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Dona Ivone Lara, o Enredo do meu Samba (Império Serrano - 2012)
Serra...
dos meus sonhos dourados. É de lá que desce o cortejo
verde e branco a ondular pela Avenida ao som da mais vibrante sinfonia
percussiva. Marcação que evoca a ancestralidade de uma
dinastia formada por nobres de alta linhagem africana. Um reino
construído em muitas formas de arte. Entre elas, o jongo, o
samba e o carnaval.
São cânticos, danças e vozes que se levantam altivas num ritual de consagração no grande terreiro da Avenida, onde a cada desfile são renovados os laços de fé e devoção dos seus súditos. É o Império na Sapucaí, que exalta sua própria essência, personificada por Dona Ivone Lara. Enredo do Meu Samba, que nasce de uma história marcada por melodias, amores e sonhos trançados nas teias do tempo, percorrendo as trilhas do que se chama destino. Dois caminhos, uma só paixão: a música! (“Dona Ivone é um sonho meu, um sonho seu, nosso melhor sonho, pois ela é real!” – Zélia Duncan) Em casa, a pequena Yvonne da Silva Lara ainda não era Dona, nem seu nome era grafado “Ivone”, como ficaria conhecida tempos depois. Mas já trazia na veia o sangue musical herdado da mãe, pastora do rancho Flor do Abacate, e do pai, exímio violão de sete cordas e integrante do bloco Os Africanos. Uma família de muitos talentos. Um dos seus primos era ninguém menos que Antônio dos Santos. Não conhece? Mas se o chamarmos de Mestre Fuleiro, você há de lembrar... E foi com ele que surgiu uma canção soprada das asas de “Tiê”, pássaro que abriu os caminhos da menina para compor. A evocação do “Tiê” vinha acompanhada da sonora repreensão “Oia lá, oxá”, que tanto ouvia da avó. E assim, ao beber na rica fonte que minava na própria casa, nasceu a primeira obra, misto de música infantil com levada de terreiro. Enquanto a casa pulsava musicalidade, o colégio interno em que estudava na Tijuca oferecia à jovem Yvonne a formação teórica por meio das aulas de canto orfeônico, coro formado por vozes afinadas. Entre as alunas, estava a contralto Yvonne, que não demorou muito a chamar a atenção da professora e maestrina dona Lucília, mulher de ninguém menos que Heitor Villa-Lobos. E foi sob a regência do Maestro que a jovem estudante se destacou em um encontro de corais, evento que reuniu orfeões de vários colégios do Rio de Janeiro. E que a levou a se apresentar no Orfeão dos Apiacás, na Rádio Tupi. São episódios que marcam o reconhecimento ao talento da menina que despontava para a formação em teoria musical. A vocação cultivada em casa era lapidada na escola. A união do erudito com o popular, da formação com a intuição, seria fundamental para forjar o traço melódico da futura cantora e compositora. A vida foi em frente... (“Quem é mesmo da Serrinha / Trata o samba com respeito / Traz as cores verde e branco / Do lado esquerdo do peito” – Carlinhos Bem-Te-Vi) Enfermeira, dona de casa, mãe e esposa exemplar, Yvonne Lara tentava conciliar mundos às vezes excludentes: a vida doméstica e profissional com as inspirações melódicas que teimavam em acompanhá-la. E o samba... ...ah, o samba!! Esse danado que mexe o corpo da gente, raiz do carnaval que em 1947 viu nascer um novo capítulo com a criação de um majestoso Império de bambas. Mas compor samba não era coisa de mulher. E ao lado do “Apito de Ouro”, nosso Mestre Fuleiro, primo e diretor de harmonia da nova escola, surgiram obras apreciadas tanto pela alta linhagem imperial como pelos sambistas das demais escolas. Dona Yvonne já era respeitada, mesmo sem assinar muitas de suas composições. Foi por isso que em 1961, viveu um momento inesquecível ao desfilar como crooner da ala de compositores, embora dela não fizesse parte oficialmente. Até que veio o carnaval do Quarto Centenário do Rio de Janeiro. Era um momento especial na história da cidade. As escolas deveriam apresentar temas cuidadosamente escolhidos para celebrar a data. E assim surgiu Os Cinco Bailes da História do Rio. Algo acontecia na Corte Imperial, prenúncio de uma revolução. Ao lado do mestre Silas de Oliveira e Bacalhau, Yvonne assinou o samba e entrou para a história. Mais do que isso: conquistou a quadra verde e branca, encantou pastoras, emocionou os componentes. E sagrou-se a primeira mulher a vencer uma disputa de samba-enredo na história do carnaval carioca.Na Avenida, o