Sinopse Império Serrano 2010
João
das Ruas do Rio (Império Serrano - 2010)
Eu amo a rua. Este sentimento de
natureza toda íntima não seria revelado por mim, se não
julgasse que este amor absoluto e exagerado é partilhado por
todos nós.
A rua, espaço por onde se anda e passeia. Ora, a rua é mais que
isso, é um fator de vida das cidades. A rua tem alma!
Não há nada mais enternecedor que o princípio de uma rua.
No início capim, um braço a ligar duas artérias. Um dia cercam
a sua beira, um lote de terreno, surgem os alicerces de uma casa.
Depois outra e outra. Três ou quatro habitantes proclamam sua
salubridade ou sossego.
O importante é que a rua é a causa fundamental da diversidade
de tipos humanos. A rua é a civilização da estrada. Onde morre
o grande caminho, começa a rua, por isso ela está para a grande
cidade como a estrada está para o mundo.
A rua da Misericórdia foi a primeira rua do Rio. Dela partimos
todos nós, nela passaram vice-reis malandros, os gananciosos, os
escravos nus, os senhores em redes, os índios batidos, negros
presos a ferros.
O primeiro balbucio da cidade foi um grito de misericórdia, um
ai! Dela brotou a cidade, no antigo largo do Paço. Ela continuou
pelos séculos...
Cada rua tem um estoque especial de expressões, ideias e gostos.
As conversas variam, o amor varia, até o namoro é absolutamente
diverso. Em Botafogo, à sombra das árvores do parque ou no
grande portão, Julieta espera Romeu, elegante e solitária. Em
Haddock Lobo, Julieta garruleia em bando pela calçada, e nas
casas humildes da Cidade Nova Julieta, que trabalhou todo o dia,
pensando nessa hora fugaz, pende à janela seu busto formoso.
O que se vê pelas ruas do Rio do João
Do cais, cortado de lanchas, de velas brancas, o desenho dos
navios, das fortalezas. À beira desse cais, saveiros enormes
esperavam a mercadoria, e em cima, formando um círculo
ininterrupto, homens de braços nus saíam a correr dentro da
casa, atiravam o saco no saveiro, davam a volta na disparada,
tornavam a sair a galope com outro saco, sem cessar, contínuos
como uma correia de uma grande máquina.
Eram sessenta, oitenta, cem, talvez duzentos, não os podia
contar.
Pelos boulevares que vão dar no cais, a vida da cidade vibrava
num rumor de apoteose, naquele trecho do mercado. Os vendedores
ambulantes entram ali como por um terreno novo a conquistar.
O ratoeiro compra ratos. É um negociante, o entreposto entre as
ratoeiras da cidade e a Diretoria de Saúde.Vai até o subúrbio
tocando uma corneta(1). O vendedor de doces arria a caixa e
entrega o braço a um moleque. Aquele pequeno é um marcador, faz
tatuagens com três agulhas e um pote de tinta. Passa o vendedor
de orações, colecionei essas súplicas bizarras. Há orações
para santos que nem o papa conhece: S. Gurmim, boa para dor nos
calos, e São Puiúna, infalível nas nevralgias. E até mesmo
oração para o mar sagrado:
Mar sagrado, eu te venho salvar(2), a tua água te venho pedir
para fortuna por Deus para minha casa levar; para que me dê ouro
para guardar e prata para gastar, cobre para dar aos pobres..
Na esquina do teatro S. Pedro Arcanjo, um italiano vende livros e
jornais. A História da princesa Magalona, Carlos Magno e
Testamento dos bichos são os mais vendidos.
Não há cidade no mundo onde haja mais gente célebre que a
cidade de S. Sebastião. Vamos ver os pintores, não os Vitor
Meirelles(3) e Castagnettos(4) , mas os pintores de rua, heróis
da tabuleta(5), artistas da arte prática. Vamos a pequenas
amostras - Os macacos trepados em pipas de parati(6), mulheres
com molhos de trigo nas mãos, apainelando(7) padarias, paisagens
que se repetem com a visão de quem pinta: há o Pão de Açúcar
redondo como uma bola, no Estácio, em feitio de valise, no
Andaraí, o mesmo Pão comprido e fino em São Cristóvão.
Paisagens de batalhas, pôr do sol e mares revoltos. Paisagens de
botequins - tabuletas. Foi um poeta que considerou as tabuletas
os brasões da rua.
