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Ô
Zeca, o pagode onde é que é? Andei descalço,
carroça e trem, procurando por Xerém, pra te ver, pra te
abraçar, pra beber e batucar (Grande Rio - 2023)
* Texto de enredo
para ser lido de soslaio, ao som de um samba mansinho, de
preferência com sol, cerveja gelada no copo, um cavaquinho do
lado, feito as crônicas de outrora, evocando Noel Rosa
“(...) o botequim é, no Rio de Janeiro, uma verdadeira instituição.” (Nei Lopes – Dicionário da Hinterlândia Carioca). Ô Zeca, tu nem imagina o tanto de perna batida! Casco, cavaco e sapato. N’alvorada da malandragem, quando os fogos ainda explodiam, as armas do Santo Guerreiro brilhavam no peito e nos dedos daqueles que são valentes, a nata, a fina-flor, dos bicolores nos pés, sobre um chão de asfalto e folia, pétalas de rosas vermelhas, parafina derretida, nobres ruas suburbanas, entre a capela e o bar. Salve Jorge, 23 de abril! Pois tu não contou pra mim que daí veio a devoção – dos anéis e medalhões, bambambãs de fama e palavra? Mesma data em que o galo cantou e o povo chamou o Ôme, sob a luz prateada da lua, em forma de um grande pandeiro, aquela de tantas lamúrias, que clareia cada despacho das macumbas das baixadas - numa casa de Caxias, num terreiro em Acari? Seguia a cavalgada de capas encarnadas! Era hora de agradecer – mas cadê teus copos na mesa, entornando, naquela esquina? Nos trilhos dos trens da Central, o ferro dormente de Ogum, vigia que nunca falha, espada!, aquele que desce nas giras, viga!, depois que Exu se alimenta. Patacori, Ogunhê! Todo dia é dia de luta e sem fé não se labuta nem se banha de mandinga. Juntei os patuás todinhos e segui buscando a farofa. Saudei o Velho da cura, teu pai, rezei pra Nossa Senhora, lembrei de Dona Ivone e do dourado que é d’Oxum. Lembrei de Jovelina, de quem tu falou carinhoso, com saudade de Angola, saudade da Velha Bahia, e essa coisa de contas e guias me guiou foi pra Irajá. Irajá de tanto sambista e de tanto gurufim. E lá... lá, pisando em caquinhos, eu lembrei dos tempos da infância, bola de gude na terra, pipas malucas no céu, as serestas, os coretos, o banquete dos cachorros que alguém dedicou a São Roque, e doces de toda sorte (suspiro, cocada, pirulito, coração de abóbora...) pra São Cosme e São Damião. Que tu tatuou no peito, por isso eu chamei a Patota! Doum é que passeava no cavalo do ferreiro: galopou pra Del Castilho, flecha veloz do tempo. E haja caruru pro banzé da criançada! Manhãs brejeiras me levam, é bom esse vadiar. Quase me perdi rodando, mas aí pensei que é isso mesmo: perder é parte do jogo e já chorei pelas tabelas. Da lágrima se faz rima, de tristeza ou alegria. Então me veio a Madrinha, com a sua voz das andanças, e eu fui é pras bandas de Ramos, a Zona da Leopoldina, juntando na mesma mochila os retalhos do teu pagode: dos Boêmios, o “sobrenome”; do Cacique, a raiz e a casca. Tremia nas rodas, caboco? A Tamarineira sagrada. Que viu tantas invenções que mudaram a nossa batida – o repique de Ubirany, o improviso, o banjo... Teu Compadre imperiano! Lições da filosofia que respinga nos azulejos, sincopada, sem floreios. “Camarão que dorme a onda leva” – e é por isso que eu durmo acordado: um olho no peixe, o outro no gato. Ou na Onça do Bafo. Mas lá tu também não estava. Talvez numa gafieira? Não, era dia claro. No Beco da Coruja, na Beira do Rio, no Morro do Fubá, cadê, ond’é? Caminhei meio assim, à toa, tropeçando nas biroscas, essa coisa, a gente sabe, trem lotado, sol