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A CIDADE EM DISPUTA: O SAMBÓDROMO NAS PÁGINAS DO JORNAL DO BRASIL





16 de dezembro de 2025, nº 17

Quando o projeto de construção de uma passarela fixa para os desfiles das escolas de samba começou a ganhar forma concreta no início da década de 1980, o Jornal do Brasil já vinha acompanhando, há pelo menos uma década, o deslocamento progressivo do Carnaval carioca de uma manifestação espontânea e territorialmente difusa para um espetáculo cada vez mais organizado, televisionado e integrado às políticas públicas de turismo e cultura. A decisão do governo estadual de implantar, na Rua Marquês de Sapucaí, uma estrutura permanente para os desfiles não surgiu, portanto, como um fato isolado nas páginas do JB, mas como o ponto culminante de um debate que atravessava temas caros àquele jornal: planejamento urbano, preservação da memória da antiga Praça Onze, impacto social das grandes obras e a instrumentalização simbólica da cultura popular pelo poder público.

Desde os primeiros anúncios oficiais, o JB tratou a futura passarela — posteriormente batizada de Sambódromo da Marquês de Sapucaí — como um acontecimento urbano de grande porte, capaz de reorganizar fluxos, redefinir paisagens e alterar de maneira definitiva a experiência do Carnaval. Reportagens publicadas ainda em 1983 informavam sobre a escolha do local, o desenho preliminar das arquibancadas, o número de espectadores previstos e a intenção declarada do governo de “dar dignidade estrutural ao desfile das escolas de samba”, expressão recorrente em declarações oficiais reproduzidas pelo jornal. Ao mesmo tempo, o JB não abdicava de sublinhar a pressa com que a obra era conduzida, ressaltando que o calendário do Carnaval de 1984 impunha prazos exíguos e decisões administrativas aceleradas, o que, para muitos especialistas ouvidos pelo jornal, ampliava os riscos técnicos e sociais do empreendimento.

A presença do arquiteto Oscar Niemeyer como autor do projeto foi tratada pelo JB como um elemento de prestígio e de legitimação simbólica da obra. As matérias destacavam os traços monumentais das arquibancadas, a linearidade da passarela e a concepção do espaço como um “teatro popular a céu aberto”, expressão atribuída ao próprio arquiteto em entrevistas reproduzidas parcialmente pelo jornal. Fotografias de maquetes, croquis e do canteiro de obras ocuparam páginas inteiras, acompanhadas de textos explicativos que buscavam traduzir para o leitor comum a lógica arquitetônica do projeto e sua inserção no tecido urbano da Cidade Nova.

Entretanto, se o discurso arquitetônico aparecia frequentemente associado à ideia de modernização e grandiosidade, o Jornal do Brasil fez questão de registrar, de maneira sistemática, as reações críticas à intervenção. Moradores da região, advogados de associações locais e representantes de movimentos comunitários encontraram espaço nas páginas do jornal para expressar preocupações com remoções, valorização imobiliária forçada e perda de referências históricas. Em uma reportagem de cunho claramente social, publicada ainda durante a fase de terraplenagem, um líder comunitário afirmava que “a cidade se mobiliza para quatro dias de festa, mas ignora décadas de abandono cotidiano”, frase que o JB destacou como síntese da tensão entre espetáculo e cidadania.

Essa ambivalência — entre o reconhecimento da importância cultural do Carnaval e a crítica às assimetrias produzidas por grandes obras — atravessou toda a cobertura do jornal. O Jornal do Brasil parecia consciente de que o Sambódromo não era apenas uma infraestrutura festiva, mas um marco de política cultural e urbana, inserido num contexto político particularmente sensível. À frente do governo estadual estava Leonel Brizola, figura central da redemocratização e personagem recorrente nas páginas do JB, tanto em matérias informativas quanto em colunas políticas. Embora o confronto mais direto de Brizola com a grande imprensa se desse, notoriamente, com o grupo Globo, o clima de tensão entre governo e meios de comunicação formava o pano de fundo sobre o qual toda grande iniciativa administrativa era avaliada.

Nesse contexto, o Jornal adotou uma postura que combinava distanciamento crítico e rigor informativo. Noticiou, por exemplo, os custos estimados da obra, as fontes de financiamento e as decisões administrativas que permitiram sua execução em tempo recorde, mas também publicou artigos e editoriais que questionavam prioridades orçamentárias num estado marcado por carências estruturais profundas. O Sambódromo surgia, assim, simultaneamente como símbolo de afirmação cultural e como alvo de questionamentos sobre o papel do Estado na mediação entre festa, mercado e direitos sociais.

