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Ilê Axé Opô Afonjá – O Rei está na terra (Leão de Nova Iguaçu - 2017)

Ilê Axé Opô Afonjá – O Rei está na terra (Leão de Nova Iguaçu - 2017)

Carnavalesco: Cid Carvalho

Parecia que o tom prateado do luar voltara seu brilho especialmente para aquela pequena casa branca, toda enfeitada de bandeirinhas e folhas de mariô, situada no bairro de Coelho da Rocha, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense! A impressão que se tinha era que a luz da lua, sabedora que aquela noite era especial, tinha resolvido dançar com a claridade do fogo que ardia na imensa fogueira no meio do terreiro.

Havia uma intensa movimentação no lugar e os filhos e filhas da casa recebiam os convidados que iam chegando, devidamente trajados como nobres africanos para saudar o grande Alàáfin de Òyó, eram acomodados em pequenas arquibancadas nas extremidades do salão principal.

Um místico perfume de ancestralidade envolvia o recinto e logo os atabaques começaram a rufar a avamunha anunciando o início da celebração. Por detrás de uma cortina branca rendada, saíram mulheres dançando, majestosamente vestidas com saias coloridas, panos da costa e de cabeça engomados e, a cada mudança no ritmo e na cadência emanada dos tambores sagrados, um diferente orixá era evocado e seu filho ou filha o reverenciava, curvando-se e colocando a cabeça no chão.

Era o prenúncio que aquela celebração seria mágica e inesquecível!

As horas foram passando e o Xirê foi se desenhando como um lindo ritual dos antigos Yorubás. Em determinado momento, feito um estrondo de trovão, o corpo de um dos filhos estremeceu e ocupou o meio do salão.  A saudação exclamada por todos se sobrepôs a batida do Ilu Batá: “Kao kabecile”!

O Rei estava na terra! Era Xangô, o orixá justiceiro, que acabara de chegar à sua casa, o Ilê Axé Opô Afonjá!

Dançando, o Rei deixou o salão para retornar momentos depois ao som do Alujá, já com suas vestes, sua bombacha e uma imponente coroa. Nas mãos carregava o oxê, o machado de duas lâminas, e seu ilá parecia ressoar além das paredes, além do barracão, ecoando no tempo e no espaço como um trovão.

Como numa espécie de antigo cortejo, Xangô, com suas esposas Oxum, Oyá e Obá, e acompanhado de sua mãe Iemanjá e do velho Oxalá, saudou todas as divindades manifestadas, convidadas de honra que eram daquela grande festa em comemoração pelos 130 anos de existência daquela casa.

Sentada em uma imponente cadeira colocada em posição de destaque, Mãe Regina de Iemanjá, a matriarca da casa, assistia o bailar de Xangô e das yabás, as orixás femininas. As lágrimas banhavam o rosto da Ialorixá ao relembrar todos os passos da sua caminhada espiritual e as histórias vividas e contadas por suas antecessoras, as mulheres que construíram o Ilê Axé Opô Afonjá, afinal, foi a força feminina que havia trazido até ali a tradição do Axé.

O toque dos atabaques, feito saudosa melodia, embalava as recordações de Mãe Regina. O Ijexá deu então o tom para que Oxum irradiasse sua beleza para todos e fez a sacerdotisa lembrar-se de Mãe Aninha.  Na verdade, tudo começou com Mãe Aninha – a Obá Biyi, baiana, filha de africanos, que conhecera de perto as mazelas e tristezas da escravidão. Foi a ela, 130 anos atrás, lá na chamada Pequena África carioca, mais precisamente na Pedra do Sal, que Xangô deu a tarefa de plantar aquele axé e criar uma casa firme como a rocha. Foi lá, vendo os negros trabalhadores do cais do porto subindo e descendo a ladeira, que ela fixou a pedra sagrada de Xangô e onde a casa começou a existir e marcar seu caminho de glórias por sobre as pedras das dificuldades.

