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Coluna do Rixxa Jr

O CARNAVAL NA TV BRASILEIRA

 . 1º Capítulo: Os Primórdios (anos 60)
 . 2º Capítulo: Do Preto e Branco o Homem Coloriu (anos 70)
 . 3º Capítulo: A Era da Televisão – Anos 80 (1ª Parte - 1980-1983)
 . 4º Capítulo: Aconteceu, virou Manchete – Anos 80 (2ª Parte: 1984-1987)

19 de fevereiro de 2020, nº 41

CAPÍTULO 4 – ACONTECEU, VIROU MANCHETE – Anos 80 (2ª parte)
por Gerson Brisolara

Aconteceu, virou Manchete por aí
É a Cabuçu que homenageia
O menino de Kiev na Sapucaí (...)
Oh senhor Adolpho Bloch
Ainda ajuda a cultura nacional
Com a imprensa, falada e televisada
Mostra os costumes desta terra tão amada

Aconteceu, virou Manchete” (Ney do Cabuçu, Jadir, Carlinhos Madureira e Roberto Gamação) – Samba-enredo da SERES Unidos do Cabuçu 1991.

Q


uem tem mais de 35 anos, é um aficionado por carnaval e ainda suspira de saudosismo pelo capricho e carinho com que eram dedicados as transmissões da maior festa popular brasileira volta e meia repete o refrão: que saudade da Manchete! Assistir carnaval pela emissora da família Bloch era ao mesmo tempo um ato político e religioso. Político por ser uma alternativa à transmissão da toda poderosa TV Globo: perfeccionista sim, mas com um quê de frieza e distanciamento. E uma religião, pois quem se ligava na Manchete acompanhava (ou tinha a intenção de acompanhar) a programação carnavalesca do primero ao último minuto.

A entrada no ar da emissora da Rua do Russell, no bairro carioca da Glória, provocou um verdadeiro turbilhão na cena televisiva brasileira. A Manchete incomodou sim a Rede Globo e a fez sair da zona do conforto.

Conforme escreveu Elmo Francfort, no livro “Rede Manchete – Aconteceu, virou história”, a emissora foi um cometa que passou pela história. “A Manchete deixou bem claro na história da televisão que aqui esteve para se transformar em uma grife de televisão de qualidade, de credibilidade, profissionalismo, capricho, criatividade e ousadia. Esteve na busca eterna de seus ideais, na superação dos limites e também acabou abusando. Promoveu a cultura e o debate em suas coberturas, mas passou da mais tecnológica emissora do país à que precisava mais urgentemente da renovação dos seus equipamentos (...)”.

Ao contrário do SBT, que almejava a “liderança absoluta no segundo lugar”, a Manchete queria incomodar o ibope provando que era possível produzir uma programação sofisticada, diferenciada, classe A para o público brasileiro. E por alguns rounds conseguiu vencer a queda de braço televisiva! Afinal, a Manchete queria ser a emissora do século XXI, a TV do novo milênio.

A TV do ano 2000

A Rede Manchete apresentou-se como “a TV do ano 2000” – seu primeiro slogan. Com mais de 70 anos de idade, Adolpho Bloch (1908 - 1995) era contra a ideia de se aventurar em um novo meio. Dizia que seu negócio era o mercado editorial, onde já fazia sucesso, e acreditava que uma emissora de televisão representaria desperdício de dinheiro. Foi depois de muitas discussões que chegou à conclusão de que era necessário entrar na mídia eletrônica, seguindo o caminho percorrido por todos os tradicionais veículos impressos. Partiu para a concorrência dos canais e ganhou.

Também enveredou-se nas ondas do rádio, comprando a Rádio Federal AM do Rio de Janeiro, que seria transformada em Manchete AM, e outras emissoras em capitais brasileiras.

Em 1981, após ganhar as concessões, Adolpho Bloch começou a tirar do papel os projetos da Rede Manchete. Aplicou dinheiro na compra de um terreno de 300 mil metros quadrados no bairro carioca de Água Grande e pediu ao amigo Oscar Niemeyer que projetasse um segundo prédio no terreno, ao lado do Edifício Manchete (Rua do Russel, 804).

Em 1982, teve início a construção do prédio da televisão, com entrada pelo nº. 766. Os dois prédios pareciam um único por causa da mesma altura e do estilo da fachada, em aço e vidros escuros. Foram encomendados também outros projetos para as demais sedes da Manchete em São Paulo, Fortaleza, Belo Horizonte e Recife. Ainda estava sendo negociado com Niemeyer o projeto da construção de um centro de produção da TV Manchete na Barra da Tijuca, a Cidade da TV, englobando uma área de 100 mil metros quadrados, que seria inaugurado em 1985, que acabou não se concretizando. 


Os novos jornalistas da emissora emergente surgiriam de um curso de telejornalismo realizado pela própria Manchete e divulgado em todas as publicações da Bloch Editores, e que teria prosseguimento após a inauguração.

Bloch desembolsou 50 milhões de dólares para o desenvolvimento inicial da rede, sendo 27 milhões para a compra de equipamentos, 12 milhões para compra de filmes e o restante em pessoal e demais despesas, cifras altíssimas mesmo para os dias de hoje. O investimento em filmes representava o maior lote de superproduções já adquirido pela televisão brasileira até aquela data. Eram filmes que só poderiam ser exibidos três vezes no espaço de dois anos.

O Teatro Adolpho Bloch foi desativado para transformar-se em auditório da televisão. O show inaugural seria realizado ali, com direção do cineasta Nelson Pereira dos Santos (1928 – 2018), considerado pai do Cinema Novo brasileiro. A Manchete firmou alguns acordos na ocasião, fechando parcerias com as principais agências de notícias internacionais para reforçar seu telejornalismo. Firmou contrato também com sua primeira afiliada, a TV Pampa de Porto Alegre.

A agência de publicidade DPZ ficou responsável pela criação do icônico logotipo da nova emissora: o M de Manchete era composto de cinco esferas e quatro cilindros, cada esfera significando uma das cinco emissoras da rede.


O icônico logotipo da Rede Manchete: a letra M formada por cinco esferas e quatro cilindros. Cada esfera significa uma das cinco emissoras da rede (Rio, Belo Horizonte, Fortaleza, Recife e São Paulo).

Bloch poderia perder os canais se não colocasse a programação no ar dentro de dois anos após a assinatura das concessões. Começou então uma corrida contra o relógio, até mesmo porque os cuidados no planejamento da Manchete atrasavam a estreia. Na sexta-feira, 13 de maio de 1983, às 15h27, a Rede Manchete gerava seu primeiro sinal de teste, prometendo o mais perfeito padrão de imagem, uma qualidade incomparável com a dos demais canais. Por essa razão, Rubens Furtado anunciou à mídia que primeiro entrariam no ar os canais do Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. Os de Fortaleza e Recife entrariam até outubro por causa de problemas técnicos a serem solucionados.

É divulgada a data de 29 de maio às 19 horas para a grande estreia. Duas semanas antes, a inauguração foi transferida para o domingo seguinte, 5 de junho, para que tudo estivesse funcionando nos mínimos detalhes. Bloch começou, então, uma divulgação maciça das emissoras nas publicações do grupo. Só a Revista Manchete, na semana da inauguração, publicou três anúncios com o logo da emissora, dois no rodapé e um de duas páginas, em cores, anunciando a estreia da TV Manchete. Na semana seguinte, um encarte, dentro da revista, mostrava tudo sobre a inauguração, fornecendo razões para que a Manchete fosse assistida. Estava tudo pronto para que a moderna e sofisticada “televisão do ano 2000” entrasse no ar.

