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Silas Canta Serrinha (Império Serrano - 2016)
Silas Canta Serrinha (Império Serrano - 2016)

1º Setor – África, berço da negritude na Serrinha

Aos meus amigos:

Procurei nos registros empoeirados da minha alma e encontrei uma grande Serrinha!

Num episódio relicário, abro as páginas do meu livro de memórias.

Sou Silas, menino, de pé no chão, que ouvia com atenção, as histórias do Morro da Serrinha contadas pelos meus saudosos avós.

No início a Serrinha era mais um pedaço de mata aos pés da grande fazenda de Madureira. O morro era todo de barro. Mato fechado mesmo!

Sem água, sem luz e foi sendo povoado por negros com laços de parentesco e amizade descendentes de ex-escravos africanos. Tudo era uma grande família. Pura felicidade. Nos orgulhávamos da origem "Banto", que pertenciam às nações do Kongo, Ângola e Moçambique.

Passava noite, vinha dia
O sangue do negro corria, dia a dia
De lamento em lamento, de agonia em agonia

Inebriado pelas histórias daquele povo, meus olhos brilhavam quando ouvia que o Rei Banto - outros o chamavam de Manicongo, tinha poderes sagrados e que podia influenciar nas colheitas, guerras e saúde do seu povo. Ah mas isso era bonito demais!

Samba, soprado por muitos ares
Atravessastes os sete mares

A vida dos moradores aqui da Serrinha continuou bem parecida com a dos tempos de além-mar da África-mãe. Tanto que me recordo que lá encima tinham muitas cachoeiras, minas d’água, matas, animais selvagens, pássaros cantando... E tinha uma trilhazinha também. Casas de pau-a-pique, o candeeiro e o ferro a brasa que continuaram a fazer parte do dia-a-dia do Morro por muitos anos. Era a herança africana que nos deixou a força de suas raízes.

Setor 2: Prazer, eu sou a Serrinha: Paraíso dos Amores!

No fundo do quintal, entre árvores, tambores batucando, eu sentia o pulsar de uma África renascida! A roda, o batuque, palmas e suor. Um casal descalço batendo os pés na terra e negaceando os corpos. Era a ginga da minha gente! Era o Jongo. Ah o Jongo! Ah Tia Maria! Cresci assim, embalado pelo gungunar misterioso dos candongueiros e dos caxambus que ritmavam as rodas dos velhos jongueiros.

E no escaninho do meu inconsciente ficou para sempre a polirritmia desses atabaques, a magia inefável da dança onde moldaram as melodias machucadas e a temeridade expressiva dos meus sambas.

Chegou, chegou e estamos
É o poder negro, poder negro

No jongo dos bantos, quando canto e dança têm sempre fundamento, os versos improvisados em charadas desafiam os que não conhecem as tradições. O jongo é pai de muitas outras músicas.

O tempo passou e chegaram à Serrinha mais famílias de negros que trabalhavam nas fazendas. Começaram a lotear o terreno e construir suas casas no sopé do Morro. Trouxeram sua música, sua dança, sua religião, sua língua e um jeito diferente de enfrentar a dor.

Se o bem termina, o mal também se finda
Será o outono, oh! meu sincero amor
Tu serás minha e teu serei ainda
Tenho esperança de um sagrado amor

A Serrinha era quase uma família só. Eram todos por um, um por todos. Pelas ruas as mulheres vendiam cajus, melancias, galinhas. Outras tantas carregavam imensos balaios de palha na cabeça enfeitada com coloridos laços; outras eram amas de leite e carregavam crianças presas às costas, e muitas doceiras com seus tabuleiros de quitutes. Já os homens eram estivadores do cais do porto ou carregadores de açúcar, café e cereais, prestando vários tipos de serviços. Vendedores ambulantes. Alfaiates, pedreiros, sapateiros, bilheteiros, pintores, etc. Eram os braços de negros homens do Cais do Porto, da Estiva, da Resistência! Estes negros movimentaram a economia de Madureira até a chegada da estrada de ferro com a Maria Fumaça.

Através de belas passagens da nossa história do Brasil
Escolhemos um passado varonil, são vários fatos de glórias
Que a nossa história, descreve enfim
Mas só um recordamos, que foi passado assim

Distantes do centro da cidade, os moradores da Serrinha promoviam seus próprios espaços de lazer, e o samba estava sempre presente. As nossas festas duravam dias, com comida e bebida, samba e batucada, para reunir os amigos e o "povo de origem".

Labirinto de ruas, vai e vem de personagens, bandeiras coloridas desviando o caminho para chegar a terra dos sonhos. O Bloco da Lua e também o Três Jacarés, craques de animação, inventavam nosso carnaval e reinventavam nossos mundos a cada dia.

Nesta época, nos quintais do morro, surgiu a escola de samba Prazer da Serrinha. Era uma vez o desejo de construir alegria em permanente transformação. Um desejo que carregasse o samba popular e trouxesse notícias do Brasil e de sua gente.

