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Jorge Renato Ramos

 . 1ª Coluna: Memórias de 1987 - Salgueiro e Mocidade
 . 2ª Coluna: Me Ajudem a Tirar a Escola do Buraco
 . 3ª Coluna: Quem estava na Quadra teve que Cortar o Cabelo

24 de outubro de 2016, nº 4, ano I

MESMO PROIBIDO, OLHAI POR NÓS!

"Só quem está desatento não vê que o Rio de Janeiro e o Brasil estão uma lixeira. E não é ao lixo físico que me refiro; é o lixo dos políticos, da igreja, do sexo, da alimentação, da imprensa etc". (Joãosinho Trinta, em 1989, às vésperas de seu antológico desfile, "Ratos e urubus, larguem minha fantasia". Continua atual)

Beija-Flor 1989, "Ratos e Urubus, Larguem minha Fantasia", de autoria de Joãosinho Trinta - “Pobre gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual”. Esta frase, tornada famosa por Joãosinho Trinta, ironicamente ajudou a criar um estereótipo do carnavalesco, totalmente equivocado por sinal, de que era um artista que fazia “carnavais luxuosos, ricos”, limitando-o, quando não tinha limites, e igualando-o, por baixo, a alguns outros carnavalescos que, estes sim, apelavam para o luxo gratuito, sem sentido. Pelo contrário, os carnavais de Joãosinho não tinham nada de luxo, entendendo-se luxo como materiais caros. Talvez, diria até com certeza, tenha sido ele o artista que mais soube trabalhar com materiais alternativos, graças à sua extraordinária criatividade, seu imensurável talento.

Fernando Pamplona, o grande responsável por apresentar a João o universo das escolas de samba, confirmava, em entrevista veiculada no programa “Arquivo N” em homenagem ao carnavalesco, essa tese: “Você visitava o barracão do João e era tudo invenção. Você olhava a três metros e parecia milagre, coisa rica”. Logo depois, o mestre cita a ocasião em que Joãosinho fez saias de baianas com guardanapos de plástico parecerem renda suíça. “Acusavam João de gastar muito dinheiro. Ele não gastava nada”, contou Pamplona. Nesse mesmo programa, disponível no Youtube, em entrevista à repórter Teresa Cristina Rodrigues, da Rede Globo (gravada às vésperas de outro antológico desfile, “Criação do mundo na tradição Nagô”), ele se justificou das acusações de que, principalmente após a sua ida para a Beija-Flor, em 1976, abusava do luxo. A repórter perguntou: “Muita gente critica você, dizendo que você tem exagerado no uso de materiais brilhantes, luxuosos, caros. O que você tem a dizer sobre isso?”. O carnavalesco então respondeu: “Olha, a crítica que fazem, com relação a esse exagero de riqueza, me gratifica um pouco. Mostra que estou fazendo carnaval, porque carnaval é uma brincadeira, carnaval é fantasia. Na verdade, a gente tá vendendo é gato por lebre. O material que uso, por exemplo, laminado, é um material relativamente barato e que, no entanto, dá um efeito visual muito bom, muito brilho. É isso que é chamado de riqueza”, explicou. Ao Jornal O Globo, em entrevista concedida em 1979, contou: “Vou às Lojas Americanas, compro uma prancha de isopor, divido ao meio e crio dois totens africanos. Nesse caso, sou aliado da ilusão: se engano os que não conseguem conceber como se transforma as Lojas Americanas em África, tanto melhor. Fico gratificado pelos que falam do luxo da Beija-Flor. Essas pessoas estão sendo enganadas e eu estou cumprindo minha missão, que é de, pelo menos por uma noite, vender gato por lebre”.

Um ano antes, em 1988, as críticas foram ainda mais contundentes. Reverberando a sua máxima que diz que “Quem gosta de miséria é intelectual”, os críticos exaltaram o que, para eles, seria uma revolução no carnaval: “Kizomba, a festa da raça”, desfile campeão da Vila Isabel, feito com materiais simples, alternativos, um desfile considerado “pobre” em termos de grandeza de alegorias ou em riquezas de fantasias, mas grandioso em intensidade, em força. Para muitos, o maior desfile de todos os tempos. E, justamente nesse ano, a Beija-Flor fez aquele que, para muita gente boa, havia sido seu carnaval “mais luxuoso” até então: “Sou negro, do Egito à liberdade”, ficando em terceiro lugar, atrás de Vila Isabel e Mangueira, outra escola que apresentaria alegorias e fantasias bem mais modestas. Em um momento em que a emoção falou mais alto do que a razão - o título da Vila foi merecidíssimo -, Joãosinho culpou o júri, que, para ele, preferia premiar “escolas menos luxuosas” e afirmou, para quem quisesse ouvir, que, após a vitória de “Kizomba”, colocaria na Passarela, em 1989, um desfile de mendigos. Dito e feito.