A TV Manchete entrou no ar, oficialmente, em 5 de junho de 1983, às 19 horas. Entrou o top de 8 segundos e surgiu Adolpho Bloch, sem áudio. Sua imagem saiu do ar, dando lugar ao primeiro comercial da emissora. A imagem foi um espaço vazio e escuro, onde aos poucos aparece um homem de smoking, carregando em cada uma das mãos uma lata de Lubrax-4 (óleo lubrificante da Petrobrás), e anunciou: “Lubrax-4 saúda a entrada da TV Manchete”. O comercial retornou à programação inaugural nos intervalos seguintes.


Um dos anúncios na Revista Manchete que marcou a divulgação maciça na semana de inauguração da nova TV.
Anúncio de rodapé na Revista Manchete sobre a estreia da TV Manchete, “o maior acontecimento de 1983”.

Televisão de Primeira Classe (1983 - 1988)

A TV Manchete começou a se consolidar, ainda no ano de 1983, como uma nova opção de qualidade na televisão brasileira, e se manteve, entre altos e baixos nessa sua primeira fase, até 1988.

Os destaques dessa época foram programas como o musical Bar Academia (com Walmor Chagas), o infantil Clube da Criança (com Xuxa e depois com Angélica), os jornalísticos Conexão Internacional (com Roberto D’Ávilla) e Jornal da Manchete, a revista eletrônica Programa de Domingo e o programa de clipes musicais FM TV (um dos pioneiros do gênero na televisão brasileira).

O FMTV, que durou de 1984 a 1986, teve entre os apresentadores o radialista Marco Antônio (que se tornaria conhecido depois como Marcão Rodrigues), na época com apenas 18 anos de idade; um jovem humorista de nome João Kleber; e uma atriz novata chamada Patrícia Pillar, que recém havia estreado em cinema, contracenando com o compositor Djavan no filme “Para viver um grande amor” (1983). O programa, aliás, reuniu profissionais de elevadíssimo nível na produção e na parte técnica: a abertura, feita em design gráfico, fora criada por Renato Lage; a produção era de Marlene Mattos; a direção-geral de Maurício Sherman (1931 – 2019), e o redator responsável pelas falas dos apresentadores era Paulo Coelho. Sim, ele mesmo, o “mago” e imortal da Academia Brasileira de Letras. As vinhetas de abertura e encerramento tinham como trilha sonora a música “Borderline”, sucesso de uma cantora norte-americana emergente de nome Madonna.

Do lado esportivo, nasceu o programa Manchete Esportiva, com Paulo Stein e Márcio Guedes, e entrou no ar o Toque de Bola, aos domingos, com os dois apresentadores e mais uma dupla: Alberto Léo (1950 - 2016), e João Saldanha (1917 - 1990).

Na teledramaturgia, a Manchete contratou autores, atores e diretores, muitos vindos da Tupi, da Globo e do núcleo da Bandeirantes. Passaram a fazer minisséries. A primeira foi Marquesa de Santos (1984), com Maitê Proença e Gracindo Júnior, que alcançou média de 7 pontos, colocando a Manchete apenas atrás da Globo e SBT, no Ibope.

Os 110 dias entre a maquete e a realidade: a polêmica construção do Sambódromo e o carnaval de 1984

Primeiro ato. Durante anos a fio, entre os meses de setembro e outubro, a Marquês de Sapucaí começava a receber as arquibancadas para o Carnaval. Eram feitas de tubos pela empresa responsável chamada Mills. As estruturas permaneciam montadas até abril, para logo após haver o desmonte. Eram milhões de cruzeiros gastos pelos cofres públicos com o monta-desmonta.

Em março de 1983, assume o Governo do Rio de Janeiro o gaúcho Leonel Brizola. A menor de suas preocupações era o carnaval de 1984. O novo mandatário encontrara um Estado falido, pois o governador biônico anterior – Chagas Freitas – tinha deixado uma bomba-relógio: a paridade dos aposentados, que até então recebiam muito menos do que os servidores da ativa. Paridade que começava (por coincidência ou não) justamente no primeiro mês de governo do primeiro governador eleito pelo voto depois da ditadura.

Foi um baque e tanto na folha de pagamentos, resolvido com a criatividade possível: o pagamento, que era no início do mês passou para o final e os cargos comissionados – perto de 15 mil – a serem preenchidos, ficavam retidos na burocracia real e na inventada, porque Brizola passou a só nomear quando o indicado tinha currículo completo, inclusive com foto 3×4, o que adiava, adiava… e economizava um ou dois salários.

Além disso, o Banco do Estado tinha acabado – dias antes da posse de Brizola – de ser forçado a assumir o aval dos empréstimos – impagáveis – feitos para construir o Metrô do Rio de Janeiro.

E como desgraça pouca é bobagem, tomava conta do país uma onda de saques, feita por provocadores e que se alastrava com as condições de extrema miséria do nosso povão. E o carnaval, onde entra?

Os meses de agosto e setembro chegaram e o tempo para os preparativos do carnaval seguinte encurtava. Por determinação do governo, não haveria mais a instalação das arquibancadas. Brizola sabia do potencial turístico, econômico e cultural do carnaval carioca – que rende milhões para os cofres públicos –, mas queria estancar o desperdício de dinheiro público com o monta-e-desmonta das arquibancadas da Sapucaí. Como seria isso? Com a construção de um palco definitivo para o carnaval com arquibancadas fixas e perpétuas.

Segundo ato. Entra em cena o Bloco do Desvario: à ousadia de Brizola, juntam-se a teimosia do vice-governador Darcy Ribeiro (1922 - 1997), a genialidade de Oscar Niemeyer (1907 - 2012) e a competência de um engenheiro calculista chamado José Carlos Sussekind, que era quem tinha de fazer acontecer os delírios da trinca.

A Passarela do Samba foi da maquete à realidade em exatos 110 dias.


Sambódromo: o sonho se tornou realidade. Da maquete à inauguração, foram exatos 110 dias.

Foi uma verdadeira saga, uma epopeia. A construção do Sambódromo daria um enredo que poderia gerar um autêntico samba-lençol dos anos 50 e 60, ao estilo das letras quilométricas de Silas de Oliveira, Geraldo Babão, Candeia ou Bide.

O final do ano no Rio de Janeiro foi chuvoso e atrapalhou demais a fase das fundações, já complexa porque o terreno era pouco sólido e ali embaixo passava um rio. Mas como a maioria das estruturas era pré-moldada fora dali, e apenas os suportes laterais e intermediários era concretados no local, as coisas de fato aconteceram. No dia a dia quem tocava a obra era o arquiteto João Otávio Brizola, sob a orientação de Sussekind, que apertava as empreiteiras: se a obra não andar, não há pagamento.

Terceiro ato. O desafio político. Brizola passou a ser tratado como um louco pela mídia, que jogava o governador contra a opinião pública, alegando que a obra não iria sair e que era uma inutilidade. E o fogo – nada amigo – partia dos lados do Jardim Botânico. Uma charge, publicada pelo jornal O Globo, retratava Brizola como Odorico Paraguassu, o folclórico prefeito da novela “O Bem Amado”, de autoria do dramaturgo Dias Gomes (1922 - 1999), e o Sambódromo correspondia ao cemitério de Sucupira, jamais inaugurado por falta de mortos.

Os críticos da época diziam que o arco da Praça da Apoteose iria cair. Quando não caiu, disseram que ninguém conseguiria ouvir o samba, por causa do eco. Houve até quem admitisse que a pista fosse afundar, porque havia – e há – um rio passando abaixo. Para quem acha que fake news é invenção da turma das redes sociais da segunda década do século 21 é porque não sabe os apuros pelos quais Brizola passou.


O arco da Praça da Apoteose em construção: as fake news da época diziam que iria cair. A obra segue intacta 36 anos após sua inauguração.

Com uma área construída de 85 mil metros quadrados, dos quais 55 mil m² sustentados por estruturas pré-moldadas in loco, o Sambódromo consumiu 17 mil m³ de concreto. Niemeyer o definia como uma “estrutura leve, intencionalmente repleta de vãos, para ser ocupada pelo povo”. Uma obra imponente.

