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A PASSARELA DA DEMOCRACIA: A CONSTRUÇÃO DA SAPUCAÍ E A BATALHA DE NARRATIVAS NA IMPRENSA DE 1984





A PASSARELA DA DEMOCRACIA: A CONSTRUÇÃO DA SAPUCAÍ E A BATALHA DE NARRATIVAS NA IMPRENSA DE 1984

12 de dezembro de 2025, nº 16


O arco da Praça da Apoteose com andaimes, dias antes da inauguração - Foto: Jorge Peter / Agência O Globo

A construção do Sambódromo da Marquês de Sapucaí, inaugurado em março de 1984, talvez seja um dos episódios mais emblemáticos da história recente do Rio de Janeiro. Não apenas pela obra em si — monumental, ousada, erguida a toque de caixa, carregada do simbolismo arquitetônico de Oscar Niemeyer — mas porque condensou, em seus 120 dias de canteiro, algumas das tensões mais profundas do processo de redemocratização brasileira. Foi um tempo em que a cidade se reencontrava com o carnaval como espetáculo global e com a cultura popular como força política reconhecida, ao mesmo tempo em que a imprensa travava uma disputa evidente de narrativas sobre o papel do Estado, sobre a legitimidade da obra e sobre o próprio sentido da Sapucaí como espaço permanente para o desfile.

O Rio vivia, no início dos anos 1980, um momento de redefinição institucional após a fusão entre a Guanabara e o antigo estado do Rio de Janeiro. Leonel Brizola chegava ao governo com discurso marcado por investimentos em educação, urbanização, transporte e inclusão social. Era também um período em que a cidade enfrentava graves problemas econômicos, crise fiscal profunda e infraestrutura urbana desgastada. A realização anual dos desfiles em estruturas provisórias na avenida já era vista por muitos como insustentável — montagens caríssimas, desmontes demorados, riscos de desabamento, conforto precário para o público e limitações para o trabalho das escolas. Em entrevistas da época, carnavalescos como Joãosinho Trinta insistiam que o carnaval já havia ultrapassado o estágio de improviso e merecia um “palco à altura de sua grandeza”. A proposta de criar uma “passarela definitiva” não parecia apenas plausível: para muitos, era inevitável.

Niemeyer entrou em cena com uma maquete que sintetizava seu estilo: linhas simples, curvas generosas, concreto aparente, monumentalidade e uma concepção que incorporava função social. Sob as arquibancadas seriam instaladas salas de aula destinadas a CIEPs — reforçando o compromisso educacional do governo. Essa dupla função — escola de dia, carnaval à noite — rapidamente virou mote do discurso oficial. Mas na prática, a obra foi recebida com entusiasmo, desconfiança, polêmica e cobertura jornalística cotidiana. Se a construção era grandiosa, mais grandiosa ainda seria a forma como jornais e revistas a disputariam em manchetes e colunas.

A imprensa acompanhou cada escavação, cada coluna erguida, cada dúvida sobre prazos, cada celebração de avanço no cronograma. A proximidade do carnaval criava um clima de tensão permanente: havia temor de que o Sambódromo não ficasse pronto, de que improvisos fossem necessários e de que o desfile pudesse sofrer atrasos históricos. Para além da cobertura técnica, havia o componente político muito evidente. Brizola despertava amor e ódio, e a obra se transformou rapidamente em símbolo dessa divisão. A cada semana, reportagens e editoriais reforçavam leituras divergentes, e a Sapucaí passou a existir não apenas como construção física, mas como território simbólico onde se travava uma disputa ideológica sobre a cidade, o Estado e o carnaval.

Entre os grandes veículos, O Globo adotou postura abertamente crítica desde o início das obras. Ao longo de semanas, o jornal questionou a pressa da construção, sugerindo que o curto prazo colocava em risco a segurança das arquibancadas e a qualidade dos acabamentos. Artigos chamavam atenção para possíveis falhas no planejamento, destacavam depoimentos de urbanistas que consideravam a obra “monumentalista” e “desconectada do entorno”, e insinuavam que o gasto público poderia ser excessivo para um estado em crise fiscal. Havia também críticas à ideia de misturar espaço carnavalesco com salas de aula, apontando supostos riscos de convivência entre fluxo de veículos pesados na pista de desfiles e o cotidiano escolar. Editorialmente, a obra era tratada como aposta política de Brizola, uma tentativa de criar um legado visual mais do que uma solução urbana efetiva. Em muitos momentos, a crítica transcendeu o âmbito técnico e se aproximou bastante de uma disputa política mais ampla, em que o Sambódromo era apenas o símbolo do embate entre governo e redação.