Adelzon Alves, que era um dos jurados do Estandarte de Ouro, lembrou a crítica feita em 1988, de que o carnavalesco estava se repetindo e que artista, seja de qualquer ramo, “por mais consagrado que seja, tem que variar o clichê”. Desafiado, questionado, com um jejum de títulos, incômodo, que já durava cinco anos, Joãosinho radicalizou e resolveu falar do luxo do lixo, literalmente e metaforicamente, o inverso daquilo que seus críticos o acusavam. Se ele apelava para o luxo, a riqueza, o que diriam se ele, em vez de brilho, materiais supostamente caros, levasse lixo para a avenida? Antes de dobrar os jornalistas, estudiosos do carnaval, teria que convencer os componentes da Beija-Flor a aceitarem a ideia desse enredo, um “elogio ao lixo”. E as reações foram ainda mais fortes quando começou a reaproveitar sobras de materiais de outros carnavais e a queimar fantasias.

Joãosinho contou que o caminho, para o convencimento da comunidade da escola, foi tortuoso: “Os primeiros a aceitar a ideia foram os jovens, que não têm dinheiro para fantasias caras. Precisei dar muitas explicações a presidentes de alas e só dobrei certos integrantes da escola graças à diretoria, que sempre me deu liberdade de trabalho”. A ideia não era inédita. Em escalas bem mais diminutas, limitadas a uma ala ou a um setor do desfile, Portela e Mocidade levaram algo parecido com o que a Beija-Flor apresentaria em 1989, para a Passarela. A Portela, inclusive, foi agraciada com um Estandarte de Ouro por essa ala. De forma sucinta, o carnavalesco resumiu assim o que a escola levaria para a avenida naquele ano: “Nosso carnaval é apenas uma resposta ao lixo físico, espiritual e mental com que convivemos diariamente”. 



Não tenho dúvida de que, se pedissem para alguém ilustrar, com uma imagem, os desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, certamente a primeira imagem que viria à cabeça da maioria seria a do “Cristo mendigo”, nome pelo qual ficou conhecida a famosa alegoria cuja paternidade é atribuída a Joãosinho Trinta e reivindicada por outro grande nome do carnaval carioca, Laíla. O carnavalesco teve a ideia do enredo, a luz, quando, em visita à cidade de Londres, na companhia de sua assistente, Marly Alvarenga, viu uma mendiga em uma calçada e teve o estalo: “Marly, está vendo ali: aquele é o nosso enredo!”, falou, apontando para a sem-teto, com roupas em farrapos.

A paternidade da famosa alegoria é objeto de polêmica até os dias de hoje. Naturalmente, Joãosinho Trinta é reconhecido como autor da ideia. Quem poderia dizer que não, gênio que era? Laíla, tempos depois, e de forma veemente, contesta a afirmação, dizendo que, sim, ele sim imaginou levar um “Cristo mendigo” à avenida. Em entrevista ao jornalista Aydano André Motta, do jornal O Globo, contou: “Em princípio, o abre-alas seria uma reprodução dos Arcos da Lapa, cercados por uma imensa favela. Repentinamente olhei, chamei o João e falei: 'Que tal um Cristo mendigo?' Fui eu que falei, fui eu! 'Que tal um Cristo mendigo saindo do meio?'”. Laíla conta que Joãosinho parecia não ter se entusiasmado muito com a ideia, mas, à noite, durante um ensaio da comissão de frente, mudou de opinião: “Estava todo mundo reunido, eu junto, e o João, de repente, falou: 'Tive uma ótima ideia. Uma ideia excelente!'. E continuou: 'Que tal um Cristo mendigo saindo de dentro de uma favela?'. Todo mundo aplaudiu de pé e eu fiquei com cara de trouxa”, contou o diretor de carnaval da Beija-Flor.

No sábado de carnaval, a Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro obteve uma liminar, assinada pela juíza Sônia Regina da Silva Freire, da 2ª Vara de Família do Rio, proibindo as escolas de samba de utilizarem imagens santas nos desfiles. Notadamente, os alvos da ação eram a Beija-Flor, a Tradição e a Vila Isabel. A escola do bairro de Campinho levaria uma imagem de São Sebastião, padroeiro da cidade do Rio de Janeiro, enredo da escola; a Vila Isabel, com o enredo “Direito é direito”, preparou uma alegoria que reproduzia a obra “Pietá”, de Michelangelo, dentro do carro “Tortura nunca mais”.

