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Ykamiabas (Rocinha - 2010) Aurora de uma Nação...
Na era glacial, há 100.000 a 12.000 anos a.C., grande parte da
água do planeta armazenara-se nas geleiras, fazendo baixar o
nível dos mares e abrindo inúmeras passagens terrestres entre
distantes regiões que, até então, somente poucos teriam
conseguido cruzar.
Sob o poder de um patriarca Kumu e impulsionados por um vento sombrio, os Karaybas, filhos do sol e/ou das serpentes, povos de uma dinastia solar e lunar, migram dessa parte fria do mundo, em grandes grupos, nas chamadas miracemas, em busca de novas terras. Partem em travessia pelo Estreito de Bering, vindos da Montanha Vermelha (do seio do velho continente asiático) e alcançam o novo mundo, quando ainda nem soavam os sinos da comunidade cristã, fixando-se na América do Norte, de onde, depois, desceriam para a América do Sul. Aventurando-se pela América, lutam, dispersam, formam novas nações pelas extensões dos rios Xingu e Jaruá, e iniciam a fusão dos povos do Vale do Amazonas. E é, a partir desse momento, que entram em cena as míticas guerreiras. Formação do Reino das Ykamiabas Com os primeiros povos vieram também as mulheres guerreiras, portadoras de muyrakytãs, amuletos que, pelas suas virtudes, proporcionavam força, saúde e poder. A história dessas mulheres é revelada pelo mito que atravessou as fronteiras geográficas e alcançou as densas florestas e extensos rios amazônicos. Seguindo pelo Içá, Napo, Negro ou Japurá, elas margeiam o rio Amazonas, subindo e descendo para se estabelecerem e trocarem as terras do alto rio Negro, abandonando seus maridos, por um lugar que se tornaria sagrado e ficaria conhecido como o monte das mulheres ou monte escondido dos homens. De posse dos muyrakytãs, que traziam suspensos ao pescoço, para assegurar-lhes a vida, livrá-las das moléstias e dos inimigos e garantir-lhes a supremacia das terras das quais se apossavam, as ykamiabas fixam-se no rio Nhamundá, no Baixo Amazonas, em um lugar chamado Kondury - um rio de beleza singular, entrecortado por grandes montes e serras. Lá, no reino das pedras verdes, vivem, sob a liderança da morubixaba, [1] desenvolvendo, entre outras atividades, a pesca e a caça, cultuando a tradição de suas crenças e de seus costumes. Mantêm-se fortes por meio de suas estórias de lutas, vitórias e conquistas. A mais comum e quase que diariamente contada é a que explica o isolamento das ykamiabas. No início da vida sobre a terra, as mulheres tinham o poder em suas mãos. Eram elas que tocavam a paxiúba , a flauta sagrada, e evocavam Jurupari. Teriam perdido esse poder quando o homem roubou o instrumento sagrado de Yanibéri, que banhava-se nas margens de um rio. Ao tentarem recuperar a encantada flauta, iniciou-se uma longa luta entre os homens e as mulheres. Desde então, os homens criaram a "Grande Festa do Jurupari", uma cerimônia em que não é permitida a participação feminina, como forma de impor o seu poder sobre as mulheres. Entretanto, as mulheres sobreviveram a essa guerra. Retiraram-se em grupos para outras regiões, formando reinos por elas governados, nos quais só poderiam residir mulheres e, assim, continuaram a realizar seus rituais, a tocar os instrumentos sagrados sob a condição de Mulheres Guerreiras . Livres, aptas e ágeis, as guerreiras, embora vivessem isoladas sob a crença do matriarcado, mantinham contato com algumas tribos vizinhas. Ajudavam-se mutuamente em tempos de conflitos e invasão e ainda mantinham relações cordiais, estabelecendo trocas de objetos ou de favores. Ocupavam suas terras vizinhas os Apotó, Pariqui, Tagari, Aruak e Guacará. Entre outros, os Aruak e os Guacará eram os que mais se comunicavam com as mulheres guerreiras. Os primeiros, vindos do norte em sucessivas ondas migratórias, habitavam a região do rio Içana e seus afluentes e eram admirados pelas ykamiabas pelos seus belos trabalhos de cerâmica. Já os Guaracá eram os galantes visitadores das mulheres guerreiras que usavam de suavidade e elegância e proporcionavam, dias após o ritual sagrado à Lua, o momento mais mágico da vida das ykamiabas: o encontro com os amantes