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Lunda Semba: A Voz do Morro Agoniza, Mas Não Morre (Vicente de Carvalho - 2021)
Lunda Semba: A Voz do Morro Agoniza, Mas Não Morre (Vicente de Carvalho - 2021)

Vicentina, filha da ganhadeira Aparecida do Rosário e neta da escravizada Nega Lunda, chegou ao Rio de Janeiro em 1917, ano de lançamento de “Pelo Telefone”. Encontrou no subúrbio um lugar para recomeçar, trouxe na mala suas joias de crioula, além de lembranças de sua terra e objetos de sua fé. Nos quadris o requebro que só a baiana tem. No peito um saudoso coração que pulsa no ritmo dos batuques e tambores que herdou de seus ancestrais. No rosto a beleza reluzente de Mametu N’Dandalunda e no mutue memórias, ensinamentos e receitas que fizeram dela a mais famosa quituteira, mãe-de-santo e festeira do Morro, que mais adiante chamar-se-à Juramento.

A fama dos seus quitutes e de seus batuques se espalhou pelo subúrbio:

– Acarajé da Vicentina não tem igual, quem prova fica pro samba no fundo do quintal… – Gritava Vicentina todos os dias em sua barraca no pé do morro.

O cheiro de dendê, as batidas da colher de pau no fundo do tacho, o sibilar dos cantos de trabalho e sambas de roda eram um convite perfeito para que capoeiras e cantadores juntassem se a ela em festas que invadiam a madrugada e terminavam quase sempre em seu terreiro , abrigo para o SAMBA de partido alto ou samba de morro , que fora abafado pelo samba canção.

Todo ano em Outubro, como mandava a tradição das irmandades pretas seguidas por suas avós , levava flores , velas e água de cheiro a lavagem da escadaria da Igreja de N.S. da Penha e no dia 12 assistia missa na Igreja de N. Senhora Aparecida e à noite abria seu terreiro para celebrar a grandiosa festa de Mametu N ́Dandalunda. Os presentes e reverencias prestadas a N ́Dandalunda enchiam de fé os filhos de santos e visitantes do terreiro. Tudo era só emoção, reencontrar-se com a ancestralidade dava novo sentido aqueles que, assim como o SAMBA, foram roubados de sua história. E antes que o candomblé terminasse Mametu pronunciou -se:

– Fiel e devotada é minha filha, benevolente e caridosa serei para com ela. Darei a ela dois presentes.

Findou se o festejo, era hora de provar o melhor dos quitutes de Vicentina, e ouvir os melhores versos de samba dos cantadores da redondeza. Tamanha foi a surpresa de Vicentina em saber que um conterrâneo estava em sua casa, acompanhado de seu violão e uma amigo acanhado chamado Nego Carvalho, que pouco fala, mas compunha letras tão belas, tocando com doçura o coração de Vicentina, de mesma forma os quitutes e requebros de Vicentina encheram os olhos e aguçaram o paladar do Jovem rapaz , não demorou muito que um namoro começasse e assim veio o casamento, animado ao som de muito Samba.

Em pouco tempo Vicentina engravidou e para que tudo corresse bem presenteou Wungi no dia de São Cosme e Damião distribuindo para as crianças da comunidade doces, bolos e brinquedos. Ela era só alegria, contudo por vezes era afligida por pensamentos que a atormentavam: “Que futuro teria seu filho num mundo que a todo momento tenta segregá-lo? Retira o os direitos, apaga sua história, desqualifica sua cor, persegue seu Deus e culto na tentativa de domesticá-lo?”

Quantas são as incertezas… tantas barreiras a vencer…

Por vezes pegava-se rememorando histórias de superação e resistência, contadas por suas avós e mãe, que foram rainhas, guerreiras e juízas, que enfrentaram a tristeza dos tumbeiros, o peso das correntes, toda a sorte de flagelos para sobreviver. Isso lhe dava forçar para seguir em frente junto a seu marido Nego Carvalho e seu bebê, que por essas alturas já estava prestes a nascer.