Carnaval, doce ilusão. Dê-me um pouco de magia
De perfume e fantasia, e também de sedução
Quero sentir nas asas do infinito minha imaginação

Reduto dos foliões de Madureira, o Prazer da Serrinha alcançou notoriedade e participou da organização dos desfiles. Foi uma dessas escolas pequenas, celeiros, contudo de nomes marcantes, parceiros jamais esquecidos. Ali eu iniciei minha trajetória no mundo do samba.

Para a gente tudo era festa, era magia! Enredos como "Uma Noite Serrana"e "Sonho das Fadas" emocionaram. E o intenso "Cais dourado - A Pescaria no Cais" foi embalado por muita festança e impregnado de sorrisos e abraços. Cantávamos com a afinação das pastoras: "fui buscar na Bahia, vatapá de ioiô, pra vender aos cariocas, na Terra Santa do amor". Tudo era motivo de batucada, riso e alegria! Era a Serrinha! Era um prazer! E como era bonito ver o povo se juntar para sambar e desfilar, celebrando a alegria de viver!

Setor 3: Nos terreiros da Balaiada, os festejos da Serrinha!

O espírito festivo dos moradores da Serrinha e a consciência de preservar a cultura negra foram importantes para a formação de núcleos de famílias-artistas que cumpriam um calendário de festas por iniciativa própria. Ambiente acolhedor que afaga.

E neste ambiente de harmonia sem par
A doce complacência comanda a ficar

Convivência prazerosa e afetiva, a casa da Vó Maria Joana era um verdadeiro polo cultural da comunidade. A mãe de santo famosa nos arredores, promovia o Banquete de São Lázaro, em homenagem a
Obaluaiê, orixá das curas e das doenças. Era dia de mesa farta com muita: pipoca, feijão preto, farofa de milho e dendê!

Já no dia de São Jerônimo, os terreiros do morro eram enfeitados com bandeirinhas, flores e folhas de palmeira. Alegria de construir e transformar. Era a Festa de Xangô, o orixá do fogo, do trovão e da justiça. Ao som dos atabaques: Kaô!

A música traz também a palavra e um convite a embarcar numa viagem no tempo. Quando tinha baile de Calango na Serrinha, o som dos tambores e o dedilhar da viola aguçavam o desejo de imaginárias cartas de amor. Os casais dançavam a noite toda na roda, cantando pontos impregnados de Brasil.

A harmonia das cordas sonoras do meu violão
Se mistura num turbilhão de vozes pela amplidão
É tudo alegria que a tristeza não contesta
Simplesmente a corte está em festa

Muitas águas encantadas rolaram ao longo desses anos, muitas cantigas, muitas danças. No dia dos Pretos-velhos, jongueiros e sambistas se reuniam na casa de um morador da Serrinha para uma grande festa com roda de jongo em homenagem aos nossos antepassados. Caras e figuras em constante movimento, experimentando sabores diferentes.

No vidrinho eu levo a pinga
Na viagem eu vou tomar
No meu bolso a mandinga
No meu peito o patuá

E foi com a força dos ancestrais que aconteceu o maior acontecimento do carnaval da época! Em 1947, após o carnaval, no quintal da casa da Eulália, na Rua da Balaiada, eu, Molequinho, Fuleiro, Aniceto e Mano Décio, nos reunimos e com um simples lápis e caderno, anotamos os nomes das pessoas que estavam de acordo com a fundação de uma nova escola. E assim nasceu o Império Serrano, entrando na história como um divisor de águas na relação da comunidade com o carnaval.

Provaremos ao subúrbio e toda a cidade
Que o nosso sonho foi realidade
Meu Império eu lhe digo a verdade
O momento pra nós é muito sério

O Império Serrano foi a partir de então o irradiador de uma identidade local. Que maravilha que fizemos! Todos personagens vivos integrando a mesma história!

É com grande consideração
Que o Império Serrano se apresenta e faz questão
Boa noite, tiramos a prova real
Nosso boa noite imperial!

Aqui ainda estão ruas e telhados que abrigaram gente pura, gente imaginária, um sem-fim de personagens e suas andanças pelo reino serrano do brincar.

O auto das Pastorinhas de Natal juntava os morros da Serrinha e da Tamarineira. Um era o anjo, outro era a estrela! Tinham os galegos, as ciganas, os brincantes e eles entravam nas casas anunciando a chegada de Jesus! Cortejos de cantorias e folia pelos quatro cantos para desvendar mistérios do saber.

Foi com o repicar dos sinos, o roncar das cuícas e com uma alvorada de vinte e uma batidas no surdo que a Serrinha passou a comemorar o Dia do Samba. Sempre com muita festa e roda de samba de Partido alto.

