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Editorial SAMBARIO
Edição nº 76 - 16/05/2020


A DÉCADA NO SAMBA-ENREDO DA SAPUCAÍ - 2016 A 2020

A fim de atualizar o especial Os Sambas-Enredo na Era Sambódromo, que analisou os hinos que ecoaram na Sapucaí entre 1984 e 2009, seguimos aproveitando a quarentena para oferecer ao leitor do SAMBARIO uma atualização da série, que se iniciou com Os Sambas-Enredo na Era Pré-Sambódromo (dos primórdios até 1983). Damos sequência ao balanço musical dessa última década que passou no Sambódromo no Rio de Janeiro, abordando os anos de 2010 a 2020. O especial é dividido em duas partes: a primeira analisou até 2015 e esta segunda e última, que você começa a ler a partir de agora, falará dos sambas-enredo que embalaram a Sapucaí de 2016 a 2020.

Após relembrarmos a primeira metade da década, em que a encomenda aos compositores começou a ser mais comum e os refrães falsos passaram a ser mais utilizados, chegou a vez d
os enredos críticos e sociais, motivados principalmente pela gestão Marcelo Crivella e seu péssimo tratamento às escolas de samba. Sambas inesquecíveis foram cantados nestes últimos cinco anos.



Quem me chamou... Mangueira
Chegou a hora, não dá mais pra segurar
Quem me chamou... Chamou pra sambar
Não mexe comigo, eu sou a menina de Oyá
Não mexe comigo, eu sou a menina de Oyá

No primeiro desfile sem a famosa torre da TV (derrubada em julho de 2015) que atrapalhou por duas vezes a Mangueira, a verde-e-rosa começaria a mudar a história recente dos desfiles ao anunciar a contratação do jovem carnavalesco Leandro Vieira, que se destacou na Caprichosos de Pilares na Série A-2015. O artista de imediato lançou um enredo em homenagem a uma das maiores vozes da história da MPB, com direito a matéria no Jornal Nacional: "Maria Bethânia - A Menina dos Olhos de Oyá". Exaltar grandes nomes da música sempre foi sinônimo de conquistas para os mangueirenses, vide Braguinha, Dorival Caymmi e Chico Buarque. No entanto, o enredo teria um toque afro, do qual a escola não é acostumada. Logo, haveria muita expectativa quanto sua apresentação, a última do Grupo Especial de 2016. Ainda mais com os últimos desfiles ruins da escola e a arriscada aposta num carnavalesco novato.



Entra na roda, ô Maria
Gira a poeira
Quero ver você sambar
No embalo da Mangueira

Defendido por Bico Doce e Ciganerey (com este sucedendo Luizito após sua morte em setembro de 2015), o samba vitorioso na disputa que embalaria o campeonato da Mangueira (quebrando um jejum de 14 anos) tinha muita qualidade e é inesquecível, mantendo a marca da agremiação ser a única a vencer o Carnaval em todas as décadas. Mas a magistral obra concorrente do saudoso Tantinho, que caiu na semifinal, até hoje é lembrada por muito carinho pelos aficionados. De maneira ao próprio sambista gravá-la no CD lançado por Bethânia em homenagem à verde-e-rosa em 2019, "Mangueira - A Menina dos meus Olhos". Na minha opinião, o melhor samba-enredo derrotado da década.



É que eu sou malandro batuqueiro
Cria lá do morro do Salgueiro
Se não acredita, vem no meu samba pra ver
O couro vai comer!


Falando em sambas concorrentes, o Salgueiro teve uma disputa polêmica para o enredo "A Ópera dos Malandros". O estilo adotado foi o de mata-mata, denominado "Copa do Samba", em que dois sambas-enredo mediam forças entre si e um eliminava o outro a cada etapa. Dessa forma, sobraram quatro na semifinal. O hino favorito da presidente Regina Celi era o da parceria do jovem Antônio Gonzaga, cujo refrão representava um ponto de pomba-gira em
"Dói dói dói dói dói/um amor faz sofrer/dois amor faz chorar", sendo mantido o erro de concordância original. A obra derrotou o samba da parceria do saudoso David Corrêa no mata-mata, se classificando pra final contra a turma de Marcelo Motta e seu samba conhecido como "Malandro Batuqueiro", vitorioso diante do excelente concorrente de Xande de Pilares e parceiros. Na semana que antecedeu a final, os compositores do Salgueiro fizeram um manifesto contra o samba-enredo de Gonzaga, declarando apoio ao de Motta, que seria o vencedor na decisão. O "Malandro Batuqueiro" funcionou bem demais, promovendo um sacode na Sapucaí, sendo até hoje festejado pelos torcedores da Academia.