Nesse momento, Laíla diz novamente ter uma solução para a questão, que ficou famosa, injustamente, segundo ele, por ser atribuída a João. Quando passou em frente ao shopping Riosul, em Botafogo, teve, segundo ele, outra ideia iluminada, já que não era justo que aquela alegoria deixasse de ir à avenida. O Cristo seria coberto e teria na frente uma faixa com a frase “Mesmo proibido, olhai por nós”. Quando chegou ao barracão da escola, encontrou um Joãosinho fora de si, gritando: “Ninguém bota a mão no meu Cristo! Ninguém bota a mão no meu Cristo!”. Alguém sugeriu que, em forma de protesto, o carnavalesco atravessasse a pista amarrado à alegoria, o que seria uma imagem de forte impacto, mas ele não concordou. Daí, segundo o diretor de carnaval, ele expôs a ideia que tivera no caminho para o barracão. Joãosinho não falou nada. Trancou-se em uma sala e quando voltou, exclamou a todos: “Tive uma ideia excelente! Vamos cobrir a alegoria!”. “Lançou a frase que é minha!”, rebateu Laíla. O fato é que o carnavalesco nunca rebateu a acusação do diretor de carnaval, deixando a dúvida sobre quem realmente é o autor da ideia da famosa alegoria, mas o que, na verdade, pouco importa. O próprio Joãosinho, quando questionado, dizia que a obra era fruto do trabalho coletivo da Beija-Flor, não somente dele.


A Cúria Metropolitana, por intermédio do advogado, Antônio Passos, da Arquidiocese do Rio de Janeiro, impetrou uma ação cautelar, proibindo a utilização de imagens sacras nos desfiles. O então assessor de imprensa da Arquidiocese, Adionel Cunha, afirmara que o Arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Eugênio Sales, não era contra as escolas de samba ou contra o próprio carnaval, mas, sim, contra os excessos, dizendo que Dom Eugênio só resolveu entrar com uma ação na justiça logo depois do Bispo-Auxiliar, Dom Romeu Brigenti, escrever uma carta, na quinta-feira anterior aos desfiles, endereçada a Anísio Abraão David e Nésio Nascimento, em que ponderava que não era aceitável que as escolas utilizassem símbolos religiosos em festas profanas. Como nem um, nem outro lhe respondeu, ignorando as cartas, resolveram impetrar a ação.


Anísio e Joãosinho negaram qualquer intuito ou sinal de desrespeito religioso, alegando que a utilização da imagem serviria para divulgar turisticamente a cidade do Rio de Janeiro. O patrono sugeriu cobrir a cabeça do Cristo com uma bola ou qualquer outro ornamento para descaracterizar a imagem do Cristo Redentor, mas a ideia não foi adiante. Joãosinho Trinta, com razão, argumentou: “É a primeira censura das autoridades a uma alegoria de escola de samba e, para nós, foi chocante, pois quisemos homenagear o Cristo como símbolo da cidade do Rio de Janeiro, num pedestal, em que os pobres e os mendigos estão ali representados alegoricamente. Quisemos reverenciar o Cristo, não apenas como Redentor, mas como símbolo da tolerância e da fraternidade com os mais carentes, o que reflete uma realidade do nosso país, em que o luxo convive com o lixo. Transformamos o lixo em luxo alegoricamente, mas lamentavelmente não fomos compreendidos”, reclamou o carnavalesco. No mesmo sábado de carnaval, a liminar foi cassada, mas Joãosinho achou que, da forma como estava, com o Cristo coberto, geraria mais impacto, chamaria mais a atenção, o que, de fato, aconteceu.

Joãosinho Trinta, exausto, dormiu junto de sua obra-prima. Anísio Abraão David, patrono da escola, era a cautela em pessoa. Não sem motivo, já que, segundo ele, por ser bicheiro, encontrava-se em situação bastante vulnerável e não poderia dar qualquer motivo para criar polêmica com a justiça. Em entrevista à Folha de São Paulo, no domingo de carnaval, explicou que o Cristo, sim, iria para a avenida, mas que o carnavalesco faria algumas modificações na alegoria: “De que maneira vai sair, só será decidido na última hora, mas pode estar certo que a decisão da justiça será respeitada”, afirmou, aproveitando para criticar o então arcebispo do Rio, Dom Eugênio Salles, de apelar para a justiça, dizendo: “A imagem é usada pelo BANERJ (antigo Banco do Estado do Rio de Janeiro), supermercados, aparece nas tabelas dos táxis e até em campanhas políticas e nunca ninguém proibiu”, criticou.