O dia morreu, a noite findou
Eu fiquei tão triste quando o samba terminou

Dez da noite, com a fogueira acesa, as tias e vós, tios e avôs rezavam ladainhas na pequena capela que existia no quintal da casa de Vó Maria Joana. Não importava se era santo da Igreja ou do Candomblé. Se era dia de santo, era dia de festa!

Em junho todo mundo queria ir nas festas juninas. As Folias de São João na Serrinha eram na casa da Tia Maria da Grota. No terreiro dela tinha fogueira, e o agitar das fitas coloridas indicava que era hora de provar o bolo de coco, bolo de milho, canjica e aquela comidinha mineira deliciosa que só ela fazia!

Comprei flores
Na bela Maria Preta
Pra enfeitar o arraial

Também me lembro quando Jorginho (filho de Mano Décio), Careca e Jamelão formaram o grupo “Os Três Pelés”. Eles faziam uma dança como se fosse partida de futebol. Eles partilharam alegrias e folganças. Toda rapaziada também queria dançar. Então eles criaram a primeira ala de passo marcado da história do carnaval: a “Sente o Drama”. Descobriram-se parte de um sonho construído, onde convivem até hoje a alegria ruidosa e a concentração zelosa.

Toda a tristeza foi vagar e não tornará mais a voltar
E o Rei Momo é provável que virá nos visitar
Eis a razão: precisamos ensaiar, ensaiar

Ver a Serrinha brotar e florir encheu de orgulho adultos e crianças. Mundo em movimento. Encantamentos, transformações e fé.

E como bom imperiano, todo dia 23 de abril eu acordava às quatro da manhã para ouvir da minha janela, a alvorada em louvor ao santo guerreiro, com muitos fogos crepitando no céu! Depois me vestia de branco e seguia a Procissão de São Jorge pela Serrinha. Nossa devoção é feita de alegria e festa, atravessa gerações, enfrenta dragões e encantamentos, e persiste densa e fértil como a terra aguada a cada dia.

Setor 4 - Avante imperiano! A luz de Deus iluminou a Serrinha!

Depois que eu parti, fiquei observando de longe a evolução chegar à minha gente. Com os olhos de um menino de quarenta e sete, vi o meu lugar se consagrar como um autêntico reduto do samba.

O mundo é o teatro da vida
que no palco de luta renhida
desempenha seu papel

O comércio popular tomou conta das ruas e o povo se rendeu à modernidade. Bom, bonito e barato! Tem de tudo e pra todo mundo. Pra casa, pro corpo e pra mente! Um banquete à céu aberto. Pregoeiros nas ruas e nos trens serviram de inspiração para a criação da “Baleiro-bala”, a ala infantil imperiana.

Os moradores desceram a Serrinha e aderiram ao baile charme do Viaduto. Com moda, estilo e um jeito especial de dançar, vi a juventude ocupar seu espaço de direito e com respeito, reafirmar sua negritude!

Essa brisa que a juventude afaga
É a evolução em sua legítima razão

A Serrinha entrou para a história através de livros, filmes, peças de teatro e publicações diversas. Marcamos presença na peça “Esta vida é um carnaval”, de Carlos Machado e no filme “Tia Eulália - O Império do Divino”, sobre a fundadora e portadora da carteirinha número um da escola. Arte e cultura. O realismo em cena. E mais, o Império levou o nome da Serrinha para lugares nunca antes imaginados! Escreveu uma nova história, e consagrou quatro sambas enredos entre os dez mais importantes da história do carnaval! Também imortalizou um conceito novo com o enredo Bumbum Paticumbum Prugurundum, que ficou até hoje nas nossas lembranças.

Samba, eu confesso,
És a minha alegria,
Eu canto para esquecer a nostalgia.

Com maestria os compositores escreveram a poesia do morro no asfalto. Inesquecíveis composições que ganharam vida, marejaram os olhos e emocionaram os corações; transformaram-se em lindos sambas que são cantados até hoje, por qualquer mortal que pisar no chão de estrelas que é o Reizinho de Madureira.

Nesta maravilha de cenário, a apoteose do meu coração é um episódio relicário. Palco onde vou festejar meu centenário com os nobres imperianos da minha Serrinha: Molequinho, Mano Décio, Eulália, Fuleiro, Aniceto, a nossa tradicional velha guarda e todos os torcedores que hoje estão espalhados pelo mundo afora! Nas ondas do infinito mar verde e branco e no céu prateado da minha constelação, hoje consagramos o Carnaval dos Baluartes.

Neste desfile do meu Império, revivemos nossa trajetória e os anos de glória com a minha gente a lhe dizer: prazer, eu sou da Serrinha! União e força para o povo guerreiro, porque chegou a hora do
Império Serrano!

Vejam essa maravilha de cenário
É um episódio relicário
Que o artista num sonho genial
Escolheu para este carnaval

Carnavalesco: Severo Luzardo Filho
Pesquisador: Jeferson Pedro