A pista de concreto da Marquês de Sapucaí mede 700 metros de extensão e 13 metros de largura. A capacidade, quando de sua inauguração em 1984, era de 60 mil espectadores. Após a reforma ocorrida em 2012, foi ampliada para 72.500 pessoas. A estrutura serviu para a canalização de um canal que passava pela região do Sambódromo e era alvo constante de enchentes. A obra também ajudou a readequar o trânsito da cidade do Rio de Janeiro na região. Tudo construído entre o final de outubro de 1983 e o final de fevereiro de 1984. Naquele ano, o desfile das escolas de samba ocorreu no dia 2 de março – data considerada como a da inauguração oficial do Sambódromo.

O projeto original idealizado por Darcy Ribeiro consistia que a Passarela do Samba servisse ao carnaval enquanto Sambódromo. Fora do período momesco, os camarotes do complexo carnavalesco cediam lugar aos CIEP’s – Centros Integrados de Ensino Público, um projeto pedagógico visionário e revolucionário no Brasil de assistência em tempo integral a cinco mil crianças (!), incluindo atividades recreativas e culturais para além do ensino formal - dando concretude aos projetos idealizados décadas antes por Anísio Teixeira. Uma ousadia que a elite jamais perdoou. 

Exclusividade da Bloch e boicote global 

A perseguição implacável ao Governo Brizola (1983 - 1987) por parte da Rede Globo jamais cessou. Como diria o samba “O boi dá bode”, da Estácio de Sá (1988): “boicote em todo lugar”. Era boicote à obra, à inauguração do complexo, amedrontamento da população espalhando notícias inverídicas (as hoje propaladas fake news) pondo em xeque a segurança da estrutura e das pessoas que, naquele ano, iriam assistir ao primeiro desfile das escolas de samba na nova passarela.

Outro boicote teria sido que, com a construção da Passarela do Samba, o carnaval teria uma importante mudança e uma nova configuração: até então, os desfiles do Grupo Especial eram realizados somente no domingo de Carnaval, com longa duração. A nova configuração oferecia desfiles no domingo e na segunda, como acontece até hoje.

A versão que ficou para a historia foi de que a Globo não concordou com a mudança, que atingiria a sua indelével e “imexível” grade de programação. Em especial, afetaria o principal telejornal (Jornal Nacional) e o principal produto da casa no que dizia respeito à audiência (a novela das oito). Assim, a desistência da emissora da família Marinho fez com que a TV Manchete – com menos de um ano de existência – adquirisse os direitos exclusivos de transmissão dos desfiles de Carnaval do Rio de Janeiro. Pela primeira vez em quinze anos, o principal espetáculo momesco do país estava fora da Globo.

No entanto, não foi “apenas” isso. A questão envolvia muito mais do que apenas a mudança na programação. Conforme ocorriam as negociações de direitos de transmissão, houve atritos entre a Globo, na pessoa do todo poderoso superintendente Boni, e o vice-governador Darcy Ribeiro, homem forte do governo estadual e um dos pais do Sambódromo.

A Globo não acreditava em Carnaval de dois dias e discordava da proposta de cálculo de pontos para definir a escola campeã e de aspectos como a Praça da Apoteose, pelo absurdo que ela representaria se utilizada como proposto. Darcy a havia imaginado como um local no qual as escolas, após desfilarem, fariam uma espécie de giro e passariam por dentro de si mesmas.

A discordância foi um dos motivos para a Globo não fazer questão de transmitir os desfiles naquele ano. Além disso, questões internas de produção, como equipamento comprometido com a produção de outras atrações, espaços comerciais já vendidos para uma grade que não considerou os desfiles quando negociada e a percepção de que o investimento no Carnaval daquele ano poderia não compensar.

Os direitos exclusivos da transmissão do carnaval carioca de 1984 custaram à Manchete a quantia de 210 milhões de cruzeiros.

Houve boatos na época de que a Globo na última hora tentou dividir a transmissão, mas foi tarde demais. Segundo Boni em “O Livro do Boni”, a Manchete “passou a perna” na empresa do Jardim Botânico:

"O governo, com o Sambódromo na mão, assumiu a negociação dos direitos. A coisa foi engrossando e, pressionado, achei uma saída: combinei com o Moysés Weltman (então diretor de programação da Manchete), que ele compraria o Carnaval sozinho e depois repassaria a minha parte. Esse compromisso foi assumido pedra e cal, depois dele ter consultado o Adolpho Bloch. Uma vez assinado o contrato, no entanto, o Weltman não me atendia mais, e o Bloch não respondia nenhum telefonema do dr. Roberto Marinho, que declarou guerra ao Adolpho Bloch. Ficamos fora do Carnaval”.

A posição pública da Globo foi de desdém e alegou “motivos técnicos” para declinar da transmissão. Internamente, porém, a emissora líder lamentou o incidente.

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Ao abrir mão da transmissão dos desfiles das escolas de samba, a Globo decidiu cobrir o Carnaval com entradas jornalísticas ao longo da programação. Os repórteres sempre citavam o manjado slogan: “Rede Globo: programação normal e o melhor do Carnaval”. Todavia, essa programação não foi tão normal assim. Foram escalados, principalmente, filmes arrasa-quarteirão para tentar fazer frente ao que era mostrado pela concorrente na Sapucaí. 

Rede Globo: programação normal e... o melhor do Carnaval? 

Na noite de domingo, 4 de março, primeira dos desfiles, foram ao ar na Globo o Fantástico e “Bonnie & Clyde – Uma Rajada de Balas”, na sessão Cinema Especial. Na sequência, “Adorável Pecadora”, com Marilyn Monroe, no Domingo Maior.

Tanto o Fantástico quanto o filme estrelado por Faye Dunaway e Warren Beatty perderam feio para a Manchete. Foi a primeira vez que a revista eletrônica dominical criada em 1973 perdeu de ponta a ponta. Mas só na praça do Rio; no resto do Brasil, a Globo não só venceu como registrou índices melhores do que os de 1983, com o próprio Carnaval.

Ao passo que a Manchete, aos oito meses no ar, atingia 69% da audiência carioca contra 8% da Globo. Já pela madrugada de segunda-feira, a Coruja Colorida trouxe “Os Aventureiros do Ouro”, com Lee Marvin.

Na segunda-feira, dia 5, a Globo exibiu normalmente a novela das 20h, "Champagne", de Cassiano Gabus Mendes. Logo depois, reprisou o Roberto Carlos Especial de 1983 e exibiu o filme “Os Doze Condenados”, também com Lee Marvin. Depois veio “Síndrome da China”, com Jane Fonda, Jack Lemmon e Michael Douglas, na Coruja Colorida. Pela primeira vez foi adotado no desfile o esquema de divisão em duas noites, em vigor até hoje.

Na terça-feira, dia 6 de março, depois da novela foi a vez da reprise de um especial de Elba Ramalho. O show “Coração Brasileiro” havia sido exibido anteriormente em dezembro de 1983. O Cinema Especial teve como atração outro filme com Faye Dunaway, “Rede de Intrigas”, que contava no elenco com William Holden, Peter Finch e Robert Duvall.

Na manhã da segunda e da terça de Carnaval, com os desfiles ainda em andamento, os números foram impressionantes. A favor da Manchete, claro. A emergente emissora cravou 38 pontos na segunda e 58 na terça (com o desfile da Mangueira, que homenageava o compositor Braguinha). Só para ilustrar, na Globo ia ao ar na mesma hora, por volta de 8h30, o infantil “Balão Mágico”.

Pouco lembrada hoje, "Voltei pra Você", de Benedito Ruy Barbosa, foi a única das três novelas exibidas pela Globo a ganhar da Manchete na segunda e na terça de Carnaval de 1984. Atração das 18h, a história do amor de Pedro (Paulo Castelli) e Liliane (Cristina Mullins) em meio às disputas de terras em Minas Gerais marcou 39 pontos na média dos dois dias em questão, ao passo que a Manchete ficou em 27 – no horário em que a Manchete reprisava, em compacto, os desfiles das noites anteriores no Sambódromo do Rio de Janeiro.