Se O Globo era contundente e às vezes até alarmista, o Jornal do Brasil adotava tom mais equilibrado, trazendo análises mais profundas e contextualizadas. Suas matérias frequentemente apresentavam o Sambódromo como peça importante no processo de modernização do carnaval carioca, destacando como a nova estrutura permitiria melhor organização da festa, maior capacidade de público e ambiente mais seguro para foliões e componentes. A cobertura urbanística era sofisticada: arquitetos, sociólogos, carnavalescos e engenheiros eram entrevistados para analisar o impacto da obra não apenas no carnaval, mas no turismo, na economia criativa e na própria valorização da região. O JB também questionou prazos e riscos, mas o fazia com mais ponderação, sempre contrapondo opiniões críticas e defensores do projeto. Em muitos momentos, suas páginas antecipavam discussões que hoje parecem evidentes: a transformação do carnaval em produto cultural global, a relação entre cidade-espetáculo e arquitetura monumental, e a leitura do Sambódromo como ferramenta de política pública cultural.

Enquanto isso, O Dia fazia uma cobertura mais popular, próxima das comunidades do samba e dos leitores que vivenciavam o carnaval “de dentro”. O jornal tratava a obra como conquista do povo, um espaço de reconhecimento das escolas e das comunidades que carregavam o carnaval nas costas havia décadas. Suas matérias enfatizavam depoimentos de sambistas, ritmistas, costureiras, marceneiros e trabalhadores dos barracões, que viam com orgulho a construção de um espaço próprio, capaz de acolher a grandiosidade que o desfile exigia. O Dia se concentrava nas questões práticas: como seria o acesso aos setores, se os ingressos seriam mais caros, se a estrutura garantiria mais conforto para o público, se o desfile fluiria com maior organização. Havia também forte interesse no impacto econômico, com reportagens mostrando como a obra movimentava empregos, estimulava comércios locais, aumentava a demanda por serviços e alimentava expectativas de crescimento turístico.

Já a Revista Manchete transformou o Sambódromo em ícone desde o início. Suas edições dedicavam capas, páginas duplas e longos ensaios fotográficos às obras, às perspectivas aéreas da avenida e ao entusiasmo dos carnavalescos que viam ali uma oportunidade de renovar o espetáculo. A revista adotava uma linguagem visual exuberante, alinhada à tradição da Manchete de celebrar o carnaval como grande evento estético, artístico e simbólico. Niemeyer era frequentemente fotografado diante das colunas e curvas recém-erguidas, tratado como maestro da criação. A revista celebrava o projeto como marco da modernidade brasileira, comparando-o a espaços culturais e esportivos de grandes capitais mundiais. As reportagens sobre bastidores eram ricas: visitas aos barracões, entrevistas com líderes de bateria, análises sobre como a pista influenciaria evolução, cadência e duração dos desfiles. A Manchete não escondia sua admiração pela obra e evitava críticas mais severas, oferecendo ao leitor a visão do Sambódromo como triunfo arquitetônico e cultural.

Ao final, quando o Sambódromo enfim abriu seus portões para o primeiro desfile, a imprensa precisou encarar sua própria narrativa. O Globo registrou o encanto do público, mas destacou problemas de organização e apontou possíveis falhas estruturais, mantendo seu ceticismo. O Jornal do Brasil ressaltou o impacto visual, elogiou a monumentalidade da avenida e destacou mudanças importantes no ritmo dos desfiles. O Dia celebrou a emoção das comunidades, com depoimentos de componentes que choravam ao pisar na nova pista. A Manchete dedicou páginas memoráveis à iluminação, às cores e à imponência da obra, transformando o momento em síntese perfeita de sua estética editorial.

Quarenta anos depois, é possível perceber que a construção do Sambódromo ultrapassou em muito a natureza de obra pública. Ela foi espelho da cidade, termômetro da democracia recém-retomada, estopim de debates profundos sobre cultura, arquitetura e política — e palco de uma guerra simbólica entre jornais que, cada qual à sua maneira, construíram versões próprias daquele momento histórico. A Sapucaí, no entanto, sobreviveu a todas as versões e tornou-se aquilo que talvez sempre estivesse destinada a ser: um monumento à cultura popular brasileira e uma narrativa que, a cada carnaval, se refaz.


Victor Raphael
Ex-presidente da Liga Independente das Escolas de Samba de Corumbá (LIESCO)