A boa safra de 2016 no Especial também foi representada por belos sambas como "
Semeando Sorriso, a Tijuca festeja o solo sagrado" (Unidos da Tijuca), "'É o amor, que mexe com a minha cabeça e me deixa assim'. Do sonho de um caipira, nascem os filhos do Brasil" (Imperatriz - apesar da participação comprometedora dos homenageados Zezé Di Camargo e Luciano no CD), "Memórias do 'Pai Arraia' - um sonho pernambucano, um legado brasileiro" (Vila Isabel), "Salve Jorge! O Guerreiro na Fé" (Estácio de Sá) e "No Voo da Águia, uma Viagem sem fim..." (Portela - vencedor do Estandarte).



Ó meu Brasil, cuidado com a intolerância
Tu és a pátria da esperança
À luz do Cruzeiro do Sul
Um país que tem coroa assim tão forte
Não pode abusar da sorte
Que lhe dedicou Olorum

Mas o melhor samba-enredo daquele ano em todos os grupos do Carnaval Carioca viria da Série A. A Viradouro, recém de volta ao Acesso, passava por problemas financeiros quando lançou o enredo "
O Alabê de Jerusalém, a Saga de Ogundana", baseado na ópera do compositor Altay Veloso. O samba-enredo primoroso entra facilmente no rol não só dos melhores da década, como também da história dos grupos de acesso, com a entrada definitiva do musico Paulo César Feital no mundo do Carnaval ajudando a crescer a qualidade das obras na segunda metade do decênio. A imagem de Zé Paulo Sierra defendendo o samba na Sapucaí vestido de São João Batista, o santo padroeiro da vermelho-e-branco de Niterói citado no refrão, ficou na memória dos aficionados.

Sobre o CD da Série A-2016, mais uma vez a produção foi entregue pela LIERJ a Ivo Meirelles, encarregado do disco do Acesso-2009, interrompendo novamente a sequência de Leonardo Bessa, mesmo após este ter apresentado um produto elogiado pela crítica no ano anterior. Mas a gravação dos sambas num estilo precário de gosto duvidoso, com uma espécie de tamanco marcando as primeiras passadas das faixas, além de diversos erros técnicos nos registros, desagradaram os amantes de samba-enredo. Até um "espírito" do compositor Silas de Oliveira apareceu na faixa do Império Serrano. Pelo menos compensou no álbum a participação ilustre de Elba Ramalho no bom samba da União do Parque Curicica, "Corações Mamulengos". Outros ótimos sambas do disco contestado:
"Ibejís - Nas brincadeiras de criança: os orixás que viraram santos no Brasil" (Renascer de Jacarepaguá) e "Ogum" (Alegria da Zona Sul). Na Intendente, chamou atenção positivamente o samba "O Circo do Menino Passarinho", sem rimas e com um "lalalaiá" como refrão, que ajudou a Acadêmicos do Sossego a ser campeã do Grupo B e subir pra Sapucaí.

Em setembro de 2016, o presidente da Portela, Marcos Falcon, é assassinado na frente de seu comitê eleitoral em Madureira. Ele não vê o bispo Marcelo Crivella se eleger prefeito do Rio de Janeiro, depois deste fazer campanha junto com as escolas de samba, receber o apoio delas e puxar com os dirigentes o refrão "Pega no Ganzê" do Salgueiro de 1971. Seria o maior erro que as agremiações cometeriam. Já com o novo mandatário da cidade e sua recusa em entregar a chave da cidade para o Rei Momo, além de falar publicamente em tirar dinheiro do Carnaval pra investir nas creches, a energia passada pelo bispo nos desfiles de 2017 parecia de fato ser negativa. O acidente na manobra da alegoria do Paraíso do Tuiuti resultou na morte da jornalista Liza Carioca, além de vários feridos. Pouco depois, a estrutura do carro da Unidos da Tijuca cederia, machucando vários componentes. Os acidentes motivariam a aprovação da virada de mesa horas antes da apuração, livrando Unidos da Tijuca e Paraíso do Tuiuti do rebaixamento.