A rajada de balas disparada por Bonnie (Faye Dunaway) e Clyde (Warren Beatty) e exibida pela Globo não foi suficiente para barrar a audiência da Manchete.

Na segunda, a novela das 19h, "Transas e Caretas", de Lauro César Muniz, perdeu para a Manchete no Rio por 40 a 29. O Jornal Nacional e Champagne registraram 28 contra 46 da concorrente, que colocava no ar o desfile da noite. Logo após, Roberto Carlos e o começo do filme renderam 15 pontos contra 56 da Manchete. A situação melhorou para a Globo na noite de terça-feira, quando a média elevou-se para 44 com as novelas no ar. No entanto, havia ainda pela frente a apuração, realizada na noite da terça. “Foi uma lavada”, como o próprio Boni admitiu em seu livro:

       “No Rio, a Manchete deitou e rolou na audiência, mas, no resto do Brasil, sem Carnaval, a programação da Globo cresceu em relação aos anos anteriores. Essa é a verdade completa da história. O Brizola, de forma demagógica, tentou inventar que a Globo quis boicotar o Sambódromo. Uma infantilidade. Não iríamos perder o evento por causa disso.” 

Desde então, nunca mais a Globo deixou de transmitir o Carnaval, não raro com exclusividade.

MANCHETE

Narração: Paulo Stein

Comentários: Fernando Pamplona, Roberto Barreiras, José Carlos Rego, Albino Pinheiro, Haroldo Costa, Sérgio Cabral, Maria Augusta.
Reportagens: Tarlis Batista, Marcos Uchôa.

 “Queremos dar um show. Não somos nem um pouco modestos”, disse o próprio Moisés Weltman (1932-1985), diretor de programação da TV Manchete e que foi mencionado por Boni no livro do ex-superintendente global. As palavras do executivo da televisão dos Bloch foram transcritas pela revista Veja de 18 de janeiro de 1984. Na reportagem, a Globo foi esnobe. “Carnaval não é coisa que prenda o telespectador na cadeira”, disse João Carlos Magaldi, então diretor de comunicação da Globo. Uma pitada de recalque para quem durante quase 15 anos transmitiu o espetáculo praticamente na íntegra.

A transmissão teve narração de Paulo Stein e comentários de Fernando Pamplona, Haroldo Costa, Sérgio Cabral, Albino Pinheiro, José Carlos Rego, Maria Augusta, entre outras feras, oriundas da transmissão da TV Bandeirantes, feita no ano anterior, e da revolucionária equipe das 80 horas de carnaval da TVE-RJ (1980-1982), como vimos no Capítulo 3 desta série. A direção ficou por conta de Weltman, Maurício Sherman e Mauro Costa (1939-2011).

A Rede Manchete dedicou toda a sua programação ao Carnaval, transmitindo os desfiles e os bailes, passando compactos durante o dia, fazendo debates e programas especiais. O slogan era “Carnaval Total, Carnaval Brasil”. Mas dois fatos marcaram bastante o período pré-caranvalesco da Manchete: um festival de música e um strip-tease.

Festival Manchete/Riotur de música carnavalesca

A chegada da TV Manchete também reativou (ou reacendeu) os festivais de músicas carnavalescas. Entre o dia 4 de dezembro 1983 e a 2 de fevereiro de 1984, sempre às quartas-feiras, das 22h15 à meia-noite e 15 minutos, foi realizado o 1º Festival Manchete/Riotur de Músicas de Carnaval, uma promoção da emissora com a Empresa de Turismo da Cidade do Rio de Janeiro.

O concurso consistia em selecionar seis músicas em cada uma das cinco eliminatórias (4, 11 e 18 de dezembro e 1 e 8 de janeiro). As três semifinais (15, 22 e 29 de janeiro), classificavam cinco músicas cada. As etapas classificatórias (gravadas) aconteceram no Teatro Adolpho Bloch. A grande final aconteceu no dia 2 de fevereiro, no Theatro João Caetano, no Rio, e foi transmitida ao vivo. Todas as fases do Festival foram apresentadas por Jacyra Lucas, Luis Santoro, Terezinha Sodré e Roberto Canázio.

O júri do Festival Manchete/Riotur também era formado por nomes importantes do cenário cultural carioca: Albino Pinheiro, Haroldo Costa, Maurício Sherman, Arlindo Rodrigues, Ivã Paulo da Silva – o Maestro Carioca (1910-1989), os jornalistas Eli Halfoun (1946-2016) e Tarlis Batista (1939-2002), a cantora Emilinha Borba (1923-2005), o produtor e compositor Hermínio Bello de Carvalho, o produtor artístico Guilherme Araújo (1936-2007), o músico Antônio Adolfo, o apresentador, produtor e polemista de marca maior Carlos Imperial (1935-1992), e os compositores Herivelto Martins e Alcyr Pires Vermelho (1906-1994), que se revezaram na presidência de honra do júri nas etapas classificatórias. A música vencedora da primeira edição foi “Vagalume”, uma marcha-rancho composta por Braguinha (1907-2006) e César Costa Filho.


César Costa filho (ao centro) interpreta “Vagalume”, canção vencedora do 1º Festival Manchete/Riotur de Música Carnavalesca.

O Festival Manchete/Riotur ainda teve mais duas edições, realizadas em 1985 e 1986. Oas concursos tiveram total apoio e entusiasmos de Adolpho Bloch, que até concorreu em 1985, com a marcha “Rainha de Sabá”, feita em parceria com Carlos Cruz e Carlos Heitor Cony, defendida por Emilinha Borba. No entanto, a vitória foi para o samba “Sorria, o carnaval chegou”, de Mauro Diniz, Cleber Augusto e Sereno, interpretado pelo conjunto vocal As Gatas.

Strip tease e contagem regressiva

Outro fato que marcou época no pré-carnaval de 1984 e na história da propaganda brasileira envolveu uma das estrelas do primeiro time da recém-inaugurada TV Manchete.

A jornalista Íris Lettieri já tinha uma trajetória consagrada no segmento da comunicação. Primeira mulher a atuar como locutora de telejornais no País já no final dos anos 50, Íris é dona de uma voz de inconfundível timbre grave e aveludado, com uma dicção perfeita, passando uma sensação de tranquilidade e até mesmo sensualidade.

Anos depois se tornou “a voz do aeroporto”, pois desde a década de 1970 é a locutora oficial do Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio de Janeiro, do Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo, e outros.

Íris Lettieri foi uma das primeiras apresentadoras do Jornal da Manchete, em 1983, que em seus primeiros meses era transmitido por três horas. Íris apresentava, junto com Jacyra Lucas, as notícias de cultura e entretenimento. Em 1984 passou a entrar no ar, como apresentadora do Manchete Panorama, e ainda participou do Programa de Domingo, da mesma Rede Manchete.

Tendo como mote uma contagem regressiva de 30 dias para o carnaval de 1984, a empresa Lubrax convidou a locutora para estrelar uma série de comerciais do óleo combustível da companhia. Todo dia, assim que acabava o Jornal da Manchete, entrava o filme “Lubrax Informa: faltam xx dias pro Carnaval 84”.

A bem-humorada peça publicitária consistia em aproveitar a aura de sensualidade que a dona daquela voz emprestava ao imaginário popular, simulando um strip-tease. A locutora, que a um mês do carnaval aparecia sentada em uma bancada de estúdio de TV completamente vestida, tirava uma peça de roupa a cada dia que passava, informando com uma voz “quente” que faltavam “tantos” dias para o carnaval 84.

Assim, Irís foi tirando os brincos, a echarpe, o colar, o tailleur, os óculos, os sapatos, as meias, a blusa...