guerreiros. As Filhas da Lua... É noite de lua nova, numa região denominada Kumuru - estrela das águas -, as filhas da lua prestam reverências àquela em que acreditam possuir os poderes mágicos da criação da vida . Praticam o culto de natureza feminina de amor à terra, a Deusa Mãe. Sob a evocação do poder da Lua, dos seres noturnos e dos mitos das águas, as ykamiabas são iniciadas, festejam, após dias de expiação e jejum, a Festa da Vitória , mergulhando para o fundo do lago sagrado Yacy-Uaruá , num ritual de purificação do corpo, do espírito. Vão, também, em de busca do ouro verde, o barro, do qual confeccionam os seus muyrakytãs - o símbolo da liberdade. Quando a Lua se reposiciona no negro céu da floresta, seus feixes de luz acentuam-se sobre o espelho d?água e elas, em festa consagrada à Lua, derramam seus potes de perfumes na água, também purificando-a, momento em que a Mãe dos Muyrakytãs , das pedras verdes como a floresta, que no fundo do lago habita, surge sobre o sabá noturno para trazer as boas-vindas às mulheres guerreiras do Vale do Paraná-Guassu. Enaltecendo a divindade, seus muyrakitãs ganham formas, e as mulheres guerreiras renascem e revigoram-se para a luta! Eis o símbolo da nossa liberdade! A canção do nosso ventre! Daqui nascerão as filhas da terra livre! Na manhã seguinte, as ykamiabas retocam seus muyrakytãs retirados do lago sagrado na noite anterior. É um momento muito especial para a tribo das mulheres guerreiras, que recebeu da Grande Mãe o presente com sabor de prazer e liberdade. Com o muyrakytã, elas adquirem o direito de deitar com os guerreiros que escolherem e é a possibilidade real de engravidarem, contribuindo, assim, para o aumento da população entre as mulheres e a continuidade do reino das ykamiabas. Assim os guerreiros são levados às jovens guerreiras e, ao decidirem pelos seus pares, o enlace tem início... Seduzidos pela forte fragrância de perfume exalado das árvores cunurys, os guerreiros deixam-se enamorar num clima de muita sensualidade. A noite é pequena para tão grandes prazeres - quando os corpos ardem, se entrelaçam e se preenchem ao som dos quevéis.[2] Amazonas de Orellana "Elas pertencem à nação Kunury! Belicosas e independentes, de grande poder, altas, belas, andam nuas, tapando apenas o sexo. São musculosas, têm cabelos negros e compridos entrelaçados à cabeça, e a tez clara. Com seus arcos e flechas, cada uma, individualmente, guerreia tanto quanto dez homens." Vivem sem maridos! Vivem sem lei! Guardam um tesouro! Assim ficam conhecidas em toda a região do rio Paraná-Guassu. As "cunhãs-teco-imãs", mulheres doidas, temidas, ousadas, corajosas... Gerando curiosidade, não só nas tribos vizinhas ou nas mais distantes, como também nos homens brancos que, a essa altura, já rondam as aldeias indígenas mostrando o símbolo de seu Deus. Então, numa manhã de junho de 1542, na confluência do rio Paraná-Guassu com o Kunury... Superando os perigos de uma travessia acidentada e bárbara D. Francisco de Orellana, de posse da barca famosa, cujo comando lhe fora confiado por Gonçalo Pizarro, desemboca num grande rio de que ninguém até então tinha notícias. Absorvido pelas ideias grandiosas que o empolgavam, o famoso explorador não dormia, contemplando aquele formidável painel híbrido desconhecido dos cartógrafos e que parecia uma dádiva da providência à sua delirante ambição, e aproximava-se de sua margem... Ainda hipnotizado por aquele "lençol de água doce", viu-se cercado por um bando de mulheres novas e lindas, arrojadas e fortes. Na sua visão eram iguais àquelas que havia na sua memória, as guerreiras amazonas, recheada das míticas histórias dos povos gregos. Meio ao delírio de Orellana, iniciava-se o combate com as mulheres guerreiras. São como as guerreiras que habitavam a Ásia Menor! As Amazonas da Trácia e as que matavam os meninos e educavam as meninas, enfurecendo os deuses que, irados, professavam a morte da rainha. A expedição é obrigada a manter constante recuo pela quantidade de flechas desferidas pelas ykamiabas, que evocam os espíritos e seres da floresta a combaterem os ataques e as exaltações delirantes do comandante: Custam a