A Jandaia cantou no alto da palmeira
No nome de Iracema
Lábio de mel, riso mais doce que o jati
Linda demais, cunhã-porã itereí
Vou cantar Juremê, Juremê, Juremê
Vou contar Juremá, Juremá
Uma história de amor, meu amor
É o carnaval da Beija-Flor

Bruno Ribas encarnou um índio pro clipe da versão concorrente do "Juremê" - década também marcou pelos clipes dos compositores

O melhor samba de 2017 na elite é o que seria conhecido como "Juremê". A Beija-Flor levou pra Sapucaí uma arrojada composição aclamada desde as primeiras audições antes das eliminatórias: "Iracema, a Virgem dos Lábios de Mel". O clipe produzido pelos compositores apresenta uma produção abastada, com encenações de atores fantasiados de índios, entre eles o intérprete Bruno Ribas, um dos autores do samba. Tais clipes estavam na moda desde a produção envolvendo a versão concorrente de Vila Isabel 2013 (Festa no Arraiá), reforçada pelo samba salgueirense de 2014 "Gaia", cujo filme da parceria também fez sucesso entre o nicho. Outro belo samba da safra é o da União da Ilha, num raro momento de inspiração contemporâneo dos compositores insulanos: "Nzara Ndembu - Glória ao Senhor Tempo". A Mangueira também cantou uma boa obra: "Só com a Ajuda do Santo".



Da ancestralidade se formou
Em mãos de prata, o negro da canção
Um passo, um giro, um toque de tambor
Milongueiro tango é pura sedução
Milongueiro tango é pura sedução
Um passo, um giro, um toque de tambor
Em mãos de prata, o negro da canção
Da ancestralidade se formou


A Vila Isabel levou um bom samba pra Sapucaí pra representar o enredo "O Som da Cor". No entanto, o desperdício, na final da disputa interna da Vila, do sambaço da parceria de André Diniz e Evandro Bocão, deixou "viúvos" muitos amantes do Carnaval. Numa homenagem ao compositor Leonel, assassinado meses antes, a letra foi construída no formato de acróstico, formando, em suas primeiras letras, o verso "O tema musical deu mais saudade, Leonel". O refrão do meio invertido era outra atração do hino, que recebeu um clipe de divulgação com vários notáveis do mundo do Carnaval cantando a obra, entre eles Rosa Magalhães (!).



Brilha o Cruzeiro do Sul no oriente de Alah
Céu de Sherazade
Vem pro Marrocos, meu bem
Vem minha Vila Vintém
Sonha Mocidade


O título seria dividido em 2017. Na Quarta-Feira de Cinzas, a Portela celebrou sozinha a quebra de um longo jejum de 33 anos com o belo samba "
Quem nunca sentiu o corpo arrepiar ao ver esse Rio passar...". Mas, pouco tempo depois, com a divulgação das justificativas, um erro de avaliação de um jurado ao tirar um décimo decisivo da Mocidade através de um manual desatualizado fornecido pela LIESA faria com que a Liga decretasse a verde-e-branco campeã, encerrando uma sequência de 21 anos sem títulos pelas bandas de Padre Miguel. A escola iniciaria a partir dali uma bela sequência de sambas-enredo, com a parceria encabeçada por Paulo César Feital e Altay Veloso proporcionando à Mocidade uma belíssima composição musical para o tema "As Mil e uma Noites de uma 'Mocidade' pra lá de Marrakech" (como esquecer do Aladdin da comissão?). Era o renascimento da Estrela Guia depois de 14 anos de ausência do Sábado das Campeãs.



Almirante João
Sou Carolina de Jesus
Carrego papelão, você navega sua cruz
Na correnteza a sua voz foi mergulhar
Eu fiz dos versos a fortaleza pra morar
Sou a filha da miséria
Você nasceu pra guerrear
Nós somos a liberdade
Eu sou papel, você é o mar

O CD da Série A 2017. O melhor disco de samba-enredo da década

Devido ao trabalho contestado de Ivo Meirelles, a LIERJ devolve a Leonardo Bessa a produção do CD da Série A-2017, onde está até hoje. E com o intérprete, a sofisticação nas faixas volta, com arranjos bem trabalhados, através do capricho nas cordas e nos teclados. O álbum é um dos melhores tecnicamente da história do gênero, com a bela safra ajudando na qualidade do disco. Em mais uma encomenda da Renascer para Moacyr Luz, Cláudio Russo e Diego Nicolau, "O Papel e o Mar" resulta num dos grandes momentos fonográficos de todos os tempos no Carnaval, com uma produção impecável de Leonardo Bessa e o entrosamento afiado de Nicolau e Evandro Malandro, no último ano da dupla reunida na escola. Samba magistral, outro pra lista dos melhores da década, mas que perderia o Estandarte na Série A para a Unidos de Padre Miguel. "
Ossain - o Poder da Cura" é mais um arranjo impressionante que o maravilhoso disco da Série A-2017 oferece, aliada a uma grande interpretação de Pixulé.