Íris Lettieri estrelou uma bem-humorada série de comerciais do óleo Lubrax que consistia na contagem regressiva de 30 dias para o carnaval 84 com a simulação de um strip-tease.

Quando faltava 1 dia para o carnaval, Íris – que na época tinha 42 anos de idade, e estava no auge de sua beleza já madura – apareceu sentada em uma cadeira giratória de escritório simulando estar nua, com o encosto da cadeira virado para frente tapando-lhe o corpo.

Finalmente, no dia do início da folia, o comercial inicia com a apresentadora em um enquadramento fechado – aparecendo apenas a cabeça – olhando em direção à câmera perguntando ao telespectador: “Sabe quantos dias faltam para o Carnaval 84? Nenhum.” A câmera abre o enquadramento e ela aparece em estúdio vestida com uma fantasia de carnaval dançando ao som de uma batucada. Um dos comerciais clássicos da história da propaganda brasileira.


Comercial com a contagem regressiva para o Carnaval 84

Goleada do Carnaval da Manchete


Vinheta do Carnaval de 1984 da Manchete

A emissora foi com tudo para cima da concorrência – da Globo, em especial – com uma cobertura que mobilizou 1.200 profissionais. Foram planejadas 84 horas de Carnaval na programação, entre cobertura jornalística, transmissões e reprises dos desfiles, programas com os tradicionais bailes de clubes e concursos de fantasias. Na verdade, foram 110 horas de transmissão, iniciadas na sexta-feira à noite e se estendendo até as cinco e meia da manhã de quarta-feira de Cinzas.

A Manchete acompanhava a chegada dos integrantes das escolas e dos espectadores à Marquês de Sapucaí. Logo depois, exibia os desfiles e, durante o dia seguinte, reprisava-os no aquecimento para os próximos. Fora os pequenos trechos rememorados a título de indicação das melhores apresentações por jurados e comentaristas convidados. “Esquentando os Tamborins” foi um dos nomes criados na ocasião para programas carnavalescos e posteriormente reaproveitado.


O anúncio na revista Manchete divulgava: 84 horas no ar! Na verdade, foram mais de 110 horas envolvendo 1,2 mil profissionais.

Na tarde do dia 2 de março de 1984, sexta-feira, data que marcou a inauguração do Sambódromo e o início da maratona carnavalesca da Manchete, foi exibido um especial de 15 minutos sobre a Passarela do Samba. A vinheta de abertura mostrava uma gaivota branca voando ao pôr-do-sol e aterrissando no Sambódromo, formando o arco da Praça da Apoteose. Muito se comentava, à época, que o arco da Apoteose se assemelhava à letra M, e que seria uma estilização da letra inicial de Manchete, em homenagem à emissora que prestigiou o primeiro desfile no concreto da Sapucaí.

Especial de Inauguração do Sambódromo pela TV Manchete, exibido no primeiro dia de desfiles do Carnaval 1984. 

À noite, a cobertura teve início com a transmissão dos desfiles do Grupo 1-B (atual Série A, a “segunda divisão” do carnaval carioca). A honraria de ser a primeira escola de samba a desfilar na recém-inaugurada Passarela do Samba coube ao Império do Marangá, que apresentou o enredo “Águas Lendárias”. O início do desfile, previsto para as 21 horas, teve 45 minutos de atraso devido ao engarrafamento no Rio. A Império do Marangá, criada em 1957 em Jacarepaguá, não resistiu à profissionalização das escolas de samba e foi extinta após o desfile de 1999.

À escola de Jacarepaguá, seguiram: o Arrastão de Cascadura, que contou uma lenda triste, a da Marabá, que morreu flechada por seu amor no “Conto Lendário de Marabá”, escrito por Monteiro Lobato e adaptado por Jacy Inspiração; a São Clemente estreava no Grupo 1-B e trouxe o criativo enredo “Não Corra, não Mate, não Morra – O Diabo está Solto no Asfalto”, que introduzia o personagem de Zeca Passista, um operário atropelado na rua, mas que não morre e tem um sonho com placas de trânsito servindo de alegorias.

Outra escola que estreava no Grupo 1-B era o Engenho da Rainha, com o enredo “Ô Tucá Juê”, que mostrava a chegada das congadas ao Brasil e as origens das danças. A quinta escola a desfilar foi a Unidos do Jacarezinho, com o enredo onomatopaico “Ziguezagueando no Zunzum da Fantasia”, que se ocupa do processo de criação das fantasias usadas pelos componentes. Uma das homenageadas no carnaval 84 foi a cantora Beth Carvalho na Unidos do Cabuçu, na Unidos de Cabuçu, que apresentou o enredo “Beth Carvalho, a Enamorada do Samba”, contando a vida da cantora.

Acima da Coroa de Um Rei Só Um Deus” é o enredo da Acadêmicos de Santa Cruz, que falava de candomblé e umbanda. Um samba alegre e contagiante foi “Atrás do Trio Elétrico”, da Unidos de Bangu. O ano orwelliano de “1984” serviu de enredo à escola Paraíso do Tuiuti, anunciando que as mazelas descritas no livro de George Orwell não ocorreria num país como o Brasil. Décima escola a desfilar, a Lins Imperial contava a história do dinheiro no enredo “Só Vale Quem Tem”. A Em Cima da Hora alegrou a avenida com seu samba forte, apresentando como enredo a rotina da maioria de seus componentes: “33, Destino: D. Pedro II”. A Unidos de Lucas encerrou o desfile do Grupo I-B com o enredo “Dança Brasil”, onde mostrou todas as danças folclóricas brasileiras.

No dia seguinte teve início à era que dividiu o desfile das escolas de samba do Grupo Especial no Carnaval do Rio de Janeiro em duas noites, no domingo e na segunda (dias 3 e 4 de março). Em 1984, cada noite teve uma campeã. O Desfile das Campeãs realizado no sábado seguinte (Sábado de Enterro dos Ossos) promoveu um tira-teima, chamado de Supercampeonato.

A Unidos da Tijuca pisou na passarela às 21 horas do domingo, dia 3 de março, com o enredo “Salamaleikum, a epopéia dos insubmissos malês” sobre a Revolta dos Malês, na Bahia. Depois, a Império da Tijuca apresentou “9215”, que foi o número da lei que, em 30 de abril de 1946, extinguiu os cassinos no Brasil. A Caprichosos de Pilares já dava o toque de irreverência que marcou a escola, com “A visita da nobreza do riso a Chico Rei, num palco nem sempre iluminado”.

O enredo “Skindô, skindô” marcava o retorno do carnavalesco Arlindo Rodrigues à Acadêmicos do Salgueiro, depois de 12 anos afastado da escola. União da Ilha do Governador mostrou os ditos populares em “Quem Pode, Pode, quem não Pode”. A Portela homenageou três de seus grandes ícones (Paulo da Portela, Natal e Clara Nunes) em “Contos de Areia. O Império Serrano encerrou o primeiro dia com “Foi malandro, é”, em que contou fatos ao longo da História em que o jeitinho brasileiro e a malandragem fizeram a diferença.

Na segunda noite, a ex-Unidos de São Carlos – agora rebatizada de Estácio de Sá – abria os desfiles falando de máscaras, com “Quem é você?”. A Unidos da Ponte abordou as “Oferendas” nas religiões de matriz africana. Depois foi a vez da Mocidade Independente de Padre Miguel, com “Mamãe eu quero Manaus”, delírio tropicalista do carnavalesco Fernando Pinto. A Unidos de Vila Isabel veio com um enredo “metalinguístico” onde homenageou os construtores e artesãos da folia e trabalhadores de barracão, com “Pra tudo se acabar na quarta-feira”, com direito até a samba antológico de autoria de Martinho da Vila.

