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Sou Lia de Itamaracá cirandando a vida na beira do mar (Império da Tijuca - 2024)
Sou Lia de Itamaracá cirandando a vida na beira do mar
(Império da Tijuca - 2024)



Carnavalesco: Júnior Pernambucano

ARGUMENTO

Lia da pedra que canta

Cantora ícone da cultura popular brasileira, Lia de Itamaracá completará 80 anos no próximo dia 12 de janeiro de 2024. De carreira, são mais de seis décadas a serviço de ritmos que sintetizam as mais genuínas manifestações artísticas de seu Pernambuco: frevo, maracatu, coco de roda e, mais que tudo, ciranda – o ritmo e a dança que lhe deram fama e que ela mesma levou para a ilha, tornando-se marca da cultura local. São as águas do mar, do rio e do mangue, as areias brancas e os altos coqueirais de Itamaracá que inspiram Lia, também compositora e dançarina. Chamada por muitos de entidade, pelo porte imponente, pele preta retinta, vestidos multicoloridos e sorriso largo, é ela a soberana da gente simples da ilha que tanto ama.

Mora com o marido Toinho numa casa em Jaguaribe, o mesmo bairro no qual viveu a vida toda, para onde sempre volta depois de suas apresentações, finalizadas com uma grande roda de brincantes. Ali foi cozinheira de bar e merendeira de escola pública; ali ouviu ciranda pela primeira vez; e ali decidiu que seu destino era ser cantora. Uma mulher que não esconde a idade e que, justamente por isso, não aparenta o tempo que tem. Uma artista com pressa e vontade de viver: “Se quiserem fazer alguma homenagem para mim, façam comigo viva. Depois que eu morrer, não adianta. Quero estar aqui, para que eu possa ver e aproveitar”, costuma dizer em entrevistas.

Pois não, Dona Lia de Itamaracá. Seja feita a vontade da Rainha da Ciranda, diz o Grêmio Recreativo Escola de Samba Educativa Império da Tijuca, a verde e branco do Morro da Formiga, que levará a sua história para a Marquês de Sapucaí no Carnaval 2024. Viva a ciranda, o samba, a cultura popular. Viva Lia de Itamaracá!

SINOPSE

EU SOU LIA

Na minha certidão de nascimento está escrito Maria Madalena Correia do Nascimento. Mas desde menina eu me chamo Lia. Meu lugar fica em Pernambuco, é cercado de água – mar de um lado, rio e mangue de outro – e traz a música no nome: Itamaracá é pedra que canta. Meu palco é na beira da praia, debaixo de sol ou de lua, ouvindo a pancada das ondas do mar, com o povo de mãos dadas, formando uma roda para cantar e dançar.

Essa é minha ilha, essa é minha ciranda,
essa sou eu. Eu sou Lia da beira do mar.
Morena queimada do sal e do sol.
Da Ilha de Itamaracá [1]

ÁGUAS DA INSPIRAÇÃO

Sou Lia, filha de Matilde e Severino, e também filha das águas. Água de mangue, rio e mar, que se abraçam em Itamaracá, ilha da minha vida. Mangue de Nanã, a velha iabá, que guarda os saberes ancestrais, soberana dos encontros entre rios e mares. Saluba! Rio de Oxum, senhora das águas doces e da fertilidade, bela guerreira coroada e ornada de ouro. Orá yê yê ô! Mar de Iemanjá, rainha tão linda, que serena as águas na beira da praia e faz o pranto sumir na imensidão salgada. Odoyá!

Quando eu era menina, a folia era na beira dos mangues e dos rios ali na Praia do Sossego. A molecada pra lá e pra cá, se metendo na lama pra catar caranguejo, siri e guaiamum, se pendurando nos galhos, tomando banho de rio e se escondendo do sol, que brilha quente o ano inteiro.

Mas o mar era diferente. Eu ouvia seu balanço, com as ondas quebrando nas areias branquinhas, e gostava da falta de silêncio do mar, como se ouvisse um chamado para ser artista. O mar da minha ilha é música para mim, com suas águas verdes, quentes e calmas, emolduradas por um céu azul infinito, sol de ouro e lua de prata.