A excelente safra oferece outros belíssimos sambas, como "
...e Todo Menino é um Rei" (Viradouro - num emocionante dueto entre Zé Paulo Sierra e o veteraníssimo Dominguinhos do Estácio), "Versando Nogueira nos cem anos do ritmo que é nó na madeira" (Cubango - participação de Diogo Nogueira), "Meu Quintal é maior do que o Mundo" (Império Serrano) e "Zezé Motta, a Deusa de Ébano" (Acadêmicos do Sossego - samba criado no formato de diálogo, com a grandiosa participação da homenageada na faixa). Na Intendente, a Unidos do Ponte trouxe um hino à altura de uma das grandes vozes do samba: "Roberto Ribeiro, o Menino Rei".

O espantalho de Crivella com o Judas malhado no Sábado de Aleluia 

Meses depois, o prefeito Marcelo Crivella anuncia o corte da subvenção das escolas de samba, reduzindo de R$ 26 milhões para R$ 13 milhões, com a justificativa de que iria dobrar o valor destinado às creches. Ou seja, cada agremiação receberia 1 milhão ao invés de 2, visando o Carnaval 2018. A atitude do bispo revolta as agremiações, que se sentem traídas, além do mandatário também não bancar os ensaios técnicos. Assim, boa parte dos enredos para aquela temporada se tornam críticos. A retaliação de Leandro Vieira seria em forma de arte. O desfile do tema "
Com Dinheiro ou sem Dinheiro, eu Brinco!" fixou na mente do amante das escolas de samba a representação de Crivella como boneco de Judas, na alegoria que continha os dizeres "Prefeito, pecado é não brincar o Carnaval", numa citação ao verso do refrão do bom samba mangueirense. Outro hino muito elogiado naquele ano é o da Imperatriz: "Uma Noite Real no Museu Nacional". Meses depois do desfile, o Museu de 200 anos sofreria um incêndio de grandes proporções, com quase todo seu conteúdo incinerado.



Bendita seja a Santíssima Trindade!
Em Nova Délhi ou no céu tupiniquim
Ronca na pele do tambor da eternidade
O amor da Mocidade sem início, meio e fim!


A safra de 2018 oferece pelo menos três sambas que serão lembrados por muito tempo pelos bambas. Primeira faixa do CD após vencer um sorteio diante da Portela, "
Namastê: a Estrela que habita em mim saúda a que existe em você" manteve a excelência no nível do samba anterior da Mocidade, sendo mais uma vez composto pela parceria de Feital-Altay. Não pegou bem para os bambas a imensa introdução de mais um minuto com Wander Pires cantando o refrão no estilo acústico, alusivo que marca a abertura do disco. Mas o experiente intérprete compensaria na sequência com uma gravação impecável para o sambaço (o hilário caco "desemboca desemboca desemboca" apareceu apenas no desfile). O Estandarte de Ouro de melhor samba iria para Padre Miguel.



Meu Deus! Meu Deus!

Se eu chorar não leve a mal
Pela luz do candeeiro
Liberte o cativeiro social

Não sou escravo de nenhum senhor
Meu Paraíso é meu Bastião
Meu Tuiuti, o Quilombo da favela
É sentinela da libertação


Beneficiado pela virada de mesa no ano anterior, o Paraíso do Tuiuti, pela primeira vez desde os anos 50, conseguiu a permanência no Grupo Especial pelo segundo ano consecutivo. A agremiação resolveu inovar e trazer para a elite do Carnaval o expediente da encomenda, algo que a Renascer de Jacarepaguá já fazia na Série A desde 2014. Para o enredo "Meu Deus, meu Deus, está Extinta a Escravidão?", título inspirado no verso do clássico "Sublime Pergaminho" (Unidos de Lucas - 1968), os compositores Cláudio Russo e Moacyr Luz (os mesmos da Renascer), mais Jurandir, Zezé e Aníbal, foram os encarregados do samba-enredo que se tornaria antológico. No CD, uma sublime gravação de Grazzi Brasil, Nino do Milênio e Celsinho Mody (trio estreante no Grupo Especial do Rio). Na Sapucaí, a obra teve um desempenho espetacular e emocionou no desfile inesquecível que levaria a escola a um inédito vice-campeonato. A comissão de frente com os escravos açoitados até quebrarem as correntes e os pretos velhos saindo da senzala entrou pra história do Carnaval.