A origem dos títulos é sempre curiosa. Na rua Senhor dos
Passos, "Depósito de aves de penas" e na rua Sete
"grande sortimento de frutas verdes e secas". Na rua da
Constituição, uma casa de bilhetes intitulada "Casa
Idealista", porque quem compra bilhetes vive no mundo da
lua, e há uma casa de coroas, "O Lírio Impermeável"
e outra, "Vulcão das 49 Flores"
Apesar dos gramofones e da intensa proliferação dos pianos nos
hotéis, nos botequins, nas lojas de calçados, os músicos
ambulantes foram aparecendo novamente nos cafés, tascas,
baiúcas, e de novo pelas ruas os realejos, os violinos, as
gaitas recomeçaram seu triunfo e lobriguei outro dia ainda um
bicho lendário por mim julgado tão desaparecido quanto o
megatério(8) : o homem dos sete instrumentos.
Esta cidade é essencialmente musical; era impossível passar sem
os músicos ambulantes. E dança-se muito também.
Na rua Frei Caneca, na de Santana, em São Clemente e S.
Cristóvão tem reisados, contei numa noite mais de 40. Um dos
grupos carnavalescos chama-se Rei de Ouros.
Tu tu tu, quem bate à porta
Menina, vai ver quem é
É o triunfo Rei de Ouros
Com sua pastora ao pé
Em plena rua do Ouvidor, não se podia andar. Era provável que
do largo de São Francisco até a rua Direita dançassem vinte
cordões carnavalescos, rufassem 200 tambores, zabumbassem 100
zabumbas, gritassem 50 mil pessoas. Era a loucura, o pandemônio
do barulho e da sandice. Os cordões são os núcleos
irredutíveis da folia carioca, brotam com um fulgor mais vivo e
são antes de tudo bem do povo, bem da terra, bem da alma
encantadora e bárbara do Rio.
Hoje ainda nas ruas do Rio do João
O tempo passou, surgiram novas ruas cheias de arranha-céus,
novos bairros, novos transportes, mas a rua ferve de gente e...
de ambulantes.
São pipoqueiros, tapioqueiros, vendedores de acarajé, milho
verde, olha a pamonha! O vassoureiro equilibra todo tipo de
vassouras e espanadores, pastéis, churros, empadas, a
caminhonete vende cachorro-quente com as coberturas mais
inusitadas de petit-pois e maionese, panos de chão clareados,
burro-sem-rabo com pilhas de sacos de papel e jornal, e latinha
de cerveja amassada, nas esquinas flores e plantas para todos os
gostos, óculos de grau se misturam a colares de retalhos,
bijuterias e relógios - só fica sem saber das horas quem
quiser! Carregadores para celulares, protetores para o sol, balas
de todo tipo e as frutas da estação, em oferta especial.
Os flanelinhas guardam as vagas, o garoto insiste em lavar os
vidros, um cantor vende seus próprios CDs, e nesse circo armado
nas ruas, os malabaristas fazem suas demonstrações de
equilíbrio e agilidade, entre um sinal e outro.
Amo as ruas do Rio, tal como João do Rio, do Rio de Janeiro, a
casa de todos nós!!!!
Rosa Magalhães
Junho 2009
(1) Por ocasião da campanha de saneamento do Rio de Janeiro,
no início do século XX, a Diretoria de Saúde Pública,
preocupada em exterminar os ratos, transmissores da peste
bubônica, remunerava cada rato morto que lhe fosse apresentado.
Surgiu daí a figura do comprador de ratos, que percorria a
cidade com uma corneta para chamar a atenção de quem os tivesse
para vender.
(2)Aqui no sentido de dar salvas, saudar.
(3)Vitor Meirelles foi um grande pintr brasileiro (1832-1903),
autor do quadro Primeira Missa no Brasil.
(4)Giovanni Castagnetto (1862-1900), pintor italiano radicado no
Brasil, destacou-se por pintar paisagens marinhas.
(5)Letreiro, anúncio.
(6)Sinônimo de cachaça.
(7)Enfeitando os painéis.
(8)Animal pré-histórico, contemporâneo dos dinossauros.
Bibliografia consultada:
João do Rio. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: H.
Garnier Livreiro-Editor, 1910.
Magalhães Júnior, Raymundo. A vida vertiginosa de João do Rio.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
João do Rio. Os melhores contos de João do Rio. Seleção de
Helena Parente Cunha. S. Paulo: Global, 1990.