Eu me perdia nas praias, me encostava nas jangadas e escrevia nas areias as letras que estavam na minha cabeça. As ondas vinham e apagavam tudo. Levavam as palavras embora e, no tempo e no ritmo delas, devolviam em forma de melodia. Hoje, toda vez que subo no palco, canto o mar dentro de mim.

O mesmo mar onde mora Janaína, rainha preta como eu, com seu adê prateado, vestido azul bordado de espuma, cabelos enfeitados de flores e corais. Mamãe sereia e mãe dos peixes, que nunca negou colo a esta filha devota de Nossa Senhora da Conceição e do Pilar. Por ela eu firmo ponto e ciranda; boto flores, espelho, perfume e colar no barquinho de oferendas. Por isso que não existe Lia sem mar.

Estava na beira da praia
Vendo o balanço do mar
Quando eu vi uma linda sereia
E eu comecei a cantar
Ô, Janaína, vem ver
Ô, Janaína, vem cá
Receber as flores
Que eu vou te ofertar [2]

ITAMARACÁ: PEDRA QUE CANTA

Na língua dos nativos caetés, Itamaracá é pedra que canta. Ilha cheia de pés de coco e de cana, terra dos primeiros engenhos de açúcar. Lugar encantado, com sua gente simples e trabalhadora, reis e rainhas que ganham a vida com o próprio suor e que defendem a sua cultura. Pescador, marisqueiro, tirador de coco, barqueiro, catador de mangue. Cada um deles é um pouco de mim.

Itamaracá é uma ilha encantada
Lugar mais bonito que eu vi
Itamaracá é um reino encantado
E todos são reis por aqui
Ilha de sonho, de luz e de cor
Pedra que canta o amor [3]

Do meu tempo de menina, lembro como se fosse hoje das festas de Nossa Senhora do Pilar, padroeira de Itamaracá, e de Bom Jesus dos Passos. Os devotos saíam em procissão, carregando cada santo em um andor, até a igreja de São Paulo, na praia do Forte Orange. Uma semana depois, as imagens voltavam para suas igrejas nos barcos dos pescadores, em um cortejo pelo mar que o meu povo chama de “buscada”. Coisa mais linda era ver as pessoas na praia esperando os barquinhos enfeitados de flores e fitas.

Por isso eu nunca quis sair de Itamaracá. Aqui estão as mais doces lembranças que tenho de minha mãe, cozinheira de mão cheia, com quem aprendi a mexer tachos e panelas. A maior herança que ela me deixou foi saber fazer comida. Tanto que, por muitos anos, tirei meu sustento da cozinha. Como merendeira de escola pública, temperei com amor de mãe cada prato de arroz e feijão que eu servi para as crianças. Que saudade que eu tenho de ouvir aquela meninada na fila cantando: “Essa merenda quem me deu foi Lia”!

Dorme, dorme, pretinho
Que mamãe está pescando, pretinho
Dorme, dorme, Maria
Que mamãe está pescando, Maria
E vai trazer muitos peixes para ti
E vai carne de ostras para ti
Um jereré bem cheinho de siri
E vai trazer muitas conchas para ti [4]

LIA E SUA MUSICALIDADE: NASCE UMA ARTISTA

E as festas de Itamaracá? Ai, mamãe, como era bom! Do Natal até as festas da padroeira, tinha reisado, fandango, pastoril e coco de roda na beira da praia; e maxixe, cavalo marinho e maracatu rural, o de baque solto, com os caboclos de lança. Depois vinham as festas juninas: São João, com suas fogueiras, São Pedro, padroeiro dos pescadores, e Santo Antônio, que socorre moças e rapazes em busca de um amor.

Ô moça namoradeira
É na porteira onde os pássaros cantavam
Ela chorava, se lamentava
Por ter perdido o amor que tanto amava [5]

Nesse tempo, ainda não tinha ciranda em Itamaracá. Nas festas, eu cantava de noite as loas das marujadas e as cantigas dos cordões azul e encarnado dos pastoris. No outro dia de manhã, lavando a roupa ou varrendo o terreiro do patrão, eu cantava de novo, bem alto, para que as pessoas na rua pudessem me ouvir.