Estenda a mão, meu senhor
Pois não entendo tua fé
Se ofereces com amor
Me alimento de axé
Me chamas tanto de irmão
E me abandonas ao léu
Troca um pedaço de pão
Por um pedaço de céu

Ganância veste terno e gravata
Onde a esperança sucumbiu
Vejo a liberdade aprisionada
Teu livro eu não sei ler, Brasil!
Mas o samba faz essa dor dentro do peito ir embora
Feito um arrastão de alegria e emoção, o pranto rola
Meu canto é resistência
No ecoar de um tambor
Vem ver brilhar
Mais um menino que você abandonou


Outra que faria história naquele 2018 foi a Beija-Flor. Com uma proposta diferente de desfile para o enredo "Monstro é Aquele que não sabe Amar. Os Filhos Abandonados da Pátria que os pariu", a Deusa da Passarela dividiu opiniões com uma apresentação marcada por inúmeros elementos sem carnavalização. Um rato gigante no meio de caixas no abre-alas, além de encenações de assaltos a mão armada e lamentos pela perda de entes queridos, passaram sob a trilha do extraordinário samba-enredo, que não poupava críticas a Crivella e aos templos de pastores milionários. A música para muitos foi a responsável direta pela conquista do mais contestado título nilopolitano de todos. Mais uma vez, a Beija-Flor fechava os desfiles rumo a gritar "é campeão" na Quarta-Feira de Cinzas. E na volta do Troféu Sambario naquela temporada, o samba foi eleito o melhor do ano pela equipe do site dos sambas-enredo.

A Série A apresentava mais uma boa safra em 2018. A lista das boas obras do Acesso daquela temporada: "
O Eldorado Submerso - Delírio Tupi-Parintintin" (Unidos de Padre Miguel - vencedor do Troféu Sambario de melhor samba do grupo), "O Rei que Bordou o Mundo" (Cubango - premiado com o Estandarte), "Mojú, Magé, Mojubá - Sinfonias e Batuques" (Inocentes de Belford Roxo), "Renascer de Flechas e de Lobos" (Renascer de Jacarepaguá), "Ritualis" (Acadêmicos do Sossego) e "A Travessia da Calunga Grande e a Nobreza Negra no Brasil" (Unidos de Bangu). O fato mais triste daquele Carnaval foi a não-apresentação da Caprichosos de Pilares para o desfile, ameaçando seriamente enrolar a bandeira. Dias depois, a LIESA viraria a mesa pelo segundo ano seguido, mantendo as rebaixadas Grande Rio e Império Serrano no Grupo Especial. A alegação principal é que haveria prejuízo com a ausência do camarote da Grande Rio nas duas principais noites na Sapucaí. A LIERJ também decide manter a última colocada Acadêmicos do Sossego na Série A.



Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra


Salve os caboclos de julho

Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês

Para 2019, as escolas sofrem mais um corte de 50% da subvenção por parte de Crivella, com cada uma do Grupo Especial passando a receber R$ 500 mil. Os ensaios técnicos são confirmados em cima da hora e as agremiações conseguem treinar na Sapucaí pouco tempo antes do Carnaval. Ainda sob o impacto do assassinato da vereadora Marielle Franco em março de 2018, a Mangueira traz o enredo "História para Ninar Gente Grande", que exalta grandes nomes esquecidos nos livros de História do Brasil. Marielle é citada na letra do extraordinário samba (de Manu da Cuíca e Luiz Carlos Máximo, porém não assinado por ambos), mesmo não constando na sinopse desenvolvida por Leandro Vieira. No entanto, ela se tornaria posteriormente um dos fios condutores do enredo, sendo exaltada na comissão de frente do festejado desfile, que daria à verde-e-rosa mais um título, com a Estação Primeira cantando um dos melhores sambas de sua história. Estandarte de Ouro e Troféu Sambario no quesito.

Outros sambas que se destacam na safra: "O Salvador da Pátria" (Paraíso do Tuiuti - em mais uma encomenda), "Xangô" (Salgueiro), "Na Madureira Moderníssima, Hei Sempre de Ouvir Cantar uma Sabiá" (Portela), "Eu sou o Tempo. Tempo é Vida" (Mocidade) e "Cada Macaco no seu Galho. Ó, meu Pai! Me dê o Pão que eu não Morro de Fome!" (Unidos da Tijuca - com o ótimo concorrente derrotado na final de Dudu Nobre sendo aproveitado pela Camisa 12 no Grupo de Acesso 2 de São Paulo). A São Clemente reeditou seu clássico de 1990 "E o Samba Sambou...".