acreditar na força de nossa raça Nas nossas vozes que ecoam do silêncio da floresta! Um grito a nossa liberdade! Um basta a essas invasões! Não tememos a morte! Somos filhas da guerra! E o perigo é, para nós, razão de orgulho e luta! Unidos contra o inimigo invasor em proteção da verde mata, ouvem-se os gritos de guerra de diversas tribos, os cantos das sereias, o nado dos botos cor de rosa, a sedução de Iara, os gritos dos curupiras, caiporas e outros. Orellana continua a se aproximar, perseguindo a obstinada intenção de travar contato com as guerreiras amazonas. E as deusas guerreiras do Vale do Paraná-Guassu reagem: Temos a força dos homens e a habilidade das deusas! Aprendemos desde cedo a conhecer a batalha pela nossa liberdade! Assim, os espanhóis percebem tratar-se de um território de mulheres guerreiras... E Orellana, novamente, diante da verde extensão das margens do rio, delira entre o sonho e a realidade... Fantasia? Obra da imaginação? Patranhas de viajantes, cronistas e aventureiros? Sobretudo, o que sabemos deste episódio está nos relatos dos primeiros aventureiros espanhóis, precisamente, nos do padre Gaspar Carvajal que, além de narrar a investida das mulheres guerreiras contra a expedição de Orellana, remete-as a uma caçadora também solitária: Ártemis. Isto é, as ykamiabas representam o arquétipo mais puro e primitivo da feminilidade, santificam a solidão, a vida natural e possuem um amor intenso pela liberdade, pela independência e pela autonomia. A Ordem das Ykamiabas A essa altura, a chegada dos padres jesuítas e dos aventureiros sedentos por riquezas da floresta constituía um perigo à autonomia de todos os habitantes do lugar. Ameaçadas, as nações indígenas se uniam como forma de se prevenirem, de se fortalecerem contra possíveis ataques e invasões, e manterem vivas as suas tradições culturais. Nesse sentido, o mito das ykamiabas é encantadoramente intenso e abre espaço para recontar a Amazônia sob o prisma da liberdade, do compromisso com a terra e com a preservação do planeta e, naturalmente, para com a vida em sua totalidade. Hoje constatamos a força dos ciclos mitológicos das ykamiabas em diversas manisfestações culturais. No município de Nhamundá, cujo rio, do mesmo nome, divide os estados do Pará e do Amazonas, as guerreiras são representadas ou lembradas em festas ou rituais como, por exemplo, na Festa da Pesca ao Tucunaré, para qual, mulheres confeccionam os ídolos de proteção para amarrarem nas embarcações, tal como as ykamiabas faziam para proteger suas canoas e obter abundância em suas pescarias. Em Parintins, as guerreiras também são protagonizadas em diversas toadas em uma das maiores festas de boi-bumbá do país. E até na procissão do Círio de Nazaré assemelham sua força e coragem aos milhares de fiéis que disputam palmo a palmo a esperança de tocar na corda, maior símbolo de ligação entre a Santa e o povo em romaria. A Amazônia é o povo da floresta. E o povo da floresta é a Amazônia. Condicionado mutuamente, ele sente e vê a natureza como parte de sua sociedade e cultura, como prolongamento de sua identidade pessoal e social. A natureza fala e o indígena entende sua voz, preservando a fauna, a flora e as heranças mitológicas, culturais e orais. O poder das ykamiabas, hoje, representa a resistência dos povos da floresta. Elas estão presente nos mistérios da mata, na crença dos ribeirinhos, na oralidade e, certamente, num lugar sagrado cultuando seus ritos de tradição à Deusa Mãe. Contudo, a presença viva das mulheres guerreiras em nosso inconsciente imaginário nos deixa um legado: Com a busca pela sabedoria das tradições ancestrais, as mulheres se voltam para certo tipo de espiritualidade que fale mais próximo ao coração. Buscam um modelo feminino mais verdadeiro e sintonizado com seus valores. E tornam-se corajosas, guerreiras, independentes, donas de seus destinos... São as novas ykamiabas de uma ordem progressiva, que driblam os desafios e constroem, como se portassem um talismã de ouro verde, o muyrakitã, um novo Éden, em busca de suas identidades.
Marcos Roza, pesquisador de enredos. |
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