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O Azul que vem do Infinito (Portela - 2023)
O Azul que vem do Infinito
(Portela - 2023)


Era o início da década de 1920 quando cheguei ao vale do rio das Pedras, na localidade há pouco tempo conhecida como Oswaldo Cruz. Desembarquei de um trem vindo da Saúde, acompanhado de minha mãe e minha irmã. Eu ainda não sabia, mas trazia comigo uma missão. Um propósito que se iniciava ali, nas terras do antigo engenho do Senhor Miguel Gonçalves Portela, mas que não conheceria os limites geralmente impostos pelo tempo e pelo espaço. Seria algo perene, imortal, como parecia ser a alegria nas concorridas festas de Dona Esther, onde entendi que deveria elevar o samba e a cultura popular a um patamar jamais alcançado. Então, com as graças de Nossa Senhora da Conceição e São Sebastião, ou, como queiram, Oxum e Oxóssi, eu, Caetano e Rufino unimos nossas mãos e tivemos um sonho. Imaginamos um mundo azul e branco que não teria fronteiras, que se estenderia para além dos limites de nossas vidas terrenas. Fundamos o “Conjunto Carnavalesco Oswaldo Cruz”, primeiro nome de nossa criação. O primeiro nome da Portela! Era algo simples, pequeno, mas, logo no primeiro desfile oficial, fomos campeões deixando uma mensagem que, na verdade, tratava-se de uma profecia: “O samba dominando o mundo”. Isso foi há muito tempo. Hoje, Caetano, o que abre nosso cortejo no carnaval celestial é o bater das asas do Divino Espírito Santo. Lá embaixo, eles ainda fazem águia de isopor.

Faz muito tempo, Professor, mas eu lembro que tu me deste a honra de defender o pavilhão daquele primeiro campeonato. Eu também estava ao seu lado quatro anos depois, quando a Praça Onze se encantou com “Teste ao samba”, a primeira vez em que uma escola de samba apresentava fantasias, alegorias e samba representativos do enredo. Sua missão passou a ser a minha, e o sonho de vocês, fundadores, aos poucos ganhava forma. Eu vivi intensamente os “sete anos de Glória”. Sete vitórias seguidas, algumas delas em meio às incertezas dos carnavais de guerra. Eu vi os sambistas se dividirem, brigarem, formarem Associações diferentes, mas depois se unirem novamente. Vi as confusões de 1952, ano em que não teve apuração, e, no carnaval seguinte, conquistarmos o supercampeonato com as “Seis datas magnas”, tirando nota máxima em todos os quesitos. Hoje, em nosso carnaval celestial, quando rodopio movimento as nuvens brancas, que em forma de espiral rajam o azul do céu. Lá embaixo, eles ainda usam bandeiras de cetim.

Para rodar com o nosso pavilhão, menina, eu trouxe Vilma Nascimento, o Cisne da passarela, que está lá por baixo. Comigo não tinha malandro que se criava. Eu herdei esta missão e honrei cada dia da minha vida para cumpri-la. Fui tetracampeão, de 1957 a 1960. Quando cantamos “Legados de D. João VI” e “Brasil Panteão de Glórias”, os sambas eram de sua autoria, Candeia. Fomos campeões festejando o pintor “Rugendas” e usando violinos para ilustrar o “Segundo casamento de D. Pedro I”. Nós  apresentamos a obra “Memórias de um sargento de milícias”, cujo samba foi escrito por aquele rapaz que está lá embaixo, o Paulinho da Viola. Lembro-me da festa ao conquistarmos o título de 1970, “Lendas e Mistérios da Amazônia”. No ano seguinte, Ary do Cavaco, você escreveu uma bela poesia homenageando a Lapa. Então, logo após exaltar “Macunaíma”, minha parte nesta missão se cumpriu. Vai, Betinho! É hora de um rufar de trovoadas. Lá embaixo, eles ainda fazem som batendo no couro de um surdo.

O Senhor sabe que eu fui o autor de Macunaíma, não sabe? Eu e a Clara cantamos juntos na avenida. Esta também foi a minha missão. Eu compus “Hoje tem marmelada”, samba com o qual fomos campões, e o antológico “Das maravilhas do mar fez-se o esplendor de uma noite”, sucesso absoluto. Tudo bem, eu passei por outras escolas, mas sempre que partia deixava meu coração na Portela, e para ela retornava. Nas minhas andanças, vi o carnaval atrair turistas. Vi surgir o sambódromo! Aquilo que um dia foi pequeno se tornava as Escolas de samba S. A. Eu vi Silvinho ser campeão cantando “Contos de Areia”. Em um lindo amanhecer de carnaval, vi Dedé cantar a “pombinha da Paz”, e depois, anos mais tarde, arrepiar a todos com um belo “Tributo à vaidade”. Vi o “azul” ser cantado em todas as suas tonalidades! Eu vi o Noca, que está lá embaixo, sacudir a avenida com seu “Gosto que me enrosco”. Hoje, para o nosso carnaval celestial, componho orações unindo os sentimentos daqueles que expressam saudade. Lá embaixo, eles ainda estão limitados pelas letras escritas num papel.

Eu sei como se compõe, aqui e lá embaixo. Fui o último a chegar cá em cima. Vivi o que vocês só viram à distância. A parte que me cabia nesta missão foi levar a Portela para o século XXI, batendo suas asas em um novo milênio. Eu vi nossa escola cantar o “Amor”. Vi Madureira “subir o pelô” e revolucionar o gênero samba-enredo. Eu estava ao seu lado, Falcon, quando você apontou para frente e todos o seguiram. Eu vi a imponência da Águia redentora. Vi nossa escola cantar as “viagens”, e, em 2017, conquistar sua vigésima segunda estrela: “Quem nunca sentiu o corpo arrepiar ao ver esse rio passar”. Liderei por décadas a minha velha guarda, levando o nome de nossa escola para todo o planeta. Canta, Surica! Canta que o samba dominou o mundo, cumprindo a profecia de nossos fundadores. O sonho deles é realidade. Inspira cada jovem que agita suas bandeiras nas arquibancadas. Hoje, sinto-me leve. Minha voz ecoa livremente pela eternidade. Lá embaixo, eles ainda usam microfone e caixa de som.

Neste carnaval do centenário, quando a sirene da avenida tocar, não deixem de olhar para cima. Nós estaremos na claridade que emana da lua, no brilho de cada estrela do firmamento, no vento suave que toca seus corpos. Nós estaremos fantasiados daquilo que vocês costumam chamar de natureza. A Portela é o nosso legado. Iluminaremos seus caminhos, mas a missão agora é de vocês. A história da Portela é uma jornada atemporal. É a saga de gerações que se sucedem no tempo. É um sonho que nos une ao infinito. Os próximos cem anos nos aguardam.