Não tão rica e favorita ao título como em anos anteriores, a Imperatriz Leopoldinense também surfou na onda de enredos críticos da década de 80 e apresentou “Alô Mamãe”, desenvolvido por Rosa Magalhães e Lícia Lacerda, que teve Agnaldo Timóteo no abre-alas em forma de telefone. O enredo nacionalista “O gigante em berço esplêndido” foi o fio condutor do desfile da Beija-Flor de Nilópolis. E o encerramento, com um desfile realmente apoteótico, coube à Estação Primeira de Mangueira e o tema “Yes, Nós Temos Braguinha”. 

Dez, nota dez! 

A apuração das notas, que a rigor deveria ser apenas um procedimento burocrático para verificar qual foi a melhor escola, virou um ícone marcante da festa. A leitura das notas, sobretudo a da máxima, está tão incorporada à coreografia do carnaval que é difícil imaginar que alguém tenha inventado algo que hoje parece tão natural.


Apresentador, jurado, produtor, compositor, gozador, irreverente, polêmico e mulherengo: eis Carlos Imperial!

Mas nem sempre foi assim. O bordão “Dez, nota dez!”, anunciado com entonação grandiloquente, surgiu na quarta-feira de cinzas do carnaval de 1984. Seu criador foi o polêmico e controverso Carlos Imperial (1935 - 1992), amado por uns e odiado por milhões, bem como ele gostava. Imperial na época era vereador no Rio e foi designado pelo governo de Leonel Brizola para comandar a Comissão de Carnaval dos primeiros desfiles no local idealizado por Oscar Niemeyer.


Carlos Imperial (ao microfone, de camisa escura) na apuração do carnaval, no Maracanãzinho. O apresentador levava o público ao delírio quando promulgava a nota máxima: “dez, nota dez!”

O biógrafo Denilson Monteiro descreve como foi em seu livro, não por acaso intitulado “Dez! Nota Dez! Eu Sou Carlos Imperial”:

“… Na Quarta-feira de Cinzas, por volta das 17h, Imperial, guiado pelo leal Russão, se dirigiu ao Maracanãzinho, onde seria realizada a apuração do Carnaval de 1984. As notas seriam lidas por ele, que pontualmente às 18 horas deu início ao trabalho. O ginásio Gilberto Cardoso ficava bem próximo do morro da Mangueira. Por isso, os torcedores da Estação Primeira se encontravam em número muito maior que as demais. A escola já iniciou o primeiro quesito com nota máxima, o que fez com que Imperial optasse por improvisar uma mudança na forma como estava conduzindo a apuração. Decidido a mexer com a platéia, anunciou com sua garganta privilegiada:

– Estação Primeira de Mangueira: dez! Nota dez!

Os mangueirenses entraram em êxtase. Percebendo que a maneira diferente de anunciar o resultado havia agradado, Imperial repetiu a fórmula com as notas máximas das demais agremiações. Simultaneamente, por toda a cidade o que se ouvia naquele cair de tarde era um novo bordão que se alastrava como um vírus. Em todos os lugares as pessoas procuravam imitar a voz radiofônica de Carlos Imperial:

– Dez! Nota dez!

A apuração terminou com a Portela de Imperial e seu enredo “Contos de Areia” campeã do desfile de domingo e Mangueira como a campeã de segunda. O Gordo deixou o Maracanãzinho como coadjuvante que por alguns minutos roubou a cena, algo que sempre o agradava bastante. Na rua, as pessoas o reconheciam e gritavam:

– Lá vai o “Dez! Nota Dez”.  …” 

O bordão foi tão marcante que, no ano seguinte, “Dez, nota dez!” foi escolhido como título do enredo da Unidos da Ponte, que desfilou (e venceu) o Grupo 1-B.

Este foi um dos últimos legados de Carlos Imperial. Jornalista, produtor e compositor, também foi apresentador de TV, radialista, jurado de programa de auditório, Rei da Pilantragem, “cafajeste”, gozador, irreverente, bon vivant, mulherengo (tinha predileção por mulheres muito jovens e bonitas, às quais chamava de “lebres”), agitador cultural e vereador no Rio por duas legislaturas, pelo PDT, sendo que em 1984 foi o mais votado da cidade. Um personagem marcante na cultura brasileira, que morreu no final de 1992, aos 56 anos.

Supercampeonato

Muito já foi falado, dito e escrito sobre o Supercampeonato de 1984, inclusive aqui mesmo no Sambario. Para não cansar os leitores, serei mais sucinto.

Após uma “trégua” de dois dias – quinta e sexta – sem tanta ênfase ao carnaval, a Manchete voltou com tudo no sábado, dia 10 de março, para transmitir o Supercampeonato.

A ordem do desfile, que terminou ao amanhecer do domingo, dia 11, foi: Acadêmicos de Santa Cruz (vice do Grupo 1-B); Unidos do Cabuçu (campeã do 1-B); Caprichosos de Pilares (3º lugar de Domingo); Beija-Flor (3º lugar de Segunda); Império Serrano (vice de Domingo); Mocidade (vice de Segunda); Portela (campeã de Domingo) e Mangueira (campeã de Segunda). O resultado do desfile foi o inverso da ordem de desfile, com a Mangueira se sagrando supercampeã e a TV Manchete conquistando o coração dos carnavalescos.

Podemos afirmar que o carnaval de 1984 terminou, de fato, em 24 de julho de 1984. Esta data marcou o final e o início de uma nova era: foi neste dia em que as entidades carnavalescas do Grupo 1-A fundaram a Liga Independente das Escolas de Samba da Cidade do Rio de Janeiro, a Liesa.

Sob a presidência de Castor de Andrade, patrono da Mocidade Independente de Padre Miguel, a Liesa significava uma ruptura em relação à Associação das Escolas de Samba da Cidade do Rio de Janeiro (AESCRJ) e tinha como objetivo gerenciar os desfiles e repartir os lucros (vendas dos ingressos, discos de samba-enredo e direitos de transmissão de TV) entre as agremiações. A cada ano, as escolas promovidas do Grupo de Acesso para o Especial se filiam à LIESA, e as rebaixadas se desfiliam, para voltar a integrar a AESCRJ, que atualmente desfilam e integram a LIERJ – Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro.

1985 – O Carnaval da Democracia

Depois da exclusividade marcante da Manchete em 1984, os telespectadores tiveram a opção de três emissoras com grandes profissionais envolvidos na cobertura. Globo e Bandeirantes também transmitiram os desfiles.

Band

A Band adotou dois slogans repetidos ao longo da transmissão: “o melhor carnaval do Brasil!” – e “Rede Bandeirantes – Mudando a fantasia”. Na apresentação dos desfiles na Sapucaí, estavam Albino Pinheiro e Elke Maravilha. Quando não estava na avenida, a Band também dedicava ampla cobertura aos bailes pré e carnavalescos.

Durante uma semana (da noite da terça-feira anterior ao carnaval até a Terça-Feira Gorda) a emissora se dedicava a transmitir ao vivo as inúmeras festas realizadas no Canecão, no Scala-Rio, e nos clubes Monte Líbano e Sírio-Libanês: Baile do Diabo (América FC), Vermelho e Preto (CR Flamengo), Baile da Cidade, Baile das Panteras, Baile do Champagne, Baile do Pão de Açúcar, e o baile responsável pela maior audiência televisiva da cobertura carnavalesca da TV Bandeirantes, o Gala Gay, com os impagáveis repórteres Otávio Mesquita, Rogéria e Monique Evans.

A transmissão dos bailes geralmente iniciava após as 23 horas e adentrava a madrugada até apor volta das 4h.

Manchete

Na Manchete, a chamada carnavalesca da emissora era “Rede Manchete pede passagem”. A cobertura consistiu em dar seguimento ao estilo realizado no ano anterior, com praticamente a mesma equipe com Stein, Pamplona & Cia que brilhara e comandara a maratona televisivo-carnavalesca em 1984.