Joãosinho, por sua vez, denominou a ação da igreja como “a inquisição, versão 89” e que seria um “golpe duro” no desfile da Beija-Flor: “É a primeira vez que uma coisa dessas acontece na história do carnaval e vai mutilar nosso visual”, contou. Por fim, mesmo com a revogação da liminar conseguida pela Cúria Metropolitana, concedida por um juiz de plantão no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o artista não ficou contente, nem satisfeito com a liberação e resolveu manter o Cristo encoberto. Justificou: “Eles tiraram a proibição do papel e não do pensamento. Deixar como está torna nossa mensagem mais forte”, afirmou. Anísio avalizou sua decisão. Na tarde daquela segunda-feira de carnaval, ao RJ TV, junto à imagem da alegoria na Presidente Vargas, Joãosinho mais uma vez defendeu a sua obra: “Assim como o francês fez o Cristo Redentor e o outro fez o Cristo operário, eu fiz o Cristo mendigo, que agora é também mendigo e proibido. E é com a minha consciência, e em respeito ao povo, que já aplaudiu e aprovou esse Cristo e a esse povo que vem hoje para a Marquês de Sapucaí, que este Cristo vai sair. Pra mutilarem, pra fazerem alguma coisa com ele, vão ter que fazer primeiro comigo. Que me prendam! Que me façam o que quiserem, mas estou desobedecendo a todas as autoridades!”, desabafou.

Até a véspera do desfile, Beija-Flor, Vila Isabel e Tradição travaram uma batalha contra a Cúria Metropolitana para que pudessem levar para a avenida seus carros alegóricos, que traziam imagens religiosas, segundo a igreja. O Cardeal do Rio de Janeiro foi vencido, em parte, já que liminares garantiam às escolas o direito de desfilar com essas alegorias. Sem qualquer impedimento, Vila Isabel, com a sua “Pietá” de Michelangelo, e a Tradição, com a imagem de São Sebastião, apresentaram-se com seus carros, como previsto. Mesmo favorecida pela liminar, nada garantia que a Beija-Flor fosse levar seu Cristo mendigo para a Passarela. Durante todo o domingo de carnaval, a escultura permaneceu coberta.

Já na Passarela do Samba, a expectativa: como o Cristo sairia? Coberto? Com alguma surpresa? O carnavalesco respondeu ao repórter da Rede Manchete, na concentração: “O carro vai sair sim, talvez com uma frase ainda mais forte que a imagem: 'MESMO PROIBIDO, OLHAI POR NÓS'. O repórter perguntou então: “Não há desrespeito algum?”. Joãozinho respondeu: “Há muito respeito, há muita seriedade, há muito amor por esse trabalho. Por isso que hoje escola de samba é muito mais do que oba-oba de carnaval. Hoje, escola de samba é um grande momento da vida brasileira, momento de emoção, de beleza, de realização, que deverá ser respeitado por todas as pessoas, igrejas, políticos, por todo mundo, porque o povo respeita”. O jornalista então fez a última indagação: “Por que o Cristo entrou coberto?”. A resposta, óbvia, do carnavalesco: “Porque foi proibido!! Ele tá proibido. Tá interditado! Não permitiram que ele desfilasse. Proibiram o povo de ver o Cristo mendigo. O povo então vai entender a nossa frase: 'Mesmo proibido, olhai por nós'".


SINOPSE 1989 - RATOS E URUBUS, LARGUEM MINHA FANTASIA

O desfile das Escolas de Samba é hoje considerado o maior espetáculo da Terra em termos de grandeza, criatividade e vibração. Por ser um espetáculo completo, o desfile pode ser nomeado como nossa verdadeira ÓPERA DE RUA. Todos os componentes de uma Ópera erudita estão presentes na estrutura da Escola de Samba. Começando pelo enredo que é o libreto, passando pela música, dança, canto, cenografia, figurinos, orquestra e interpretação.

Na linguagem das Escolas estes elementos são chamados de samba enredo, samba no pé e evolução, harmonia, carros alegóricos, fantasia e bateria. Do último elemento - INTERPRETAÇÃO - é que pedimos licença para colocarmos em pauta.

INTERPRETAÇÃO é a grande chave para qualquer forma de espetáculo principalmente o teatral, entretanto, na Escola de Samba, cuida-se de todas as partes, menos da Interpretação. Este é um componente que ainda não foi desenvolvido. Acreditamos que a interpretação seja a nova tônica que dará impulso ao desfile das Escolas de Samba daqui por diante.

