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Rosa Maria Egipcíaca
(Viradouro - 2023) A Profecia das Águas
' Presságio...
Diante do espelho ondulante das águas, a menina courana sentiu a
vida passar diante de si. Uma gota se transformou em oceano, fazendo o
real transbordar em vertigem.
' Em
transe, percebeu-se tragada por um assombroso redemoinho em meio a um
dilúvio brutal. Então defrontou-se com o reflexo de uma
mulher misteriosa, de manto reluzente e coroa luminosa, como que a
protegendo da própria sina. E, de súbito, viu-se emergir
em uma arca resplandecente sobre a qual flutuaria plácida a
cortar a fúria das ondas.
' A
menina chorou frente àquela revelação. Dali em
diante, tudo se desfez em mar revolto, apagando as memórias dos
seus primeiros anos. Foi rebatizada em águas cariocas, no outro
lado do Atlântico. E desse bárbaro ritual de esquecimento,
brotou uma nova Rosa, preta e cálida: a Rosa mística do
Brasil.
'
Auri Sacra Fames – A Fome de Ouro ' Ainda
jovem, seguiu em romaria vigiada, por léguas e léguas
mata adentro. Vendida às Minas Gerais, foi obrigada a peregrinar
com os cativos pela Serra da Mantiqueira, longo percurso que a
assombrava com visões de paraísos e infernos. Entre bruma
e poeira, cortava as alterosas cravejadas de sonho e temor.
' Nas
freguesias mineiras, a sociedade devota do ouro e dos diamantes era
sustentada pela depravada escravização na colônia.
Cortejos de penitentes saíam pelas vielas do arraial entoando
ladainhas. Pediam perdão por muitos pecados, menos o de submeter
outros seres humanos a condições degradantes em nome da
adoração às pedras e aos metais preciosos. Pacto
social que envolvia todo um sistema forjado no privilégio, na
degeneração moral e violação da dignidade
dos corpos pretos.
' Mas
havia as frestas sociais. Enquanto servia de oferenda àquela
civilização de escândalos e perversões, Rosa
acumulou um tanto de joias para se enfeitar e sedas para se cobrir. Os
parcos ganhos eram ostentados nos batuques do Acotundá. Na magia
da noite escura, encandeada de luar e fogueira, a preta girava saia,
saudava as almas e soprava aos ares a fumaça do cachimbo,
religando-se à ancestralidade que brotava no terreirão da
Fazenda Cata Preta, onde era cativa.
' Até
que o corpo deu sinais de desgaste. E Rosa se desfez de tudo.
Distribuiu aos seus o pouco que havia recolhido, como fez Maria do
Egito, a santa meretriz que foi alçada ao altar celestial
após doar aos desvalidos toda a riqueza de uma vida. Mais tarde,
deixaria de ser a Courana para ser Rosa Egipcíaca, transitando
entre a devoção e o misticismo.
'
Ventanias, Visões e Possessões ' Feitiçaria
ou teatro? A freguesia alvoroçada se dividia em opiniões
ao testemunhar as possessões da mulher, ocorridas entre rezas e
sessões de exorcismo comandadas pelo padre português
Francisco Gonçalves Lopes, o “Xota-Diabos”.
' Visagens
chegavam a Rosa em ventanias ruidosas que apoquentavam sua mente
dividida entre os solfejos dos anjos e os gritos dos malignos. Em
êxtase espiritual, ela era saliva e fogo, arrepio e suor,
lágrima e vulcão. Sentia, atordoada, a presença de
sete demônios pairando sobre si em vertiginosas espirais,
possuída tal qual Maria Madalena.
' Mas, assim como a personagem bíblica, a africana tinha também a alma acalentada pelo amor Divino. E os ventos agora lhe sopravam de volta ao litoral. '
A Flor do Rio ' Vivendo
a debulhar as contas do Rosário, retornou ao Rio de Janeiro por
onde desfilava como dileta serva de Deus. Sob o pálio da
devoção a Santana, avó de Cristo, a negra cruzava
a fé dos brancos com os cultos ancestrais aos mais velhos,
herança da sua origem na costa africana. Rosa impressionava o
universo religioso da cidade com seus dons premonitórios, jejuns
e flagelações, tornando-se foco de curiosidade e
admiração. Um passo para ser cultuada como Santa.