Para se livrar do prejuízo, em 1985, a Rede Globo decidiu transmitir o desfile da Sapucaí, em conjunto com a Manchete. As duas emissoras combinaram todos os detalhes. Deveriam ter a mesma imagem 15 minutos após a entrada de cada escola na passarela e entre o final de um desfile e esses 15 minutos, as duas tinham o direito de colocar o que quisessem no ar. Foi assim que muitos carnavais da Manchete, com direção de Mauro Costa, surpreenderam a Globo com matérias, comentários e flashes dos principais bailes, pois haviam repórteres espalhados em todos os pontos.

Gina Masello, que participou de alguns carnavais como assistente de produção, lembra que Carnaval pra Manchete era sinônimo de Ibope. Todo mundo preferia dar entrevista pra Manchete em vez da TV Globo. Nos intervalos, quando entravam reportagens em camarotes, na porta do Scala, nas filas do Gala Gay, no Monte Líbano, em São Paulo, e em outras partes do Brasil, a audiência oscilava entre as duas. Foi assim que a Globo teve de se adaptar a esse novo formato de jornalismo.

Globo

E o grande desígnio da Globo em 1985 era de se redimir com sua audiência após o equívoco de um ano antes ter preterido o carnaval. Era uma questão de honra recuperar o prestígio no meio carnavalesco e o padrão de qualidade para a festa, apesar de que a Manchete já ter estabelecido um novo paradigma para o carnaval. Com os ventos da redemocratização, o horizonte desejado era o do sucesso da Nova República. Vivia-se a expectativa da posse de Tancredo Neves, primeiro presidente civil desde 1964. Com isso a chamada da cobertura carnavalesca global era “Caia na folia. É o Carnaval da democracia!”.


Vinheta do carnaval 85 da TV Globo. Crédito: Canal Arquivos1000/Youtube

A eleição de Tancredo Neves (1910 - 1985) para a Presidência da República, em votação indireta derrotando Paulo Maluf no Colégio Eleitoral, ocorreu em 15 de janeiro de 1985, exatamente 30 dias antes do carnaval. Dentro desse clima, a Globo passou a produzir uma série de programetes de 30 segundos estrelado pelo humorista Paulo Silvino (1939 - 2017) para serem exibidos durante os intervalos comerciais ao longo da programação.

Os esquetes – narrados pelo ator Francisco Milani (1936 - 2005) – consistiam em Silvino (sem fala e através apenas de mímica e interpretação gestual) dar dicas bem humoradas explorando situações sobre como “entrar” no carnaval saindo da cama, saindo do banheiro, saindo da tristeza, etc. Ao final da dica, uma trilha sonora ao ritmo de uma batucada e um coral entoando em ritmo de marchinha “caia na folia, é o carnaval da democracia”.


O humorista Paulo Silvino estrelou a série de esquetes saudando o “carnaval da democracia”

Na cobertura dos desfiles, a Globo resgatou a antiga programação de apresentar o Fantástico com apenas meia hora de duração e iniciar a transmissão direto da Sapucaí em torno das 20 horas. A emissora mostrou os dois dias do Grupo Especial. Para quem havia reclamado no ano anterior da divisão em dois dias devido ao prejuízo à sua programação, a Globo se viu em apuros.

O desfile de domingo começou com atraso, a Em Cima da Hora, que retornava ao primeiro grupo depois de nove anos – com “Os Sertões” – levou à avenida novamente a situação dos nordestinos, desta vez, os que deixavam a região em busca de uma vida melhor no Rio de Janeiro. Seguiram-se após: Cabuçu, Império da Tijuca, Salgueiro, União da Ilha (novo atraso antes de começar a desfilar), Vila Isabel, Mangueira e Mocidade, que entrou na avenida às 8h25.

Mas o caos mesmo aconteceu na segunda-feira.

A São Clemente abriu o segundo dia de desfile com uma hora de atraso. Houve uma gigantesca demora na entrada da segunda escola a desfilar, a Acadêmicos de Santa Cruz, devido ao choque de uma das alegorias com um carro da Beija-Flor, causando um enorme transtorno. A verde e branco da Zona Oeste levou mais de duas horas para entrar na avenida.

A terceira escola, a Estácio de Sá, passou sem problemas. Parecia que a noite havia se normalizado. Qual o quê! Depois do desfile da Estácio, mais atraso: o carro abre-alas da Imperatriz Leopoldinense quebrou na armação, e não havia quem conseguisse retirá-lo para a passagem das demais alegorias. O Império Serrano, que estava pronto, aceitou inverter a ordem do desfile. Mais duas horas de espera até a escola da Serrinha conseguir entrar. Enquanto o Império não entrava, a Manchete chamava outras praças carnavalescas e recorria às transmissões dos bailes para ocupar o tempo de espera. E o que fez a Globo enquanto aguardava a retomada do desfile? Prosaicamente a emissora passou a exibir desenhos animados na programação e até um episódio inteiro do seriado “O Incrível Hulk” (!).

Retomada a programação, a Globo exibiu Império, Imperatriz, Beija-Flor (que já enfrentava um atraso de seis horas, havia se preparado para desfilar à noite, e começou a apresentação já com sol forte). Por volta das dez da manhã, entrou em cena a Caprichosos de Pilares e já passava das 12h30 de terça-feira quando a Portela finalmente iniciou seu desfile.

Na quarta-feira, Globo e Manchete transmitiram a apuração, com mais um show de Carlos Imperial na divulgação das notas “dez, nota dez”. Uma novidade é que, em 1985, tanto Globo quanto Manchete mostraram o Desfile das Campeãs.

Depois da apuração dos votos, e da definição da grande campeã do Carnaval do Rio de Janeiro, as seis melhores escolas de samba se preparam para voltar ao Sambódromo no sábado seguinte, para o Desfile das Campeãs.

Em 1985, já abolido o Supercampeonato e os desfiles novamente unificados, a Liesa decidiu que, em todo sábado imediatamente posterior ao carnaval, aconteceria o Desfile das Campeãs, evento tão eletrizante quanto os de domingo e segunda, no qual os componentes das escolas estão orgulhosos, emocionados e mais soltos, comemorando e vendo seu trabalho ser reconhecido. As cinco primeiras colocadas no Grupo 1-A (Mocidade, Beija-Flor, Vila Isabel, Portela e Caprichosos), mais a campeã e a vice do Grupo 1-B (Ponte e Unidos da Tijuca, essas duas com acesso garantido à elite do carnaval brasileiro no carnaval do ano seguinte) tiveram a honra de participar do Desfile das Campeãs.

Naquele ano houve espaço ainda para uma convidada de fora da cidade do Rio de Janeiro. A escola de samba paulistana Nenê de Vila Matilde, campeã em 1985, foi convidada a desfilar com a nata do carnaval carioca, sendo até hoje “a primeira e única escola de São Paulo a desfilar na Marquês de Sapucaí”.

A ordem de desfile do dia das campeãs ficou assim:

1) Unidos da Tijuca, vice-campeã do Grupo 1-B

2) Ponte, campeã do Grupo 1-B

3) Caprichosos, 5ª colocada Grupo 1-A

4) Portela, 4ª colocada do Grupo 1-A

5) Vila Isabel 3ª colocada do Grupo 1-A

6) Beija-Flor, vice-campeã do Grupo 1-A

7) Nenê de Vila Matilde, campeã do carnaval de São Paulo

8) Mocidade, campeã do Grupo 1-A


Nenê de Vila Matilde, até agora, a única escola de samba de São Paulo a ter desfilado no sambódromo do Rio de Janeiro.

A Nenê passou pela Passarela do Samba entre a Beija-Flor de Nilópolis e a Mocidade Independente de Padre Miguel, com o enredo “O dia que o Cacique rodou a baiana aí ó”.

A Manchete começou as transmissões desde as 18 horas direto da Marquês de Sapucaí, apresentando os desfiles das oito entidades na íntegra. A Globo exibiu primeiro o Jornal Nacional e o capítulo da novela-sensação do horário das 20h, “Corpo a Corpo”. Logo depois é que passou a transmitir ao vivo da Passarela do Samba.

