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À Flor da Terra – No Rio da Negritude entre Dores e Paixões
(Mangueira - 2025) Ouça
o ruído do mar. Pense em quem foi saído de Cabinda, de
Luanda, de Benguela. Jogue o corpo pro centro do mundo. Prepare a
mão pra bater, o pé pra riscar e o peito para vibrar nos
acordes e nos tremores do som. Desaterre a experiência dos
bantus, unidos pelos seus traços linguísticos, e
criadores de uma sofisticada visão de mundo.
A sua própria leitura da realidade se manifesta no ciclo bakongo através da união do mundo visível e do mundo invisível. Vida e morte fazem parte do mesmo ciclo; não se anulam, complementam-se. Um entendimento sobre a existência que foi silenciado pelo racismo, na ideia de superioridade dos pensamentos brancos e pelo estabelecimento de uma outra forma predominante de refletir sobre a negritude. Essa visão de mundo se reafirma contra as verdades históricas e contra o apagamento da sua contribuição africana de uma cidade que não se limita nas fronteiras tradicionais. O Rio também é o Atlântico. Pelo cais, o Rio também recebe o mar. A água conduz as passagens e é no seu interior que estão guardados a memória e os mistérios ancestrais. É possível ver o invisível submerso sob o espelho d’água, conectando-se com as forças dos antepassados. Nas kalungas, vida e morte se sobrepõem, dentre corpos, almas e inquices. A terra absorve tudo o que nasce. É Kavungo. Anuncia memórias fincadas no solo, que guardam as dores em busca de reparação dos pretos novos e pretas novas. As entranhas subterrâneas revelam a verdade, expõem as marcas, devolvem o que se tenta esconder e apagar o que está à flor da pele – À Flor da Terra! A ventania de Kaiango governa os cursos espirituais, conduzindo caminhos. Finaliza e recomeça destinos que fazem a passagem e podem assim retornar ao ciclo da vida. Em Ku Nseke, plano terreno, território de contato, ressurge o choque de culturas. Era o branco a própria morte, autoritário, que impõe a sua natureza e o seu feitiço de dominação sobre as populações negras. Desse lado do Atlântico, os irmãos de cor, juntos, pela comunhão, buscam reconfigurar e estabelecer laços para promover afetos em vida. Irmanados pela ancestralidade, pelas frestas da santíssima macumba e por diferentes modos de existir, os bantus se fincam e transformam a sua realidade. Não de forma dócil ou ingênua, como incorretamente ousaram dizer, mas sim complementar, ao absorver o que alimenta a força vital. Agindo por si, com os outros. Eles têm na natureza, nas ervas e nas plantas a sua essência espiritual, que se manifesta nas ciências e em saberes requintados. Suas mãos curam, transformam, criam e fazem do seu trabalho um lugar no mundo, espaço de viver e exercer parte de seu conhecimento trazida como bagagem. São ferreiros, quituteiras, barbeiros, aguadeiras, trabalhadores urbanos e do porto, agentes da liberdade, seja pela compra ou pela luta, fundamentando uma outra experiência, que possibilita o trânsito e a circulação como sujeito da cidade. Sujeito que também soube triunfar e enaltecer sua altivez em glória pelos caminhos do Rio. Nos zungus, locais de intensa convivência, essa negritude, liberta ou não, recebe, acolhe, festeja, transbordando ancestralidade, imprimindo suas marcas em sua forma de viver e de se organizar em sociedade. Panos brancos tremulam aos ventos nas janelas dessas habitações, anunciando refúgio aos necessitados. Os povos bantus são capazes de reconstruir sua terra em qualquer espaço. Com as relações comunitárias, modificam o lugar, negociam e entrelaçam culturas. Modelam novos territórios, forjam novas práticas e hábitos. Apoderam-se afrontosamente do Rio, agregando outros saberes para reformular as suas próprias experiências. Ao ocupar a cidade, as contribuições dos bantus se diluem e pulsam na identidade negra do território carioca. Tagarelamos, comemos, tocamos e dançamos conforme as heranças e as tradições desses povos. Ter um dengo, criar um moleque, reunir-se em kilombo, ir pra macumba, pedir na umbanda, bailar como nos lundus, comer um quiabo pra não pegar um feitiço, cozinhar com fubá, mergulhar no dendê, fazer um batuque, chocalhar um ganzá, tomar cachaça. De boca em boca, mais do que palavras, práticas também são passadas de gerações para gerações. Esses conhecimentos fundamentais atravessam o tempo, cruzam o espaço e se revelam no cotidiano de um Rio de Janeiro tão efervescente. Além de arquivo a céu aberto, a rua guarda as memórias, as dores, as paixões e as lutas dos bantus. Diferentes formas de existir se fazem presentes nas esquinas, ruas, vielas, por onde circulam herdeiros desses povos recriando saberes e constituindo a vida de forma revolucionária. Das cicatrizes de uma cidade caótica, surgem flores que promovem o horizonte negro. Ao andar pelo Rio, movimentar a vida, balançar o corpo, propagar conhecimentos, ensinar valores, cria-se uma forma de restabelecer conexões através do futuro ancestral. Com feridas abertas de um passado presente, persistem desaparecimentos, silenciamentos e apagamentos de uma juventude marginalizada e negra, que abre novas frestas desejando as venturas do mundo. Olhe o céu. Escute o trânsito das kalungas. Pense na pipa e no barulho da rua. Sente os sons graves e ruidosos que estão no dia a dia carioca. Ouça os toques d’Angola, o tamborzão e a batida do funk. Prove esse solo aterrado de memória sabendo que o samba macumbado no couro da mão tem razão de ser. A cidade se veste de branco nas renovações de ciclo. A cidade continua. A cidade festeja a vida para se encantar dela. A cidade ousa viver e construir futuro. Tem uma nova chance a cada alvorada, a cada cria, a cada sol, que nasce todo dia desse mesmo chão, carregando consigo as experiências dos seus mais velhos e reinventando a liberdade. Atrevida por natureza e banhada da ancestralidade bantu, a alma carioca desafia a morte, celebra a vida e faz carnaval! Carnavalesco Sidnei França Pesquisa de Sidnei França, Ariel Portes, Felipe Tinoco e Sthefanye Paz |
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