Enfim nasceu Vicente de Carvalho, batizado Águia nas rodas de capoeira, não tardou em tornar se rapaz, sambista e jongueiro. Brincava na escola de samba Recreio de Ramos e no Prazer da Serrinha, onde conheceu sua grande paixão. Maria, uma enfermeira amiga de Ivone Lara, apresentada a ele por Mestre Fuleiro num samba de meio de ano. Sem demora já a convidou para um almoço na casa de sua mãe Vicentina e em meio ao samba que precedia a reunião, a pediu em namoro enquanto tocava um chorinho chamado Carinhoso. Após dois anos de namoro, Águia pediu Maria em casamento em meio aos festejos do primeiro título do então Império Serrano.

Não demorou muito chegaram os filhos, criados sob os olhos doces e vigilantes da Vô Vicentina, como era chamada por seus netos e mais novos, exceto por seu neto caçula Juraci ou Jura, como era apelidado desde o nascimento, o mais arteiro e curioso que insistia em chamar-lhe Tia Vicentina

– Oh menino que “osadia” é essa? Me chame de Vó Vicentina! Só meus velhos amigos e fregueses me chamam assim. Pensa que já é grande? Deve “tê” ficado meio doido de tanto que Maria sambou na primeira saída do Bloco Pega Distraído na véspera de “pari” você.

E como quem nada ouviu Jura rompe com uma pergunta intrigante:

– Tia Vicentina!

– Me chame de Vó! – Esbravejou.

– De onde veio o samba, quem fez? Quando que o samba virou samba? Lá na sua terra tinha samba? Por que papai canta samba de um jeito e vovô de outro?

Vicentina riu e percebeu que mais uma vez havia chegado a hora de regar a semente do samba.

– Menino olhe a sua volta, o que vê?

– Na estante o mapa da África, na parede uma foto de nossa família, pela janela eu vejo a favela e pela porta o fundo do nosso quintal Tia.

– Oxê! Você “num” se ajeita menino! Mas tá aí sua resposta, é daí que o samba vem. Trazido da África por famílias como a nossa, quando ainda se chamava “Mahamba”. Misturou-se a outros toques, na tristeza dos tumbeiros e aqui foi guardado nos quilombos e terreiros, até ganhar os rádios e o cinema. Teve até quem tentasse “embranquecer” nosso batuque que se renovou transformando-se em um símbolo em todo Brasil. Mas é nas Escolas de Samba e favelas que ele ainda é mais puro e vibrante.

– Tia Vicentina quanta história tem o samba! – Gritou Jura ainda um pouco tonto com tanta informação.

Vó Vicentina com ar altivo e misterioso murmura a seu neto:

– Os Inksis disseram nos búzios que essa história será contada por uma escola de samba daqui, coisa pra depois de 2020 eu acho.

– Aqui?! Mas aqui não tem escola de samba!

– Mas há de ter na fé de Vunge e N’Dandalunda.

– Ué, mas quem vai fazer?

– Você e por essa mocidade, que luta pelo samba.

– Tia tem horas que a senhora fala e eu não entendo nada!

– Tem coisas meu neto que só o futuro revelará e outras que é preciso guardar como o amor ao samba. Agora vá, vá brincar que quero ouvir esse menino Bezerra da Silva, que disco bom esse tal de Rei do Coco, esse rapaz vai longe, será que um dia ainda canta nosso Juramento? Vai saber que rumos vai tomar, assim como o Samba.

A essa altura tia Vicentina já falava só, pois o menino saiu na carreira como quem quisesse atravessar o tempo, para chegar até o dia que a comunidade Vicentina evocaria os tambores ancestrais para cantar: “Lunda Semba: A Voz do Morro Agoniza, Mas Não Morre”.

Vinícius Osayin

Carnavalesco