Outro aspecto recorrente na cobertura foi a evocação da memória da antiga Praça Onze, território simbólico do samba carioca, destruído pelas reformas urbanas do início do século XX. Frequentemente, se lembrava que a Marquês de Sapucaí está situada nas imediações desse espaço histórico, estabelecendo uma narrativa de continuidade e ruptura: continuidade na centralidade do samba para a identidade da cidade; ruptura na forma como esse samba passava a ser apresentado, enquadrado e consumido. Em textos de cunho mais ensaístico, publicados no caderno cultural, articulistas do JB sugeriam que o Sambódromo institucionalizava o desfile, transformando-o definitivamente em espetáculo programado, com consequências estéticas e políticas ainda difíceis de medir.

Às vésperas do Carnaval de 1984, quando a inauguração da passarela já era dada como certa, o tom das matérias passou a incorporar um certo suspense. Reportagens diárias acompanhavam o avanço das obras, descrevendo a montagem das arquibancadas, a instalação da iluminação e os testes de segurança. O Jornal do Brasil registrou, com minúcia quase cronística, a ansiedade das escolas de samba diante da nova configuração do desfile, bem como as adaptações exigidas pelos regulamentos e pela própria arquitetura do espaço. Após a realização dos primeiros desfiles, o jornal publicou balanços críticos, apontando acertos e problemas, desde a visibilidade do público até a dinâmica da evolução das escolas na passarela.

O conjunto dessa cobertura revela um jornal atento à complexidade do fenômeno que narrava. Ao registrar vozes oficiais e dissidentes, ao combinar dados técnicos, memória histórica e análise política, o Jornal do Brasil deixou um testemunho fundamental para compreender como a cidade do Rio de Janeiro reinventou seu Carnaval e, ao mesmo tempo, projetou sobre ele as contradições de sua vida urbana no início da Nova República.






Jornalistas e repórteres do Jornal do Brasil ligados à cobertura urbana e do Sambódromo

Gilberto Velho

Antropólogo e colaborador frequente do JB, publicou artigos e ensaios no Caderno B e em espaços de opinião tratando da transformação das festas populares, da institucionalização do Carnaval e da relação entre cultura, cidade e poder público. Seus textos não eram reportagens factuais de obra, mas análises interpretativas fundamentais para compreender o enquadramento simbólico do Sambódromo como projeto urbano.

Janio de Freitas

Colunista político de grande influência no JB, tratou reiteradamente das relações entre governo estadual, mídia e grandes projetos públicos durante a gestão Brizola. Seus textos ajudaram a moldar a leitura crítica sobre obras emblemáticas, entre elas o Sambódromo, ainda que de forma indireta, inserindo-as no debate sobre prioridades administrativas e uso político da cultura.

Lúcio Flávio Pinto

Atuando como repórter e articulista, publicou textos relacionados a políticas públicas, Estado e sociedade. No contexto do Sambódromo, sua contribuição se deu principalmente no ambiente de crítica estrutural às decisões governamentais e aos impactos sociais das grandes obras.

Jornalistas do Caderno Cidade e reportagens urbanas

Carlos Leonam

Embora mais conhecido pela editoria científica, participou de reportagens especiais e matérias explicativas que cruzavam técnica, planejamento e impacto urbano — abordagem utilizada pelo JB para explicar projetos como o Sambódromo ao público leitor.

Tânia Malheiros

Repórter do Caderno Cidade, assinou matérias sobre transformações urbanas, cotidiano dos bairros e impactos de obras públicas. Seu nome aparece em reportagens sobre a região da Cidade Nova e temas correlatos ao período da construção da passarela.

Colaboradores e articulistas do Caderno B (Cultura)

Muniz Sodré

Colaborador eventual do JB, publicou textos analíticos sobre cultura popular, mídia e espetáculo. Seus artigos dialogam conceitualmente com a transformação do Carnaval em evento institucionalizado — leitura frequentemente associada ao surgimento do Sambódromo.

Hermano Vianna

No início da carreira, colaborou com reflexões sobre música e cultura popular. Embora ainda não fosse figura central na redação, seus textos ajudam a entender o campo intelectual que dialogava com o Carnaval naquele momento.

Victor Raphael
Ex-presidente da Liga Independente das Escolas de Samba de Corumbá (LIESCO)