresentava ao povo com os braceletes e mantos que estivessem forjados com as imagens que representassem sua grandeza e liderança; e seu trono — um presente intocável que desceu dos céus — era marcado com os escritos mais nobres, os princípios da criação.

Seus pajens, com espadas e escudos dourados, traziam estampadas em lindas vestes as juras de lealdade ao soberano maior, enquanto os filhos dos reinos vassalos, com seus cabelos trançados em puro ouro, ostentavam em seus corpos as pinturas que ilustravam a unidade e a paz. Havia ainda cavalos berberes, zebras do Congo e mabecos do Zambeze (cães selvagens africanos), que também desfilavam pela corte, ornamentados com artefatos que os identificavam como verdadeiras armas reais.

Estas imagens refletiam o esplendor da ÁFRICA NEGRA, que desabrochava retinta entre o mar e o sahel. Pouco a pouco, as adversidades daquela terra bestial eram domadas pela compreensão dos mais sábios, e essa era transmitida por traços inspirados em feras temidas e flores gentis. Seus guerreiros, homens e mulheres cujos punhos eram tão importantes quanto as adagas e facões, traziam na pele as marcas de uma imensa e lendária bravura; e os povos amigos, aqueles que se irmanavam em cooperação, tinham suas amizades e contribuições seladas por expressões especiais.

Os desenhos, agora, inspiravam convivência e prosperidade, afinal, se era preciso levar o ouro, o pano e a noz para os confins do Saara, e trazer a seda que vinha do oriente, havia sempre o olhar fraterno de um viajante tuaregue, que sobre seu camelo corria o continente, recoberto por seu manto azul safira; e se o mercador vinha da costa, prevalecia sempre a harmonia com a força GÁ — tão acostumada com a água de sal — que tratava de escoar o que valia em espécie. A evolução dependia do outro, do respeito e da aceitação.

A arte, expressão mais sublime de uma sociedade em apogeu, também servia como instrumento para perpetuar estes saberes. Apreciadas em todo mundo, as peças em chifre, esculturas em madeira e colares masbaha, além das famosas joias e de seus caríssimos tecidos, eram marcadas com estas mensagens, geralmente de humildade, persistência e perfeição, as matérias-primas de seus artesãos. Até as máscaras, um tanto curiosas e expressivas, aos poucos deixavam a restrição dos ritos espirituais e convenções políticas para adornar as casas e palácios reais da Ásia e Europa, servindo de porta-vozes para estes valores transcendentais.

E nem mesmo o despertar da maldade e da ganância, sob a forma de uma sinistra fortaleza, foi capaz de apagar o que estava escrito. Se a fúria das correntes da diáspora pretendia destruir os pilares de uma civilização, acabou por semear suas virtudes, carregando para o Novo Mundo as traduções de todos estes segredos junto a cada corpo arrancado de sua terra natal. Estabeleceu-se, neste terrível episódio, uma ligação indissolúvel entre o novo e o original, entre o que se passou e o que havia de se passar.

Foi assim, feito um mistério para aqueles que não eram capazes de decifrar seu significado — que a sabedoria AXANTE sobreviveu ao destino, se misturando com outras negritudes e ligando diferentes corações pelo sentimento de irmandade e resistência. Ao redescobrir as ADINKRAS, nos reencontramos com esta civilização em nós, reconhecendo a influência destes ditos do passado em nossa cultura atual.

Somos filhos desta realeza africana, de “meu rei, minha rainha”, da filosofia de vida transmitida por nossos fundadores ancestrais. Os tambores que falam do lado de lá são os mesmos que ecoam em nossa PEQUENA ÁFRICA — O BIXIGA, cuja simbologia maior é a imagem da COROA e dos RAMOS DE CAFÉ, a ADINKRA do sambista, uma marca que resiste ao tempo e que ao longe se identifica há mais de noventa carnavais.

Volte e pegue, comunidade!

Seja a glória de seu passado, no presente e para sempre, a SARACURA e o SANKOFA!

Samba-Enredo

Gravação do Estúdio



Samba ao vivo


Compositores: Xande de Pilares, Peu, Claudio Russo, Junior Gigante, Jairo Limozini, Silas Augusto, Zé Paulo Sierra e Bruno Giannelli.
Intérpretes: Luiz Felipe

Letra do samba

Voltei!
Porque de fato sempre fui Especial
E o povo vibra ao meu ver no Carnaval
Eu sou soberana!
Brilha, Sankofa, reflete em meu olhar
Toda realeza africana
E vai… voltar ao passado pra se encontrar
Juntar os pedaços da velha memória
Um dia apartados por todo esse mar
Ananse! Malandro quebrou a cabaça encantada
A sabedoria Axante estampada
Num berço de ouro vai se revelar

Preta batucada
Nossa arte, meu irmão
É madeira mais escura
Até na palma da mão
Salve a cultura, no meio da rua
A tradição que resistiu a luta

No alvorecer, entre arranha-céus
Reluz a coroa, meu troféu
Onde o negro não é qualquer um
Onde a raiz se fez escola
“É pé na porta” um bamba do Vai-Vai
É Dona Olímpia! É Seu Livinho!
Nosso Henricão, eterno caminho
Se o “Filme” marcou, eu não estou sozinho
Vem Sankofa, de volta pro seu Ninho

Tambor africano de negra bravura
É o mesmo tambor da Saracura
Quilombo do samba não morre jamais
Eu sou Vai-Vai!