Depois de 25 anos fazendo Carnaval, a gente começa a ter a possibilidade de fazer avaliações. Para o ano de 1990 será lançada uma nova iluminação, que já foi testada. Ao contrário desta iluminação de mercúrio própria para estádio de futebol, aquela iluminação é, sobretudo, teatral e feita por um homem de teatro chamado Peter Gasper. Sentimos com isto, que se aproxima uma nova reciclagem no desfile da Marquês de Sapucaí. A Beija-Flor marcou a década com o luxo e o visual.

Estes aspectos ligados a uma nova dinâmica de evolução foram desenvolvidos ao máximo e seguido por todas as Escolas co-irmãs. Muitas, infelizmente, abandonaram suas características próprias que davam diversificação e espírito ao desfile. Todas passaram a correr atrás do Luxo pelo luxo tornando o espetáculo repetitivo. Exatamente a Beija-Flor que marcou um estilo de luxo nos carnavais passados, vem, neste ano, falando do LIXO.

Em função da tônica da Interpretação, dentro do Enredo, nós convidamos para participar do nosso trabalho um homem ganhador de um dos maiores prêmios de teatro de 1988. É AMIR HADAD e seu grupo TÁ NA RUA.

O entrosamento com a BEIJA-FLOR foi imediato. O trabalho de ligar o Samba ao personagem que o componente está representando, começou. É o Teatro no Samba e o Samba no Teatro - São raízes antigas que ressurgem. Por enquanto é um começo que parte do Enredo do G. R. E. S. BEIJA-FLOR para o Carnaval de 1989.



"Ratos e Urubus - Larguem a Minha Fantasia"

Este enredo é um protesto.

Protesto a esta grande maldade que estão fazendo com nossa terra, com nossa gente, com nosso BRASIL. Maldade desequilibrarem totalmente este país que tem, na sua geografia, a forma de um grande coração. Invertido desequilibrado, de cabeça para baixo, mostrará os contornos de um enorme bunda. E uma bunda do tamanho do Brasil tem muita sujeira nos seus intestinos para ser expelida. Somente as águas das Bacias do Amazonas e do Prata poderão lavar tantos excrementos. Ou, então, a grande energia do nosso povo quando ele tiver consciência de sua força e de seu valor.

Por enquanto somos, ainda, o gigante que acordou e está levando tanta porrada e está sendo tão sacaneado que, de repente, fica inerte. É preciso, pelo menos, alfinetá-lo para que comece a ter reações. É obrigação de todos nós participar deste trabalho. Cada um deve agir à sua maneira. No nosso caso nós sabemos fazer Carnaval. É nosso oficio. Que seja através dele, então, que a gente proteste. Esperamos, assim, contribuir para o despertar do gigante que somos nós mesmos. Então lançamos o grito: RATOS E URUBUS LARGUEM MINHA FANTASIA".

A ideia deste enredo não surgiu como inspiração. Ele foi provocado pela percepção da enorme quantidade de sujeira, de lixo que nos cerca e nos está sufocando. É o lixo físico, mental e espiritual deste país. É o lixo da falta de amor, da honestidade e do respeito à vida. Tremendas falhas que vem provocando o aumento do grande povo de rua abandonado, escorraçado e esquecido. Quantidade enorme de mendigos, famintos, desocupados, loucos, pivetes, meretrizes, travestis povoam os espaços do Brasil. É a falta de empregos, de orientação e tantas outras carências.

Por outro lado existe um luxo causador de tantas calamidades. É o luxo de gastarem milhões de dólares com armamentos, politicagem, igrejas, negociatas e tantas outras falcatruas. O dinheiro gasto no Carnaval é tirado do próprio Carnaval e ainda dá lucro, gera empregos, desenvolve um enorme artesanato e atrai turistas. E a organização, hoje, das Escolas é um exemplo de que a honestidade gera dinheiro. Em plena crise as Escolas estão arrecadando bastante para fazerem grandes desfiles. Não há mais diferenças. O dinheiro é suficiente para todas. Nós que participamos da Estrutura das Escolas de Samba temos, portanto, o direito de reclamar, de protestar com os descalabros da vida brasileira. E é um desafio fazer isto através da brincadeira do Carnaval.

Vamos tentar mostrar, na sua crueza, este povo abandonado da rua e mostrar o lixo que os envolve. Vamos tentar, também, mostrar por outro lado, o luxo que servirá de contraste. Será o LIXO DO LUXO. Um momento de sublimação para o mendigo brasileiro. Este miserável povo de rua será exposto desde o começo do desfile, 14 mendigos, liderados pelo próprio AMIR HADAD, virão abrindo o desfile da Escola. Apesar de não terem razão para tanto, eles serão gentis e comunicativos com todos.