' Levada
pelo dever de perpetuar os pensamentos devocionais, alfabetizou-se nas
letras divinas e passou a escrever compulsivamente. Foi assim que
colocou no papel aquele que é considerado o primeiro livro a ser
escrito por uma mulher negra no Brasil. Desta forma, derramava pelas
suas mãos o bendizer da palavra revelada nos pergaminhos mais
sublimes.
' Sentia
na pele e no coração as dores das mulheres afastadas do
convívio familiar. Assim, a visionária ergueu o
Recolhimento, mosteiro com que ela havia sonhado como arca protetora a
abrigar almas cujos corpos femininos eram negados pela sociedade.
' O
poder da vidência não cessava e Rosa sonhou com a imagem
de cinco corações radiosos e brilhantes. Cada vez mais
santa no altar popular, foi se tornando mais mística, mais
etérea e mais misteriosa. Elo entre Deus e a humanidade, a beata
com dons paranormais seria desposada em um grandioso devaneio
apocalíptico.
'
A Derradeira Profecia ' Revelação.
Rosa fechou os olhos e pressentiu um dilúvio de força
descomunal que lavaria os pecados da humanidade. Estava novamente
frente à imagem que tanto a impressionou na infância: a
mesma mulher misteriosa de manto reluzente, protetora do seu destino.
Debaixo do majestoso véu das virtudes, revelou-se a face
verdadeira: era o próprio rosto de Rosa.
' Águas
em turbilhão sairiam como veios da terra. E daquele reino
sobrenatural emergiria não uma, mas duas arcas, flutuando entre
a história e o delírio. Em uma, estava ela, no esplendor
do seu último desvario; na outra, o rei Dom Sebastião,
desaparecido em épica batalha em nome de Cristo.
' O
enlace com o Rei dos Encantados consumaria a união
mística para fundar o grande Império Brasileiro. Rosa,
enfim, seria o rastro de salvação dos eleitos no
triunfante evento do fim dos tempos, inundando as almas de
esperança. Assim, cumpriu o enredo de uma vida e agora estava
liberta para se tornar a própria Santa na qual se refletia.
' Uma Santa Negra no Céu
' E
lá no firmamento, aonde as águas do dilúvio a
arrebataram, um concerto de marimbas e candombes a aclamou em sua saga
de fé. Guardas da Santa Coroa, empunhando fitas e bandeiras,
uniram-se em batuques para louvar à Santíssima africana
que um dia viveu cercada de mistérios e virtudes em uma terra
tão plena de vícios quanto de credos.
' Folguedos
desfilaram em louvor à mulher que virou divindade, em sagrado
cortejo de canonização popular. Nos jardins do
Palácio Celeste, ela se enxergou em cada rosa que desafia a
sorte, insiste em rachar o chão e brota da aridez.
' E no altar do Divino, todo enfeitado de flor, a mais bela Rosa orna a coroa do Senhor.
' Não é uma rosa qualquer. É a Rosa que o povo aclamou! '
Autor do Enredo e Carnavalesco: Tarcísio Zanon Inspirado no livro “Rosa Egipcíaca: Uma Santa Africana no Brasil”, de Luiz Mott
Texto: João Gustavo
' Referências:
ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. O Reino Encantado: crônicasebastianista. Editor do Organizador, 2017.
ANTAN,
Leonardo. Laroyê, Xica da Silva: narrativas encruzilhadasde uma
incorporação no carnaval carioca. Nova Iguaçu:
Carnavalize,2021.
MARANHÃO, Heloísa. Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz. Rio deJaneiro: Rosa dos Tempos, 1997.
MOTT, Luiz. Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil. Rio deJaneiro: Bertrand Brasil, 1993.
MOTT,
Luiz. Acotundá: raízes setecentistas do sincretismo
religiosoafro-brasileiro, In Escravidão, Homossexualidade e
Demonologia. S.Paulo: ícone, 1988, pp. 87-118.
PERES, Eraldo. FÉsta Brasileira: folias, romarias e congadas. SãoPaulo: Editora Senac, 2010.
SIMAS,
Luiz Antônio. Almanaque de Brasilidades: um inventário
doBrasil popular. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2018.
SOUSA,
Giulliano Glória de. Negros feiticeiros das Geraes:
práticasmágicas africanas e repressão em Minas
Gerais na segunda metadedo século XVIII. Anais da Anpuh. Mariana
(MG), 2012.
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