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Condomínio Brasil
SINOPSE ENREDO 2018

Condomínio Brasil



Sinopse:

“As grades do condomínio são pra fazer proteção
Mas também trazer a dor se é você quem está nessa prisão.”

“Minha alma (a paz que eu não quero)”, O Rappa.

Inspirada no discurso cinquentenário de Martin Luther King; na música “Identidade”, de Jorge Aragão; e no livro Mal-estar, sofrimento e sintoma – uma psicopatologia do Brasil entre muros, de Christian Dunker.

E se Martin Luther King fosse um negro brasileiro?

Quando os arquitetos progressistas da nossa república escreveram as magníficas palavras para decretar a construção do condomínio, eles também estavam assinando uma nota promissória de que todos os homens teriam seus direitos garantidos. Contrataram-se engenheiros, ditos também progressistas, para executar a obra, que tinha como meta organizar e projetar espaços que honrassem o estatuto assinado. O condomínio se ergueu à custa dos meus irmãos, no entanto. As grades foram construídas, primeiro. A planta ganhou contornos, depois.

À margem do condomínio eu então me encontrava, à deriva da própria sorte. Para não conturbarmos a ordem interna, recebíamos raramente auxílios da administração central, ínfimos, por sinal. Na área central do condomínio, havia “mansões-castelos medievais”, onde mora os sín(d)icos da administração central; havia inúmeras torres de apartamentos. Cada andar da torre era específico para determinado público da sociedade: as coberturas eram luxuosas, destinadas aos endinheirados; os outros andares tinham apartamentos apenas confortáveis; mas, para nós, negros, não havia espaço. Quer dizer, havia, quando muitas vezes eu ou algum de meus irmãos dormíamos no prédio, a nós era reservado um espaço 3×4, pequeno como a foto de uma identidade, isolado do restante dos cômodos do apartamento; ou seja, dormíamos em um verdadeiro “apertamento”. Eu e meus irmãos morávamos nos extremos do condomínio e sempre dormíamos nos extremos do apartamento, ou seja, em uma ilha só de pobreza no meio de um vasto oceano de prosperidade material. Ainda adoecemos nos cantos do condomínio e nos encontramos exilados em nossa própria terra, nesse sentido.

Para entrar na área nobre do condomínio, era preciso interfonar ao morador. O porteiro que me recebeu era negro igual a mim.

“O que você quer? Qual o apartamento?”, ele disse, sei lá.

Vou fazer um serviço elétrico para a madame do 5º andar, respondi, pensando no quinto dia útil do mês que o patrão nunca respeitava.

Pensei que você fosse consertar os elevadores do prédio, me retrucou.

Essa burocracia na minha mente não fazia sentido. O pessoal vive ali, na minha favela, entrando e saindo na hora que bem quiser. Não há porteiros.

Ele finalmente interfonou para a senhora.

Enquanto ele falava com a moradora, reparei que, escondida entre as placas, havia uma câmera apontada para mim. À lembrança, o revólver engatilhado na minha cara todo dia quando, a caminho das margens do condomínio, os homens da lei me param na rua. Na guarita do porteiro, havia uma televisão, uma espécie de olho mágico, que reproduzia minha imagem.

“Será que a cobradora do meu serviço, sei lá, está também vendo o movimento aqui?”, pensei. Me senti fichado, como estivessem fazendo meu retratado-falado, para um inquérito policial.

A moradora do prédio autorizou a minha subida. Mas antes fui obrigado a tirar foto, informar o número da minha identidade civil, botar o meu polegar direito e o esquerdo no sensor de digitais e passar pelo sensor de metais que estava mais à frente, para, depois, somente depois, receber o crachá de visitante e ultrapassar a roleta da entrada do bloco. Quando enfim eu parecia liberado para entrar no prédio, já caminhando, ouço ao longe o porteiro gritar: utilize o elevador de serviço, senhor.
“Esse cara é tão negro quanto a mim, e por que ele está me dando ordens?”, pensei. Ainda não fui libertado – e nem ele, pensei mais um pouco.

Respirei fundo. Apertei o botão do elevador de serviço. Estava esperando para entrar no elevador. 13º andar, décimo terceiro que nunca vi cair; do 5º ao 3º andar; quantidade de parcelas do seguro-desemprego que nunca recebi, depois de ter trabalhado um ano e meio como cozinheiro para o grã-fino da cobertura do outro prédio; enfim piso; salarial que nunca foi respeitado pelo último bacana que me contratou. As portas se abriram, e a voz eletrônica disse: “térreo”.

Entrei no elevador de serviço. E comigo entrou uma cozinheira, também negra, de uma festa de 15 anos que iria acontecer no playground daquele prédio. Naquele momento agradeci por não estarmos indo para o subsolo; para o subemprego. Mas me chamava atenção o elevador de serviços não ter espelhos, tão comuns no elevador social. Eles estavam cobertos. Eu não conseguia ver meu rosto. Eu não conseguia perceber a minha identidade. O (eleva)(dor) que, mesmo antes de chegar, já minava totalmente meus sonhos, agora apagava a imagem da minha negritude.