Para os Juízes eles vão oferecer até um trago de cachaça. Como bons mendigos eles podem estender as mãos pedindo, por caridade, uma notinha de dez que, hoje, vale tão pouco, mas para eles vale muito. Suas indumentárias serão de gala. Isto mesmo. Mendigo também é vaidoso e gosta da opulência. Por não terem casa eles carregam todos os seus pertences. Ao contrário do que se pensa, são cheios de roupas, sacos, filhos, animais e tudo que lhes interessa. Às vezes carregam todas as coisas em carrinhos. Os espaços também lhes pertencem. Eles andam, ficam e dormem nos lugares que escolhem. O mundo é deles.

Colocados numa Comissão de Frente eles terão que treinar muito para serem comportados e fazerem tudo certinho. Mas, os Juízes irão, tranquilamente, entender que julgar mendigos é fácil. Mendigo é Mendigo. Eles carregam as misérias do mundo inteiro. Por isso, alguns acabam ficando sábios como Aqueles do Oriente chamados de Budas de Compaixão: podemos garantir que o mendigo brasileiro é, hoje, um arquétipo da pobreza universal. Seus rostos são impessoais.

O carro de abertura vem mostrando o acúmulo desta miséria expresso no lixo físico e humano em torno da enorme e significativa figura de um CRISTO MENDIGO. Isto é a própria imagem do Rio de Janeiro e do Brasil. Uma multidão de pedintes, famintos, pivetes, meretrizes, bêbados, loucos, entidades de rua é representada pelos grupos TÁ NA RUA, RAÍZES DA LIBERDADE, FEITIÇO E MAGIA e SENZALA. Estes últimos grupos já rodeiam o segundo carro, que representa uma enorme lixeira ao lado de um paredão onde está escrito o seguinte convite: ATENÇÃO: Mendigos, desocupados, pivetes, meretrizes, loucos, esfomeados e povo de rua. Tirem dos Lixos os restos de Luxos! Façam suas fantasias! Venham participar de um GRANDE BAILE DE MÁSCARAS! A MARQUÊS DE SAPUCAÍ Ê VOSSA!

Este convite ouriça todo o povo de rua. Restos de carnavais, de brilhos, cores e formas começam a ser procurados nas lixeiras. Todos querem se aprontar para a festa. Na procura desses materiais eles gritam: Ratos e Urubus, larguem minha fantasia!

De repente, aquela massa disforme de tantos corpos e andranjos se transforma, na realidade de uma imaginação. Os 15 da Comissão se transmudam em Guardiões do Rei e da Rainha dos Mendigos. Estes dois personagens surgem no seu Palácio Real! É a lixeira e todo o lixo sublimados na explosão do ouro sobre azul! As mendigas se transformam em Cortesãs. Os urubus em pássaros negros, e os ratinhos em pajens. É uma CORTE MEDIEVAL! E mendigo sabe o que é uma corte medieval? Eles podem não saber. Mas, nós sabemos que a miséria e a opulência medieval marcaram a história, como o PERÍODO DAS TREVAS.

Comparando a miséria medieval com a miséria Nacional. a nossa ultrapassa a outra, de longe, em gênero e número. Além de ser geograficamente menor, a Europa naquela época estava em formação. Eram pequenos feudos com um mínimo de população. A miséria brasileira, ao contrário, se espalha num vasto território entre milhões e milhões de pessoas. O contraste com a riqueza é maior. Na Idade Média somente alguns Senhores Feudais eram opulentos e tinham que lutar para defender seus castelos.

No Brasil, o número de ricaços é muito grande. Muita riqueza foi adquirida com esforço e trabalho honesto. Mas, a maior parte é ilícita, desonesta e até maldita porque está levando este país para o caos. Para um outro Período das Trevas. O miserável da Rua pode não ter consciência da história, mas ele está repetindo a História. Ele é o mesmo ser humano degradado pelo Poder. Grande parte da miséria brasileira que está nos morros, nas baixadas, nos alagados, já ultrapassou de longe, a miséria medieval. Esta, ficou, realmente na Média. A nossa já é total, universal. Por isso, o mendigo, ao receber o convite para brincar na Sapucaí, extrapola a imaginação. Na atração dos opostos ele quer ser logo SENHOR OU REI de alguma coisa. E cria uma corte que imaginamos seja Medieval. O certo seria ficar no meio procurando o equilíbrio: o eterno triângulo. E, como os jograis, ensinando entre cantos e danças o jogo do diabolo. Este é o símbolo da Carreta que vem no meio deste Setor. O desfile desta Corte termina com um Carro Alegórico trazendo destaques e restos de fantasias que representam o LIXO DO LUXO!