Império bailou ao som de uma melodia cheia de nuances e lará-iás. Surgia com brilho raro uma das obras-primas do gênero samba-enredo. E a estrela da cantora e compositora iluminou muito mais que a própria corte da qual já era rainha. Nos Palcos da Vida (“Dona Ivone respira música. Se ela estiver num canto, paradinha, pensando, pode saber que tem música aí”. Bruno Castro – compositor e parceiro) A repercussão da vitória de 1965 foi grande. Porém conciliar trabalho, família e carreira não era nada fácil. Mas com jeitinho e jogo de cintura, Yvonne foi se transformando em Dona Ivone Lara. A pequena mudança na grafia era uma forma de simplificar o nome para o grande público. O “Dona” incorporado ao nome era uma pista do que viria a ser e de certa forma já era: Diva. Senhora do Samba. Dona da Melodia. Dama. Rainha. Foi nos palcos da vida que Dona Ivone Lara ergueu os braços ao estrelato. A postura diante do público, o cuidado com a aparência e o respeito à plateia foram lições que ela aprendeu com as cantoras do rádio, que tanto admirava. Sob os refletores, ela reinava. Dançando jongo e cantando seus sambas, o público ia ao delírio. São tantas noites inesquecíveis, como as do Show Opinião, que sacudia as segundas-feiras da Zona Sul carioca! Foi ali que a cantora e compositora se juntou aos bambas da Música Popular Brasileira. Naquele palco, estava em casa. E em ótima companhia. Liberdade. Sonho. Amor. Às vezes tristeza, melancolia. Mas, sobretudo, verdade. Temas que Dona Ivone Lara canta até hoje nos palcos mundo afora, celebrando os sentimentos e os sentidos de nascer, crescer e amar. Amar à arte como a si mesmo. Traduzir em canção um “Sonho Meu”, um “Alvorecer” que leva as dores da noite e traz a esperança de um novo dia. Revelar o que tem dentro de si e compartilhar emoções com o público que a abraça em forma de aplauso. E a baiana se glorificou... (“Lavando a nossa alma / Com a mais fina inspiração / Meu samba te pega na palma / E beija a tua mão” - Nei Lopes) Mas a presença de Dona Ivone também está marcada no maior palco do artista popular. Esse lugar é a Avenida. Templo de tantos sonhos de carnaval... As raízes negras que se ramificaram pelas diversas escolas de samba no Brasil têm na ala de baianas um relicário sagrado que remete aos laços reais com o matriarcado ancestral. Para Dona Ivone Lara, a ala da Cidade Alta – as baianas imperiais – é o fundamento mais vivo de uma escola marcada pela resistência, pela luta, pelo trabalho coletivo e pela arte. Afinal, a ala era formada pelas mulheres dos estivadores, que não poupavam recursos para que suas damas saíssem muito bem vestidas no carnaval. Até hoje elas mantêm o legado das tradições de um Império sonhado com tanta luta e que transforma a fantasia na mais bela realidade a cada desfile. E foi como destaque da ala da Cidade Alta que Dona Ivone tantas vezes pisou a Avenida... Usou os mais diversos tons de verde e branco. Vestiu-se também de ouro. Foi matriarca absoluta na Igreja do Bonfim, em 1983, como a Mãe Baiana Mãe de toda a nação imperial. E o sorriso negro que tantas vezes iluminou a escola na celebração maior da arte do carnaval vem novamente cruzar a passarela. Desta vez, Dona Ivone Lara é a inspiração e a razão pela qual canta a nossa gente. No Enredo do Meu Samba, a corte de tantas glórias no reino das escolas de samba veste o manto sagrado bordado em fantasia para louvar a sua rainha. A escola que viu nascer, hoje abre alas para exaltá-la como a grande dama, pioneira, artista, cantora, e, sobretudo, imperiana. É a nossa verdade e nossa raiz, a devoção pela arte e pela beleza que nos une nesse maravilhoso Império de sonhos. Salve Dona Ivone Lara!! Mauro Quintaes (Carnavalesco) BIBLIOGRAFIA: BURNS, Mila. Nasci para Sonhar e Cantar. Editora: Record. Rio de Janeiro, 2009. CABRAL, Sérgio. As Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Editora Lumiar. Rio de Janeiro, 1996. DUNCAN, ZÉLIA. Álbum de Retratos – Dona Ivone Lara. Memória Visual e Folha Seca - Livraria e Edições. Rio de Janeiro, 2007. SANTOS, KÁTIA. Ivone Lara, A Dona da Melodia.Editora: Garamond – Fundação Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro – 2010. SCHUMAHER, Schuma. BRAZIL, Érico Vital. Dicionário Mulheres do Brasil. Editora Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 2000. |
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