       1986 – Guerra é guerra

O carnaval de 1986 ganhava em inovação e tecnologia. Eram instalados relógios eletrônicos na pista de desfiles do Sambódromo, para marcar o tempo de cada escola.

O desfile passava a ser linear, com a construção de cadeiras de pista na local da antiga Praça da Apoteose.

A Globo promovia o carnaval com reportagens nos telejornais nos meses que antecediam os desfiles. Quando a data se aproximava, as chamadas se intensificavam durante os intervalos da programação. Outro canal muito importante de divulgação do carnaval era o Cassino do Chacrinha. Logo após o lançamento do disco de samba-enredo, o Velho Guerreiro convidava as escolas de samba para mostrarem seus hinos no auditório do programa vespertino, o que geralmente acontecia a partir do mês de dezembro.


Vinheta do Carnaval 86 exibida pela Globo durante a programação

Já a Manchete, com seu “Carnaval Total”, teve uma sacada genial que conquistou a todos os amantes do carnaval e influenciou até mesmo a concorrência e cuja consequência até hoje está presente: as chamadas “vinhetas carnavalescas” durante os intervalos da programação, utilizando um expediente muito simples.

A produção ainda era incipiente. Com uma locução em off, a Manchete convidava o telespectador: “aprenda a letra do samba-enredo de sua escola”. E a seguir soltava o áudio da gravação original do samba-enredo (primeira passada) com a letra aparecendo em legendas no rodapé da tela e trechos de cenas do desfile do ano anterior da respectiva escola. Uma ousadia para a época, pois, em média, cada audição durava dois minutos e meio.

Uma ousadia que a ferrenha concorrência da Globo não poderia suplantar, haja vista que 150 segundos é considerado muito tempo em termos comerciais e que a líder audiência não teria como dispender em sua programação. E assim, em 1986 e 1987, a Manchete fez com que seu público telespectador amante do carnaval aprendesse a letra do samba de sua escola nos intervalos da programação do canal.


Vinheta do Carnaval 86 da Manchete. Ao aparecer a característica, durante a programação da emissora, era o momento de “aprender o samba da sua escola”.

Só dois anos depois, em 1988, que a Globo adotou o mesmo sistema para apresentar o samba-enredo das escolas durante os intervalos comerciais, ainda assim não chegava à ousadia da TV Manchete, de dois minutos e meio. Quando muito, a Globo podia disponibilizar, no máximo, um minuto e meio do áudio do samba nos intervalos de sua programação – o que significaria a execução da primeira parte da letra do samba até o “refrão do meio”.

Chega o carnaval e estava tudo certinho para a transmissão dos desfiles. Globo iria exibir os dois dias do Grupo Especial e novamente o Sábado das Campeãs. A Manchete, como de praxe, cobertura total dos bailes, concursos de fantasias e desfiles das escolas de samba (Grupo Especial, no domingo e na segunda, e o Grupo 1-A, que naquele ano, aconteceu na Terça-feita Gorda).

Mas a Manchete prepara uma surpresa para toda a audiência, inclusive a concorrência. A emissora da Rua do Russel colocara no terraço de um dos prédios nas cercanias da Marquês de Sapucaí um enorme painel luminoso em neon com o logotipo da Manchete. O M em neon não parou de brilhar e de piscar uma só vez durante os quatro dias de transmissão. Um verdadeiro acinte, que colocou a Globo em polvorosa para tentar “esconder” ou no mínimo “maquiar” a logomarca da rival.


Painel gigantesco com a logo da Manchete em neon implantado em um terraço de um prédio nas cercanias da Sapucaí durante o desfile da São Clemente pelo Grupo 1-A.

Globo: transmissão ao vivo dos desfiles das escolas de samba do Grupo 1-A (Especial), nos dias 9 e 10 de fevereiro; compacto dos melhores momentos dos desfiles do Grupo 1-A, nas tardes dos dias 10 e 11; transmissão da apuração do carnaval, no dia 13, e do Desfile das Campeãs, no dia 15 de fevereiro.

Manchete: transmissão ao vivo dos desfiles das escolas de samba do Grupo 1-A, nos dias 9 e 10 de fevereiro; do Grupo 1-B, no dia 11; da apuração, no dia 13 de fevereiro, e do Desfile das Campeãs, no dia 15 de fevereiro. Transmissão de bailes carnavalescos e concursos de fantasias de luxo e originalidade. 

       1987 – Nasce o “pool” no carnaval e a guerra das logomarcas 

No mundo corporativo, um “pool” é um acordo temporário entre duas ou mais empresas para a execução de determinado projeto, gerando uma caixa única e rateando posteriormente os lucros entre as partes.

Nos meios de comunicação, um pool de imprensa envolve representantes de todos os tipos de mídia que se “associam” para cobrir um evento. O material é utilizado igualitariamente dado a todos no mesmo momento. Resumindo: aparentemente sem favorecimento à emissora a ou b.

Em 1987, a disputa entre Globo e Manchete se acirrava. A fim de apaziguar os ânimos acirradíssimos, Globo e Manchete assinaram um acordo de cooperação para a transmissão do carnaval de 1987, o famoso pool. Ficou definido que a Globo era responsável pela imagem e a Manchete pelo áudio. No entanto, até no pool se encontraram brechas para manter a rivalidade e a individualidade de cada empresa.

Um confronto de logotipos marcava a entrada do Sambódromo. A Globo queria dar uma resposta à altura àquele letreiro luminoso e acintoso com o símbolo da concorrente no carnaval do ano anterior. E fez um painel ainda maior do que o M em neon da Manchete.

Já a emissora da Família Bloch disponibilizou mil funcionários na Passarela do Samba e levou novidades como a câmera-robô – com grua e controle remoto – que garantia os melhores closes e dispensava a presença de um cameraman nos lugares onde isso era impossível, e um helicóptero para fornecer imagens aéreas da Avenida.

Neste primeiro tempo da peleja carnavalesca, a inovadora Manchete arrancou vencendo e manteve uma vantagem nos primeiros anos de sua rival. Mas a Globo é um império de comunicação e o império contra-atacou, como veremos no capítulo seguinte.


O famoso duelo de logotipos das emissoras no carnaval de 1987, na Sapucaí.

REFERÊNCIAS:

BRISOLARA, Gerson. A folia eletrônica acontece e vira manchete – Estudo de caso em que uma manifestação popular (carnaval do Rio de Janeiro) é absorvida por um meio de comunicação de massa (TV Manchete). Trabalho de conclusão no curso de Comunicação Social Habilitação em Jornalismo da UFRGS, 1994.

CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Lumiar Editora, 1996.

COSTA, Haroldo. 100 anos de carnaval no Rio de Janeiro. São Paulo, SP: Irmãos Vitale, 2001.

FARIAS, Edson Silva de. O desfile e a cidade: o carnaval-espetáculo carioca. 1995. 271 f. Campinas, SP.

FRANCFORT, Elmo. Rede Manchete: Aconteceu virou história. São Paulo: Coleção Aplauso Especial (1ª edição). Imprensa Oficial (IMESP). 2008.

GUERINI, Elaine. Tesourando o Carnaval. In: Folha de São Paulo, 15 de fevereiro de 1998.

MIGÃO, Pedro. Site Ouro de Tolo. Consultado em 8 de fevereiro de 2020.

OLIVEIRA SOBRINHO, José Bonifácio de. O livro do Boni. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2011.

PAMPLONA, Fernando. O encarnado e o branco. Rio de Janeiro: Ed. Nova Terra. 2013.

PRESTES FILHO, Luiz Carlos. O maior espetáculo da Terra: 30 anos de Sambódromo. Rio de Janeiro: Editora Lacre, 2015.

Gerson Brisolara (Rixxa Jr.)
rixxajr@yahoo.com.br