Análise

A tentativa da maior escola da cidade para o próximo Carnaval com o enredo “Sankofa” é mais que exaltar a figura do negro, também reverenciar sua soberania na história da humanidade e, claro, falar de seus bambas e sua história. É como se a Saracura para falar do negro, precisasse também falar de si mesma. Uma espécie de resgate com auto-afirmação que fez muito bem a atual imagem, um tanto combalida, da agremiação.

Nesse sentido, a proposta, apesar de alguns momentos onde tudo parecer ser uma mistura sem o devido encaixe, acabou gerando um samba que se não é perfeito, é forte, cheio de referências interessantes e que, primeiro, ainda traz o estilo necessário para abrir o sábado. A obra assinada por Xande de Pilares, Peu, Claudio Russo, Junior Gigante, Jairo Limozini, Silas Augusto, Zé Paulo Sierra e Bruno Giannelli traz um estilo muito único de interpretar a temática desde a disputa do samba. Ao contrário de muitos outros concorrentes, a obra tentou criar correlações de cenários entre o momento ancestral do tema — se aproveitando de deixas interessantes da sinopse como a menção a malandragem de Ananse — e o Vai-Vai com sua história e seus baluartes.

O início é bem forte e traz uma correlação interessantíssima com “Voltei, porque, de fato, sempre fui especial e o povo vibra ao me ver no Carnaval, eu sou soberana”. Se a ideia do enredo é resgatar o passado para reconstruir o presente, nada melhor que começar a história com voltei. Mas aí que entra a sacada inteligente dos compositores ao longo da obra. Esse “voltei” também faz evidente menção ao próprio Vai-Vai e o retorno ao Especial. Inteligente e simples. Tudo em simultâneo. Logo depois, o samba mergulha mais na parte ancestral com o “Brilha Sankofa // reflete em meu olhar //toda a realeza africana” e “e vai…voltar ao passado para se encontrar // juntar os pedaços da velha memória // um dia apartados por todo esse mar” em sequência. A questão aqui é que, nesse momento, a correlação com a escola é deixada de lado, o que atrapalha a construção narrativa. Em adequação ao tema, tudo bem, mas a questão é que tudo fica um tanto confuso nesse trecho sem criar unidade com o que vem anteriormente e, além disso, fica ainda mais deslocado pensando no que vem a frente. (-0,1 fid.)

Os últimos três versos da estrofe fecham com “Ananse! Malandro quebrou a cabaça encantada // sabedoria axante // estampada num berço de ouro vai se revelar” que continua a ideia apresentada anteriormente, sem grandes problemas de fidelidade. Apenas a melodia do primeiro verso da tríade que acaba isolada no restante da divisão, sem qualquer categoria de conexão com o que vem antes e depois. É meio que um ponto único. (-0,1 div. mel).

Chegado o refrão de meio, o samba fica praticamente irretocável. Os versos desse trecho e da segunda estrofe são incontestáveis já que vem, em todo tempo, criando o cenário de correlações que já fora mencionado. A Saracura se torna a protagonista do seu próprio Sankofa e não há mais ressalvas. Começando pelos versos “Preta batucada, nossa arte, meu irmão // é madeira mais escura, até na palma da mão // salve a cultura no meio da rua // A tradição que resistiu a luta”. Nesse ponto, os compositores criaram a correlação da arte do esplendor da África Negra que virou adorno até nas casas e palácios reais da Ásia e da Europa com a arte do samba da Saracura. Sem ficar pedante, sem ficar forçado. Apenas relacionado os dois cenários. Demais!

Na segunda estrofe, esse caminho também é apresentado de modo similar. Durante a viagem de volta as raízes, a Sankofa do Vai-Vai encontra um Bixiga diferente daquele de antes, mas com sua essência preservada. “No alvorecer entre arranha-céus // reluz a coroa, meu troféu”, mostra que apesar de estar fincada no meio da Selva de Pedra, a casa da Saracura segue lá brilhando firme e forte e mostrando ser lá que o negro se sente importante com “onde o negro não é qualquer um // onde a raiz se fez escola”. No fim, começa a retornar o passado para recriar o futuro. Com as citações aos bambas Dona Olímpia, Seu Livinho, Henricão e Geraldo Filme, é como se a viagem encontrasse suas referências e, finalmente, estava pronto para retornar e reconstruir seu ninho. Perfeito!

O refrão principal, no entanto, apresenta menos brilho. Apesar da valentia e da perfeita conexão com a ideia do início e da segunda estrofe — repare a ideia de tornar a parte ancestral (tambor africano) e o Vai-Vai (mesmo tambor da Saracura) — do “tambor africano, de negra bravura // é o mesmo tambor da Saracura // quilombo do Samba não morre jamais // eu sou Vai-Vai”, a sensação é de que o samba poderia ter sido mais explosivo ali. Faltando uma melhor unidade na construção da letra, traz a impressão de que o melhor já tinha passado (-0,1 riq. poé). De todo modo, no conjunto, fica claro que retornando a elite, a Escola do Povo entrega uma composição inspirada e com a garra que era necessária. Um ponto adicional que me chama especial atenção é como a composição parece feita para o balançar característico das bandeirinhas da torcida da agremiação no Anhembi. Essa união promete!

Nota: 9,7

Falhas:

⦁    Fidelidade: -0,1

⦁    Riqueza Poética: -0,1

⦁    Divisão Melódica: -0,1

Bruno Malta
Twitter: @BrunoMalta_