Uma agitação trouxe a atenção de Mãe Regina de volta ao barracão. Chegara a hora de Yansã dançar o quebra-pratos. O ritmo agitado e seu modo de requebrar, mostrava a todos que a guerreira estava muito feliz ao dançar para o marido Xangô. A yabá das tempestades abanava a saia e o vento desse movimento fez com quê mãe Regina mais uma vez viajasse no tempo e encontrasse em suas memórias a segunda geração daquela casa, Mãe Agripina – a Obá Déyí. Nascida em Santo Amaro da Purificação, a terra do samba de roda, ao chegar ao Rio de Janeiro, vendeu cocadas e doces em tabuleiros para sobreviver. Foi para mãe Agripina que Xangô avisou, depois de tantas mudanças de endereço impostas pelas perseguições, que queria a sua casa definitiva e que esta seria fincada na Baixada Fluminense. E, de fato, ela foi a grande responsável por garantir a roça de Xangô onde naquela noite a festa estava acontecendo.

A noite já ia grande quando Obá, a guerreira, a valente, a primeira esposa de Xangô, começou a dançar protegendo a orelha e cortando o ar, ora com a adaga, ora com o ofá e fez a Yalorixá se recordar da guerreira Mãe Cantú, a Ayrá Tolá, a terceira sacerdotisa daquela casa e sua mãe espiritual. Foi com ela que Mãe Regina aprendeu tudo sobre os orixás e sobre os fundamentos do candomblé.

Radiante de alegria e transbordando de emoção, Mãe Regina levantou-se da cadeira sacerdotal e saiu para dançar com Yemanjá, sua deusa, sua mãe de cabeça. Havia mesmo muito que se comemorar por esses 130 anos do Ilê Axé, pois, apesar de todos os percalços de uma história iniciada em um tempo muito difícil, de perseguição policial, a casa se manteve firme como uma rocha.

Com o sol já querendo beijar a lua, chegou o momento das despedidas!

Oxalá começou a dançar e sobre o pai de todos os orixás, um enorme pano branco, o Alá, foi colocado. E para homenageá-lo, vários Orixás foram chegando, primeiro Oxumarê, depois Ogum, Oxossí e Ossain, formando um lindo cortejo africano. E assim como chegaram, um após o outro, os orixás se despediram do salão e se foram.

Por fim era a hora de Xangô se despedir e o senhor do fogo oculto deu o seu grito de guerra, forte como uma pedra e imponente como um LEÃO: Kao, Kabecile Xangô!

O Rei se foi, mas que fique entre nós o desejo de que um tempo de justiça e de igualdade se inicie. Que as diferenças sejam respeitadas e os preconceitos derrotados pelo machado do Alàáfin de Òyó!

Salve o Ilê Axé Opô Afonjá! Salve os 130 anos de lutas, de preservação e de glórias!

AXÉ!

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Dicionário:

Mariô – folha do dendezeiro.

Alàáfin de Òyó – título do Obá (rei) do império de òyó.

Avamunha – é o toque ou ritmo entoado pelos atabaques.

Xirê – roda ou dança utilizada para evocação dos Orixás.

Yorubás – diversas populações africanas ligadas pelo idioma ioruba, além de uma mesma história e cultura.

Ilu batá – tambor para culto de Xangô.

Kaô Kabecile – o Rei está na terra.

Alujá – ritmo rápido que expressa força e realeza, que recorda os trovões, dos quais Xangô é o senhor.

Ilá – é o grito tribal dos deuses africanos, é a voz do Orixá.

Oxê – machado de dois gumes usado por Xangô.

Yabás – as Orixás femininas.

Ialorixá – sacerdotisa de um terreiro de candomblé, a mãe de santo.

Ijexá – ritmo oriundo dos Iorubás, tocado nos terreiros de candomblé.

Ofá – arco e flecha.

Alá – pano branco.



Bibliografia:

Ilé ase òpó Àfònjá – Da Pedra do Sal até Coelho da Rocha – Ed Machado

Mãe Agripina – Ìyalòrìsà nìlé Àse Òpó Àfònjá, uma história no candomblé do Brasil – Ed Machado

Faraimará – O caçador traz alegria  Mãe Stella, 60 anos de iniciação  – Cléo Martins e Raul Lody

Mãe Stella de Oxóssi – Perfil de uma

Liderança Religiosa – Vera Felicidade de Almeida Campos

Herdeiras do axé – Reginaldo Prandi