Enquanto a Imperatriz Leopoldinense amargaria seu primeiro rebaixamento em 40 anos, o Império Serrano não aproveitou sua nova chance no Grupo Especial do jeito mais adequado. Ao aceitar a estapafúrdia proposta do carnavalesco Paulo Menezes de transformar o clássico da MPB de Gonzaguinha "O que é, o que é?" em enredo, a presidente Vera Lúcia sepultou qualquer possibilidade de sucesso no desfile. Até porque a música claramente não foi criada para embalar um desfile de Carnaval, sobretudo na segunda parte trava-língua da canção, ainda mais com a bateria acelerada dos tempos atuais. E de fato, o Império abriu o Carnaval (ao aceitar ser a primeira, favorecendo a Viradouro mesmo vinda do Acesso) com uma apresentação confusa e de plástica de mau gosto, se credenciando fortemente ao descenso, o que de fato ocorreu. O "viver e não ter a vergonha de ser feliz" não emplacou na pista e o precedente não foi aberto.

Na Série A, a Unidos da Ponte voltava à Sapucaí reeditando seu samba de 1984 "Oferendas". A Cubango cantou "
Igbá Cubango - A Alma das Coisas e a Arte dos Milagres" e o samba levou o Estandarte e o Troféu Sambario. Já a Santa Cruz iniciaria uma sequência de sambas-enredo encomendados a Samir Trindade, Elson Ramires e Júnior Fionda, de qualidade excelente. Uma das maiores atrizes brasileiras recebeu uma homenagem à altura e ainda em vida em "Ruth de Souza – Senhora Liberdade, Abre as Asas sobre Nós". Ruth morreria poucos meses depois do desfile. Outros bons sambas da safra mediana do Acesso em 2019: "A Fé que Emerge das Águas" (Estácio de Sá) e "Dois de Fevereiro, no Rio Vermelho" (Renascer). A Porto da Pedra, ao homenagear Antônio Pitanga, desperdiçou o belíssimo concorrente de Altay Veloso e Paulo César Feital, para tristeza dos aficionados. E a Caprichosos mais uma vez fica ausente do Carnaval.

Capa do CD da Série A-2020 - recorde de encomendas no grupo

Após uma tentativa frustrada de virada de mesa (seria a terceira seguida), a Imperatriz contrata Leandro Vieira, que desenvolve a reedição do clássico de 1981 "Só dá Lalá". Os gresilenses sobram no desfile da Série A-2020, voltando com tranquilidade ao Grupo Especial. Assim como no ano anterior, Cubango e Santa Cruz novamente se destacam no Acesso com ótimos sambas. A escola de Niterói canta "
A Voz da Liberdade" e ganha o Troféu Sambario de melhor samba-enredo do grupo, enquanto a agremiação da Zona Oeste entoa "Santa Cruz de Barbalha - Um conto popular no Cariri Cearense" (mais uma vez encomendado aos mesmos autores de 2019, além de Rildo Seixas) e fatura o Estandarte.

Numa safra repleta de encomendas, quatro delas para um determinado grupo de 12 compositores (com poucas variações de nomes por escola),
os outros sambas destaques da Série A-2020 são: "Ginga" (Unidos de Padre Miguel), "Eu que te Benzo, Deus que te Cura" (Renascer), "Marta do Brasil - Chorar no Começo para Sorrir no Fim" (Inocentes de Belford Roxo) e "A Guerreira Negra que Dominou Dois Mundos" (Rocinha, com Cláudio Russo tendo apenas 72 horas pra fazer o samba e entregar no fim do prazo estabelecido pela LIERJ). Dos 14 hinos da chave, apenas cinco foram eleitos em eliminatórias convencionais nas quadras. Completam o número oito encomendas e uma reedição.

CD 2020 marca o retorno das gravações integrais no estúdio

Mesmo com um Carnaval sem ensaios técnicos, sem subvenções e com a ameaça da chegada do novo Coronavírus (COVID-19) ao Brasil, as escolas do Grupo Especial realizam um grandioso espetáculo em 2020, ano que se mostraria problemático pouco tempo depois. A grande novidade no CD foi o fim das gravações na Cidade do Samba, evento que anualmente atraía milhares de pessoas desde 2010 para a gravação do coral dos componentes, além das bases de bateria. O registro fonográfico voltou a ser integralmente no estúdio, como foi de 1999 a 2009. Com o crescimento das plataformas digitais, o CD físico se torna cada vez mais difícil de se encontrar nas lojas. A tendência é que as tiragens diminuam a cada ano.