queimando, o jornal que embrulha a fruta, a marmita da menina, o petisco, o tira-gosto, a birita, o percurso que tu fazia, roda em roda, pegando ônibus. Não se vê super-herói de barriga ou despensa vazia. Cada laje uma fuzarca, engradados se empilhando. Tem sururu na feira, tem salseiro noutra praça. Lama. Pé-sujo. Fofoca. Faixas gritando amores nuns letreiros meio tortos, como tudo é meio torto, amarrotado, nessa vida – inclusive as pernas que driblam e as mãos que dão as cartas. Vida vivida na rua, entre caronas e atalhos. Apostei no milhar do cavalo e palpitei minha fezinha. Desci mais uma gelada e passei o giz no taco. A barriga é que roncava tanto mais que uma cuíca! Caviar nunca comi, fico mesmo é no quiabo. Pimenta jamais faltou pela tua caligrafia: o dendê pintou o dente, o pão bebeu o pingado, um samba enfim refogado nos temperos da boemia. Partido alto! Não se vive, pois bem, sem orgia. Creio que tu me entende... Justificado o atraso? Santo, aqui, também bebe! Faltou o feijão carregado, a farinha e o torresmo – então eu matei a charada e tomei rumo certeiro. De carroça imaginária, zarpei pra “Velha Baixada”, Sapopemba e Maxambomba, subúrbios de tantas gentes que migraram retirantes. Do Nordeste, do Vale do Paraíba. Fé curtida feito couro, as malas, as fivelas, as favelas pelos morros, eu pensava era no Heitor e na pintura que se mexe. As roças. Quintais musicais de folguedos, congos, calangos, quadrilhas, fogueiras, roncós, curimbas, violas caipiras: “Xerém, Imbariê, mas quem diria que até Duque de Caxias foi Nossa Senhora do Pilar!” Em Xerém, tanta gente chegava que parecia uma farra de dias! “O que espanta a miséria é festa!” – aprendeu com Beto Sem Braço? Um rojão decretou seis horas, a multidão se embolando. Amigos de todas as partes bebiam, dançavam, cantavam, sul, norte, Santo Amaro. Madeira, mesa, baldes, balcão. Eu perdi foi tudo ali! Eu ganhei a luz da graça. Rito. Finalmente eu te encontrei e pude contar o dia. Noite afora, quem cantava, dedilhando maravilhas, eram nossas Velhas-Guardas, os perfumes pastoris das Tias (ô Doca!), porque tu, meu amigo querido, é um devoto desse legado. Entende que ouvindo os mais sábios é que se projeta o futuro – “pra reunir a garotada e proteger meu amanhã!” Sob as asas da Águia altaneira, voz centenária do samba, que fez ninho na Jaqueira e merece o aplauso e a glória (e voou pro Jaqueirão, festeira que só ela), tu bebia sorridente e entoava Seu Monarco: “Meu peito agora é só paixão!” Depois foram sambas de enredo e as parcerias continuaram, no desafio, madrugada adentro, e eu acho que esse samba, que também é pagode (e vice-versa), girou feito porta-bandeira e desaguou na Passarela. E eu posso jurar, nessa embriaguez, juro pelas juras de Sinhô, que uma estrela solitária desenhou um risco que uniu finalmente subúrbios, baixadas, Portela, Irajá, Xerém, Intendente, Sapucaí, rabiscando as encruzas, outras geografias, e atendendo ao pedido maior – que é não deixar o samba acabar. Honrar o mestre Thybau e permanecer versando: o que se leva (e leva eu) é “o que se come, o que se bebe, o que se brinca!” Por aí, numa estrada, pés descalços, passarinhar. E depois disso, é aquilo: não sei contar nem vou me comprometer. Deliro. Só sei que foi mais ou menos assim e que a vida que tu me ensinou, ô Zeca, o “Zeca way of life”, essa vida é um litro aberto! Falando a verdade, meu povo, eu, Grande Rio, que sou tão jovem e ainda me vejo, feliz, beijando o troféu da vitória... em 2023, pois sim, eu