E VEM O LIXO DAS IGREJAS

E os pedintes das portas de todas: Católicas, Protestantes, Umbandistas, Igrejas Eletrônicas, enfim todo tipo de exploração espiritual. Falamos dos aspectos negativos. Os pedintes vão se fantasiar com os restos do luxo de todas elas.

Mitras, rendas, ricos bordados enfim. Toda a riqueza adquirida com a fé e a promessa da salvação das almas. Mas, neste momento, tudo serve para compor uma fantasia. Os pedintes das Igrejas querem também brincar no "BAILE DE MÁSCARAS". Mesmo que seus trajes pareçam que ele está numa PROCISSÃO DE MENDIGOS.

E, LOUCOS, eles chegam.

Mais enlouquecidos ainda com o convite para o Desfile na Sapucaí!

São os próprios loucos. Milhões por todo este Brasil. Resultado de tanto desequilíbrio, tanta fome, tanta miséria. Os loucos se apresentarão nas suas fantasias de Neros, Peruas, Profetas, Napoleões e Guerreiros do Apocalipse. Estão representando a loucura de tanta gente que já dirigiu e ainda dirige o mundo. Representam os que produzem os morticínios, as guerras. Os que ganham dinheiro com o sangue humano derramado. Fabricantes e mantenedores de situações obscuras na terra, no mar, e no ar. Sobre todos começa o atropelo dos 4 Cavaleiros do apocalipse. O Cavalo Branco é a Carestia. O vermelho é a Guerra. O amarelo é a Peste e o Negro o Justiciamento. Os rangidos e gemidos de dores provocados por estilhaços e arames farpados são amenizados pelas figuras dos profetas envolvidos de luzes e flores brancas, "EM VERDADE EM VERDADE VOS DIGO...".

E no enroscar dos Corpos vem o LIXO DO SEXO. As meretrizes, embevecidas, nem acreditaram quando souberam do Convite: "A MARQUÊS DE SAPUCAI" É VOSSA..."

Saíram da Lapa e correram para a Rua Alice. Foram procurar velhos "pegnoirs", coloridos, perucas, espartilhos e calcinhas pretas bordadas. Estão sempre acompanhadas dos Zés Pilintras que cercam seus passos. Como libélulas voaram para além do tempo. Chegaram ao Império das Cortesãs, das Bacantes, das Prostituições, dos Sadismos, das Inversões e Perversões Sexuais. Nome: SAUNA ROMANA. Endereço: qualquer lugar do BRASIL.

A Beija-Flor saúda a Imprensa escrita, falada e televisada. Saúda o Povo e pede passagem: É o respeito por todos os órgãos da Imprensa, por todos aqueles que são honestos nas suas profissões: Mas a notícia também vira lixo. E, pelas ruas, perambulam os apanhadores de papel. Com os pedaços de jornais, revistas e letras eles elaboram suas fantasias para virem brincar no "BAL MASQUE", Colombinas, Arlequins e Pierrots. A Comédia dell Arte, em preto, branco e laranja. Encerrando este setor um Carro Alegórico com Gôndolas, ratos, pierrots, televisões, pierretes, máquinas, colombinas, rádios e máscaras. É o Universo da Comunicação na Folia do Carnaval!

Para próximo Setor os mendigos se vestiram de Verde e Amarelo. E todo o mundo já sabe que vem o LIXO DA POLÍTICA. A política do Futebol - Os ratos de Cartola. A política Financeira, o Dólar é o Rei e o Cruzado é o capacho por onde sua Majestade pisa. No meio de tantas negociatas, os pequenos ladrões vão parecer um bando de anjinhos. E toda esta grande brincadeira é assistida por uma enorme plateia: O Brasil inteiro. É uma grande revista do Teatro antigo. É O OBA-OBA DO PLANALTO. Todos pagam para assisti-la.

O palco mostra as grandes vedetes fantasiadas de diferentes Carmens Mirandas. Cada cabeça mostra um turbante diferente. Enfeitados com canetas que assinam decretos e pacotes. Vassourinhas coloridas, cuias de chimarrão, faixas de múmias e outras excentricidades. Tudo verde e amarelo. Neste lixo de tanto luxo os ratos completam a festa. De tantos decretos, leis e pacotes eles fizeram picadinhos que jogam, para euforia geral, pelos buracos abertos no cenário.

E, lá vêm eles, OS PIVETES. Estão em todas as partes. Nem precisa convidá-los que eles já se fazem presentes. São os pequenos EXÜS a quem não foi oferecido o ritual de alimentação, sua primeira exigência. Não obedecido este assentamento eles disparam em qualquer direção para fazerem cobranças. Abrem caminhos com armas nas esqueléticas mãos. Embora estejam tontos do cheiro da cola, seus golpes de lâminas ou tiros de armas são certeiros. São as crianças que estão matando manipulados por adultos.