“1º andar”, disse a voz eletrônica do templo que contempla a minha dor e de todos os meus irmãos pretos. A cozinheira, que estava com muito peso, me pediu ajuda para carregá-lo até a área da festa. Solícito com meu semelhante, não neguei. Desci um pouco antes do meu trabalho, que era no 5º andar. Pensei que me atrasar um pouco, por causa da minha boa vontade, não faria diferença. Desci então para ajudar a minha irmã de cor.

Fomos entrando na área reservada para jogos. Enquanto, à direita do playground, alguns filhos dos papais ricos – acompanhados de babás negras – brincavam com seus smartphones, tablets e brinquedos que pareciam seres humanos; à esquerda, o meu horror: ouço vir, de um camarim improvisado ali mesmo, a debutante, vestida de sinhá, dizer: “Mamãe, mamãe, a Tia Nastácia chegou. E com um homem. Será que ele quer ser mais um personagem da minha festa, mamãe?”. Ali, no meio do salão, eu estava paralisado. Mas consegui perceber que ali, em outro camarim, distante da aniversariante, meus irmãos estavam se arrumando de serviçais – e um desses parecia ser o príncipe da festa; e ouço alguém dizer, ao longe: “o sonho dela é dar para esse negão”. O príncipe era, na verdade, brinquedo sexual daquela menina da classe média alta. No cenário montado na área central, vi que alguns estavam curvados, apáticos, brincando de “upa, neguinho”. O menino branco, loiro e de olhos claros, que estava montado na corcunda do meu irmão preto, chamava de “boneca negrinha do espanador” a sua filha.

Enquanto eu estava parado, atônito, vendo aquilo tudo na minha frente, gesticulando, e com um sorriso maquiavélico, vinha, ao meu encontro, a mãe da debutante. Antes mesmo que ela falasse, rumei em direção ao elevador. Na minha cabeça, já pensava em alguma desculpa: “Não senhora, desci no andar errado.”

Entrei, correndo, novamente no elevador. Era o social. Havia espelhos. Nele escorria o meu horror de ver meus irmãos sendo obrigados a prestarem esse papel. Mas eu tremi. Tremi por, sem querer, ter desrespeitado a uma ordem da administração central. Mas ao entrar nesse elevador parecia que eu retomava a minha identidade que não encontrei no elevador de serviço. “5º andar.”, disse a voz robótica. Engoli o meu desgosto a seco. Com a mão, enxuguei o suor que escorria da minha testa. As portas do elevador social se abriram. Desci no andar.

A porta, quando desci no corredor, já estava aberta, com a senhora bem em frente a ela, parecendo entediada pela minha demora a chegar.
Desculpas, desculpas, pela demora, logo disse.
A cara dela, no entanto, não era de aceitação. Tentei ainda dizer mais algumas palavras que justificassem a demora, mas ela já foi logo me cortando: eu vi tudo pelo dispositivo de monitoramento que o condomínio cede a cada morador. Fiquei sem graça. Recebi ordens para resolver o problema na sacada do apartamento. Ela dava de frente pra favela.

Enquanto eu tentava consertar o problema elétrico que havia na sacada dos bacanas, a madame, sentada à mesa de vidro, com apoio de mármore carrara – que devia pagar uns 10 serviços meus -, bebendo da xícara, de porcelana, da amargura e do ódio, disse: “Vamos logo aí, termine o trabalho, para eu fechar as cortinas. Não sou obrigada a ficar contemplando essa visão do inferno.”

Eu estava concentrado no trabalho, suando muito, devido ao calor infernal que fazia na sacada. E a mim não foi oferecido sequer um copo d’água. Mas aquelas palavras me provocaram uma imensa azia. Era como tivesse comido algo podre e que, só depois de um tempo, me fez passar mal. Na real, aquelas palavras eram podres. Então, para esquecer o que foi dito, parei de mexer na fiação por certo tempo, fechei os olhos, enxuguei o suor na manga da camisa da empresa. Engoli a seco. Voltei a trabalhar.

De repente, vejo o marido da ricaça entrar, com uma camisa estampada “favela”, falando em bom som: “Eu já disse para você não ficar sozinha com essa gente.”

De relance, olhei para cara dele e me perguntei: “Por que esse otário anda com uma camisa estampada com o nome do meu lugar, já que a escrota da mulher dele não gosta?”

Agora, mais próximo de mim, ele voltou a repetir: “Esse tipo de gente!”

Aquelas palavras ditas na sacada me acertaram em cheio. Era como um tiro que perfurava meu coração. Era a bala que mata todo dia meus irmãos pretos. É o discurso dessa gente que não nos deixar chegar a lugar algum.