vou (e tu vem comigo!) é morar no botequim. * Uma singela e jocosa homenagem a Jessé Gomes da Silva Filho, Zeca Pagodinho, “a cara do povo brasileiro”, na definição de Beth Carvalho; aquele que, nas palavras de Flávia Oliveira, pode ser lido como um “cronista de um subúrbio mais amoroso e solidário”. Título do enredo livremente inspirado na letra de “Zeca, cadê você?”, composição de Jorge Aragão e Zeca Pagodinho. Carnavalescos: Gabriel Haddad e Leonardo Bora Autores do enredo, do desenvolvimento e do roteiro de desfile: Gabriel Haddad, Leonardo Bora e Vinícius Natal Pesquisa: Gabriel Haddad, Leonardo Bora e Vinícius Natal Texto: Leonardo Bora; colaboração de Gabriel Haddad e Vinícius Natal Autor do pôster/cartaz do enredo: Antônio Gonzaga; ilustração de Zeca Pagodinho gentilmente cedida por Guilherme Kid (pintura “Zeca”) Identidade visual e demais artes: Antônio Gonzaga Fotografias: Antônio Gonzaga, Gabriel Haddad, Leonardo Bora, Patryck Thomaz Imprensa: Luise Campos Agradecimentos: Bira Presidente (Cacique de Ramos), Carlos Monteiro, Dorina, Eliza Piquet, Flávia Oliveira, Guilherme Kid, Jane Barboza, Jorge Aragão, Leninha Brandão, Leonardo Bruno, Louiz Carlos da Silva, Lucas Bártolo, Luiz Antonio Simas, Luiza Maria Almeida, Mônica Silva, Rafael Mattoso, Renata Menezes, Renato Menezes Ramos, Sérvula Amado, Thiago Ortiz, Victor Lobisomem Referências/Indicações bibliográficas e audiovisuais: ALVIM, Victor (Lobisomem). O Magnífico Encontro de Zeca Pagodinho com a Patota de Cosme & Damião. Literatura de Cordel. Contato: victorlobisomem@yahoo.com.br. 2012. ALVIM, Victor (Lobisomem). A Fantástica História de Zeca Pagodinho, o Disco Voador e o Extraterrestre. Literatura de Cordel. Contato: victorlobisomem@yahoo.com.br. 2009. AMADO, Jorge. O Compadre de Ogum. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. AZEVEDO, Ricardo. Abençoado & Danado do Samba. Um estudo sobre o discurso popular. São Paulo: EDUSP, 2013. BANDEIRA, Manuel. O enterro de Sinhô (crônica). In: Os Reis Vagabundos e mais 50 crônicas. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1966. BARBOZA, Jane; BRUNO, Leonardo. Zeca. Deixa o samba me levar. Rio de Janeiro: Sonora Editora, 2014. BÁRTOLO, Lucas; FREITAS, Morena; MENEZES, Renata. Doces Santos. Devoções a Cosme e Damião. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 2020. BEZERRA, Nielson Rosa; NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. De Iguassú à Baixada Fluminense. Histórias de um território. Curitiba: Appris, 2019. 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SANTUCCI, Jane. Babélica Urbe. O Rio nas crônicas dos Anos 20. Rio de Janeiro: Rio Books, 2015. SIMAS, Luiz Antonio. O corpo encantado das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020. SIMAS, Luiz Antonio. Santos de casa: Fé, crenças e festas de cada dia. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022. VIANNA, Luiz Fernando. Zeca Pagodinho. Coleção Perfis do Rio. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. - Discografia completa de Zeca Pagodinho - Documentário “Jaqueirão do Zeca”, de Ricardo Bravo e Denise Moraes - Musical “Zeca Pagodinho – uma história de amor ao samba”, de Gustavo Gasparani - Exposição “Crônicas Cariocas” – Museu de Arte do Rio (MAR); curadoria de Amanda Bonan, Conceição Evaristo, Luiz Antonio Simas e Marcelo Campos - Arquivos de Zeca Pagodinho gentilmente cedidos por Mônica Silva, Louiz Carlos da Silva e família Pagodinho. |
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