Ali eu já tinha escolhido meu destino: ser cantora. Se hoje eu canto ciranda, aprendi ouvindo o mestre Antônio Baracho, grande brincante dos cavalos marinhos da Zona da Mata. E muito antes de eu gravar o primeiro disco, o Brasil já cantava os versos que me fizeram famosa. Toda vez que a canção tocava no rádio, a vizinhança logo gritava: “Corre, Lia, que tua música tá passando!”. Oxe, eu ia ligeiro, só para me ouvir cantar!

Eu estava na beira praia
Ouvindo as pancadas das ondas do mar
Esta ciranda quem me deu foi Lia
Que mora na Ilha de Itamaracá [6]

Foi quando começou a ter ciranda em Itamaracá. Comecei a fazer roda no Bar Sargaço, de Dona Creuza, onde eu era cozinheira. No Recife, criaram o Festival da Ciranda, e na primeira vez que a preta cirandeira subiu num palco, foi logo ganhando o primeiro lugar, num Pátio de São Pedro lotado de gente cirandando debaixo de um toró.

Olha eu vi uma preta cirandeira
Brincando com um ganzá na mão
Brincando ciranda animada
No meio de uma multidão
Menina eu parei fiquei olhando
A preta pegou a improvisar
Eu perguntei: “quem é essa negra?”
Sou Lia de Itamaracá [7]

No meu primeiro disco, botaram na capa: “Lia de Itamaracá – A Rainha da Ciranda”. Apareci na televisão e um tocador de tarol se apaixonou: Toinho Januário, meu marido, que divide os palcos e a vida comigo, na nossa casa pertinho do mar. Fiquei um tempo sem fazer disco, nem show. Mas tudo na minha vida aconteceu no tempo que mãe Iemanjá permitiu: depois vieram mais três discos, shows por todo o país, ciranda em Paris. Olha, que amostrada! Enfim, o reconhecimento que eu, como artista, sempre busquei.

Para chegar aqui atravessei um mar de fogo
Para chegar aqui atravessei um mar de fogo
Pisei no fogo, o fogo não me queimou
Pisei na pedra, a pedra balanceou [8]

FOLIAS DE LIA: O CARNAVAL ABRAÇA A RAINHA NO CIRANDAR DO SEU POVO

Quem me vê assim, com esses vestidos bonitos, de brinco, colar e pulseira, lenço ou turbante na cabeça, deve pensar: “Lia gosta é muito de andar enfeitada”. Gosto não, adoro! Eu sou uma mulher vestida de cor. Cor é alegria, é axé; e meu amor pelas cores vem das memórias de infância e do Carnaval de Pernambuco.

Aprendi a amar a folia nas ruas de Recife e Olinda, com os clarins do frevo, o rufar das alfaias dos maracatus e o estalado do arco e flecha dos caboclinhos. Bonecos gigantes, papangus e blocos tradicionais como o Elefante e o Pitombeira dos Quatro Cantos. E tem ainda o Galo da Madrugada, maior bloco do mundo, que já me homenageou. Agora, que estou perto de completar 80 anos, meu coração quase não aguenta de felicidade quando eu soube que o Império da Tijuca vai contar minha história no palco sagrado do Carnaval do Rio de Janeiro. Vai ser uma honra pisar a Marquês de Sapucaí, fazer o povo do samba cirandar e mostrar o Carnaval da minha terra, num grande abraço de foliões.

É disso que eu gosto: de estar junto do povo! Porque minha ciranda não é só minha, ela é de todos nós. Música tocada no baque do surdo, com tarol, piston e ganzá. Dança de roda, com todo mundo de mãos dadas, sem distinção ou preconceito, um sentindo o calor do outro; fazendo da vida uma ciranda sem fim.

Minha ciranda não é minha só
Ela é de todos nós
A melodia principal quem
Guia é a primeira voz
Pra se dançar ciranda
Juntamos mão com mão
Formando uma roda
Cantando uma canção [9]

Argumento e sinopse: Rodrigo Hilário