Firma o ponto no terreiro pra Kizomba começar
Vai ter samba de Caboclo, xetruê xetruá
No poder do Ofá, na magia do afefé
Hoje cada caxiense é o rei do candomblé

A Grande Rio, buscando um retorno às origens através dos banhos de cultura dos anos 90, anunciou o enredo "
Tata Londirá: O Canto do Caboclo no Quilombo de Caxias", da jovem dupla de carnavalescos recém-contratada da Cubango, Leonardo Bora e Gabriel Haddad. A homenagem ao pai-de-santo Joãozinho da Goméia proporcionou uma das melhores safras de concorrentes dos últimos tempos no Carnaval Carioca, com a inovação do intérprete Evandro Malandro ter gravado 25 das 30 obras inscritas no concurso. Entre tantos sambas magnificos, destacaram-se dois. O primeiro, da parceria de Myngal, caiu na semifinal da disputa interna. Mas o hino conhecido como "Xetruê Xetruá" caiu na boca do povo que acompanha as eliminatórias.



Salve o candomblé, eparrei Oyá
Grande Rio é Tata Londirá
Pelo amor de Deus, pelo amor que há na fé
Eu respeito seu amém
Você respeita meu axé
(Respeita o meu axé)


O outro foi pra Sapucaí ainda mais festejado pelo nicho. O "pedra preta" despontou com amplo favoritismo para faturar o Estandarte e o Troféu Sambario, o que ocorreria. Melhor samba da Tricolor de Duque de Caxias em mais de duas décadas, a escola em 2020 sepultou a antipatia que nutria com parte dos bambas pelo excesso de globais e temas desinteressantes superestimados pelo júri da LIESA em vários anos. A Grande Rio só não comemorou sua primeira conquista por problemas na evolução no início do desfile, com a demora da entrada do abre-alas, encerrando a apuração em segundo lugar.



Oh mãe ensaboa
Mãe ensaboa pra depois quarar


A Viradouro em seu segundo ano seguido no Grupo Especial, depois de ser vice-campeã no ano anterior com Paulo Barros, mais uma vez faria um excelente desfile apesar da incômoda posição de segunda escola a entrar no domingo (como em 2019). Agora com os jovens carnavalescos Tarcísio Zanon e Marcus Ferreira, "Viradouro de Alma Lavada" também recebeu uma excelente safra para celebrar as ganhadeiras de Itapuã. No entanto, belas obras foram deixadas de lado em prol do hino com o grudento refrão "ensaboa" e a promessa e o potencial de promover um sacode no Sambódromo. O vibrante samba, aliado à explosiva atuação de Zé Paulo Sierra e suas famosas chamadas para o Mestre Ciça, embalou a vermelho-e-branco de Niterói rumo ao seu segundo campeonato (o primeiro foi em 1997).



Laroyê ê mojubá… liberdade
Abre os caminhos pra Elza passar… salve a Mocidade!
Essa nega tem poder, é luz que clareia
É samba que corre na veia


Há de se enaltecer novamente a Mocidade, terceira colocada. O emocionante e valente samba-enredo "Elza Deusa Soares" (assinado, entre outros, por Sandra de Sá) também fez jus à toda a trajetória de Elza, torcedora, ex-intérprete da verde-e-branco de Padre Miguel e uma das maiores vozes da música brasileira. Outros belos sambas da safra:
"A Verdade vos fará Livre" (Mangueira - numa belíssima letra de Manu da Cuíca e Luiz Carlos Máximo para o polêmico enredo que representou Jesus como morador do morro da Mangueira), "Guajupiá - Terra sem Males" (Portela - que muitos consideraram parecido com toada em virtude da passada da versão concorrente gravada no ritmo) e "Se Essa Rua Fosse Minha" (Beija-Flor). O humorista Marcelo Adnet estreou como autor de samba-enredo, vencendo a eliminatória da São Clemente.

Além do Paraíso do Tuiuti, a Unidos da Tijuca também apelou para a encomenda do samba pra nomes como Jorge Aragão, Dudu Nobre e André Diniz. Já a Vila Isabel elegeu o samba-enredo numa disputa secreta com a divulgação apenas do hino vitorioso, proibindo os demais concorrentes de vazarem. A Mangueira lançou um concurso mais econômico, através da exclusividade dos cantores do carro de som da verde-e-rosa para defenderem as composições das parcerias, em gravações padronizadas.