Minha vontade naquele momento era amordaçar o pela-saco e amarrá-lo na cadeira, com a fita-isolante que estava em minhas mãos; depois, rasgar aquela camisa com o nome de onde eu vim, humilde. Era a minha vontade também de estilhaçar aquela mesa toda, cortar, com o alicate que eu carregava na minha maleta, o cabelo daquela otária, e jogar o café, que estava na xícara de porcelana, na cara dela. Mas não. Seria muita idiotice da minha parte. Estava em desvantagem. Seria beber da mesma xícara de amargura e ódio que aquela escrota bebia naquela sacada.

Respirei fundo, novamente; mas a vontade era de largar tudo, deixar esse bando de safado burguês no breu.

Terminei o serviço. Dei a luz que eles tanto queriam, na sacada.

“Olha, amor, como ficou lindo!”, disse a branquela.
“Ficou mesmo”, disse o branquelo.

Eles me pagaram. Não reclamaram. Era mais do que obrigação. Mas as palavras deles eram um cheque sem fundo, ou melhor, era a prova da não garantia dos direitos que os arquitetos progressistas disseram que seriam garantidos a todos os homens: mentira, nada disso.

Quando eu tentei apertar a mão deles, para me despedir educadamente, eles recusaram, abrindo rapidamente a porta para que eu fosse embora. Parecia alergia a preto.

Eu consertei a luz deles. O ódio deles, ao contrário que achavam, me alimentou de luz e sabedoria.

Saí do apartamento, apertei o botão do elevador social, para descer. Entrei. Me olhei no espelho e disse: a revolução tem que ser pacífica. Me despi de tudo que me aprisionava enquanto ser humano. Apertei o 1. Passei pelo playground. Lá parecia já ter havido a revolução: meus irmãos quem estavam comemorando, agora. Chamei-os para irmos embora. Descemos novamente pelo elevador social. A voz eletrônica, tão chata quanto a dos moradores daquele prédio, anunciou: “térreo”. Saímos. Pulamos rapidamente a catraca, depois. Era o início de um grande movimento por direitos civis.

E antes, ao porteiro, negro igual a mim, eu disse: Venha comigo, eu tenho um sonho!

Partimos para revolucionar, no locus da inversão, que é o carnaval.

Mateus Pranto
Bacharelando em Letras-Literaturas de Língua Portuguesa (UFRJ) e membro do observatório de carnaval Labedis/MN/UFRJ

Setorização e breve explicação

Primeiro setor – Bem-vindos ao condomínio (sem/de) luxo, ou de lixo, o que vossa senhoria desejar.

É a construção da imagem da segregação socioespacial no Condomínio Brasil. A miséria e o abandono, às margens; a riqueza e a assistência, ao centro.

Segundo setor – Elevador – templo-exemplo para minar sonhos.

É a construção da imagem entre elevador social versus elevador de serviço. A que tipos de serviços e leis trabalhistas os negros brasileiros ainda são subjugados? Por quais razões impedem que os negros ascendam socialmente? É a retirada da negritude.

Terceiro setor – Play(black)ground brasileiro.

É a construção da imagem de que o negro ainda é objetificado. Confirma-se aqui a carga pejorativa atribuída à negritude. Ser preto, no Condomínio Brasil, é ser motivo de chacota.

Quarto setor – Da sacada do Condomínio Brasil, as duas faces do verbo-canhão.

É da sacada que se constroem discursos. E é dela que a negritude todo dia é arremessada. Se, por um lado, há um discurso de demonização da favelização; por outro, constrói-se um discurso de libertação os que são vítimas diárias da violência dos sín(d)icos do Condomínio Brasil. Apropria-se, nesse sentido, dos discursos de personagens internacional e nacionalmente que lutaram pelos direitos civis, como por exemplo Martin Luther King, ativista estadunidense que lutou contra a discriminação racial norte-americana. É o processo de inspiração para a construção da revolução à brasileira, com heróis contemporâneos, uma vez que ainda se vive do vulto histórico, por exemplo, de Zumbi e Dandara. É o início da recuperação da negritude.

Quinto setor – Locus da inversão das regras do Condomínio Brasil.

É a construção da imagem da revolução por direitos civis, que agrupam as prerrogativas de liberdade individual, liberdade de palavra, manifestação, pensamento e fé, liberdade de ir e vir, defesa, propriedade, contrair contratos válidos e o direito à justiça. Supõem-se, nesse sentido, heróis contemporâneos para a defesa da negritude brasileira: quem são/eram/devem ser personagens atuantes nesse processo? É necessário inverter a ordem para alcançar, enfim, as garantias e privilégios das quais qualquer cidadão brasileiro necessita. É a concretização dos sonhos da negritude. E o carnaval, locus da inversão e palco de sonhos, serve como gênero-denúncia das atrocidades do Condomínio Brasil.

Autor: Mateus Pranto