É a tristeza total desta situação que obriga a mostrar o LIXO em que transformaram tanta alegria expressa nos brinquedos. No meio de ingênuos trenzinhos, tambores, sobressaem, hoje, brinquedos violentos, armas. Como restos ainda sobram imagens de palhacinhos, espantalhos, odaliscas, bruxas e bate-bolas. É a força do mundo mágico das crianças.

Nas primeiras horas da manhã a FEIRA vende o que tem de melhor para os que ainda podem pagar. O resto é a XEPA. E, quem nem pode pagar a XEPA, come mesmo é o LIXO DA XEPA. Estes famintos leram também o CONVITE. Todos cataram restos de legumes, frutas e flores para compor sua fantasia. Nesta euforia, os famintos viram, de repente, uma abóbora apodrecida ser puxada por ratos. E para surpresa geral esta abóbora foi se transformando numa Carruagem. Era a fada Madrinha, com a sua varinha de condão realizando o sonho da Cinderela: um Baile no Palácio Real. E todos foram juntos. No alto da escadaria um belo príncipe recebe os convidados.

Muitas senhoras realizaram o desejo do ano inteiro; vestir a bela fantasia de Baiana. Mesmo que o pano da costa seja de Chitão. Um pouco de brilho e tudo vira festa. O que tem mais valia é a alegria de dançar e cantar mostrando a energia que o tempo acumulou. Sejam benditas, para sempre, queridas BAIANAS.

Todo o BAL MASQUE que se preza tem muita bebida e farta comida. Isto não poderia faltar aqui: Até um convite foi feito: Temos a honra de convidar V.Sa., e Exma. Família para participarem do grandioso "BANQUETE DOS MENDIGOS". Todos os mendigos que receberam este convite particular compareceram vestindo seus melhores trajes a rigor. As mendigas capricharam nos vestidos longos e nos chapeuzinhos. E ninguém esqueceu de trazer um saco plástico para carregar um pouco das sobras. Mas o êxito deste agapê só foi possível com a contribuição, muito generosa, de várias pessoas, riquíssimas de nossa alta sociedade. Gratuitamente elas ofereceram suas latas de lixos para que fossem retirados os restos de seus últimos banquetes.

Magníficas sobras de comidas, bebidas e sobremesas: Restos de caviar, faisões, perus, peixes, lagostas, cascatas de camarões, queijos finíssimos, vinhos, whiskys, vodkas, champanhes, licores, tudo, tudo absolutamente importado. Neste MAGNÍFICO BANQUETE DOS MENDIGOS, foi impossível afastar os ratos e urubus. Eles esperam o final para devorarem restos dos restos. Mas, todo mundo está satisfeito. Também, com tanta sobra! É só olhar a mordomia dos camarotes da Marquês de Sapucaí.

LEBA-LARO OO OO / EBO-LEBARÁ - LAIA - LAIA - O

Isto é uma saudação às ENTIDADES DE RUA.

E elas chegam de VERMELHO E PRETO, espalhando suas energias. Bom dia para quem é de bom dia, Boa noite para quem é de boa noite, porque agora todos são da folia: LEBA- LARO OO OO / EBO - LEBARÁ LAIA LAIA O

E chega o FINAL

Em todos os chafarizes da Cidade Maravilhosa os Mendigos se banham. Lavam suas roupas e seus andranjos. Lavam suas almas que são puras. Lavam as sujeiras da cidade que carregam na poeira do corpo. Nas águas dos chafarizes os mendigos e principalmente as crianças deixam uma Mensagem:

BREVE - Faltam apenas 11 anos!

No ano 2.000!

Quando se ouvir o SILÊNCIO DAS ESFERAS, O BRANCO CHAFARIZ DO AQUÁRIO vai começar a jorrar suas águas azuis sobre as crianças do mundo inteiro.

Neste ato de purificação elas estarão de mãos dadas, na grande bandeja do centro.

Numa só voz elas cantarão uma nova estrofe na Ciranda da Vida

É o CANTO DO III MILÊNIO!

Muitos não ouvirão este cantar!

Antes, outras águas vão rolar!

Como estas que vão ajudar os garis a limpar a pista por onde a BEIJA-FLOR vai passar derramando na Avenida frutos de uma imaginação!

 . 1ª Coluna: Memórias de 1987 - Salgueiro e Mocidade
 . 2ª Coluna: Me Ajudem a Tirar a Escola do Buraco
 . 3ª Coluna: Quem estava na Quadra teve que Cortar o Cabelo

Jorge Renato Ramos
renatojrrs@gmail.com