Na Intendente, um racha envolvendo a LIESB (Liga Independente das Escolas de Samba do Brasil) gera a LIVRES
(Liga Independente Verdadeira Raízes das Escolas de Samba), uma liga dissidente que a princípio ganha diversas adesões, entre elas a da Caprichosos de Pilares, que com nova diretoria retoma as atividades. A azul-e-branco posteriormente mudaria de ideia, se filiando à LIESB, que unificaria os Grupos B e C, formando o Grupo Especial da Intendente, onde o Arranco reedita o enredo de 2006 "Gueledés - O Retrato das Almas". Por muito pouco, a escola não consegue desfilar, devido a uma não-autorização dos familiares do compositor Juan Espanhol (falecido em fevereiro de 2019 e homenageado com um Troféu Sambario póstumo) para a utilização do samba, com o impasse sendo solucionado.

O Grupo de Acesso da Intendente é a nova nomenclatura do antigo Grupo D, sendo vencido pela Caprichosos, que repete seu tema de 1979 "Uruçumirim, Paraíso Tupinambá". Já a LIVRES realiza seu desfile com apenas seis escolas, logo após a apresentação do Especial da Intendente promovida pela LIESB. A Tradição (cuja presidente é a mesma mandatária da LIVRES) se sagra campeã e irá pleitear na Justiça o direito de voltar à Passarela do Samba no próximo Carnaval, já que a LIERJ reconhece por enquanto apenas a ascensão das duas escolas da LIESB (a campeã Lins Imperial e a vice Em Cima da Hora). 

Haverá Carnaval em 2021? Não se sabe. Vivemos um momento de profundas incertezas. E muitas perdas. Além de tudo, temos de amargar a profusão de fake news e achismos, que insistem em colocar a culpa integral no Carnaval pelas mazelas e as centenas de mortes diárias. Por isso, é fundamental a propagação do levantamento publicado pelo site da LIGA SP, que mostra que o primeiro caso de COVID-19 no Brasil ocorreu em 26 de fevereiro, na Quarta-Feira de Cinzas, através de um viajante que retornou da Itália pra São Paulo, bem antes da primeira transmissão comunitária (13 de março - dois dias depois da OMS decretar a pandemia mundial). Até meados de março, tínhamos uma vida normal, não só com o Carnaval acontecendo. Havia também jogos de futebol e shows realizados normalmente, além de serviços não-essenciais funcionando, entre outros eventos. Portanto, o ideal é deixar a hipocrisia e a teimosia de lado, e não se levar pela ignorância que infelizmente predomina nesse país, incentivada por quem jamais deveria estar no poder.

Se puder, fique em casa! Se tiver que sair, use máscara e procure lavar as mãos ou passar álcool gel com frequência.

Vai passar!

TOP 20 – SAMBAS-ENREDO
Os vinte melhores sambas da Sapucaí do período entre 2010 e 2020, na opinião de Marco Maciel (o ranking não inclui sambas reeditados)

1º Bahia: E o povo na rua cantando... é feito uma reza, um ritual (Portela – 2012)
2º A Vila Canta o Brasil, Celeiro do Mundo - "Água no Feijão que chegou mais um" (Vila Isabel – 2013)
3º História para Ninar Gente Grande (Mangueira – 2019)
4º Monstro é Aquele que não sabe Amar. Os Filhos Abandonados da Pátria que os pariu (Beija-Flor – 2018)
5º Meu Deus, meu Deus, está Extinta a Escravidão? (Paraíso do Tuiuti – 2018)
6º O Alabê de Jerusalém, a Saga de Ogundana (Viradouro – 2016)
7º Tata Londirá: O Canto do Caboclo no Quilombo de Caxias (Grande Rio – 2020)
8º O Papel e o Mar (Renascer de Jacarepaguá – 2017)
9º Namastê: a Estrela que habita em mim saúda a que existe em você (Mocidade – 2018)
10º Iracema, a Virgem dos Lábios de Mel (Beija-Flor – 2017)
11º Brasil de Todos os Deuses (Imperatriz – 2010)
12º Você Semba Lá... que eu Sembo Cá! O Canto Livre de Angola (Vila Isabel – 2012)
13º Axé Nkenda - Um Ritual de Liberdade - E que voz da igualdade seja sempre a nossa voz (Imperatriz – 2015)
14º As Mil e uma Noites de uma 'Mocidade' pra lá de Marrakech (Mocidade – 2017)
15º Candeia! Um Manifesto ao Povo em Forma de Arte (Renascer de Jacarepaguá – 2015)
16º Noel: a presença do "Poeta da Vila" (Vila Isabel – 2010)
17º Elza Deusa Soares (Mocidade – 2020)
18º Gaia, a Vida em Nossas Mãos (Salgueiro – 2014)
19º ImagináRio - 450 Janeiros de uma Cidade Surreal (Portela - 2015)
20º Negra Pérola Mulher (Império da Tijuca – 2013)