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Igbá Cubango - A Alma das Coisas e a Arte dos Milagres (Cubango - 2019)
Igbá Cubango - A Alma das Coisas e a Arte dos Milagres (Cubango - 2019)

Objetos de poder, objetos de devoção, objetos-dádivas, objetos que possuem alma e contam histórias, objetos de pedir e pagar, objetos que traduzem graças, objetos encantados, objetos-amuletos, objetos-relíquias, objetos que operam milagres – e que mentem milagres também. O GRES Acadêmicos do Cubango pede a proteção de Babalotim, o “ídolo menino” que completa 40 anos, e agradece a São Lázaro, o padroeiro, pelo sonho vivido no último cortejo. Romeiro, cada sambista carrega consigo as suas obrigações. O que pretendemos contar são causos da religiosidade popular brasileira a partir da relação de cada sujeito com os seus objetos de culto. Somos devotos dos tambores ancestrais: rum, rumpi e lé. O desfile é o nosso ex-voto, o samba é a nossa graça. Porém é preciso cuidado com as promessas dos falsos profetas – novíssimos Reis da Vela com as suas coroas de lata, votos que perpetuam o medo e o preconceito.
Sambemos!
Carrego de Exu eu não quero carregar. Mas amuleto, o que é que há?
– Ko si ọba kan, ofi, Ọlọrun.

SINOPSE DO ENREDO

1 – Igbá Cubango

Na festa de Domurixá
em homenagem a Oxum
Deusa da nação Ijexá
onde a figura principal
era o boneco Babalotim
mensageiro da alegria, da força do axé
um ídolo menino, levado por menino em sua fé
e assim teve origem o Afoxé

Heraldo Faria e João Belém – Afoxé

Igbá Cubango! Guardamos nessas cabaças as memórias antepassadas. Fundamentos. Levamos para a Avenida o peji das nossas vitórias: evocamos o dom de Afoxé, o samba que se fez milagre. Assentamos, aqui, nossa história. Da palha fazemos um trono. O ídolo-menino de outrora é revivido na Passarela: que todo componente da escola a ele dirija um pedido. Valei-nos, Babalotim! Oxum traz os seus axés: pedras do fundo do rio, pentes de tartaruga. Otás. São Lázaro se transforma: Obaluaê, Omolu, Xapanã, na porta da nossa quadra, no Morro do Abacaxi. Saúda e protege os sambistas, que a ele oferecem presentes. Giram laguidibás, giram saias, giram guias. Chifres de búfalos, asas de besouros. Mães-baianas, turbantes e panos da costa, cobrem o chão de pipocas. As mãos nos atabaques, os pés na terra. Os corpos-terreiros fervem e alguém, enfim, anuncia: agarrem as suas figas para mais uma sagração!

2 – De pedir proteção

Laguidibá
não é simples ornamento
é colar de fundamento
você tem que respeitar
(…)
Laguidibá
é adereço muito certo
é coisa de santo velho
do Antigo Daomé

Nei Lopes – Laguidibá

Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará. O barroco tropical brasileiro reuniu em um mesmo oratório as relíquias dos santos de lá às penas caboclas de cá. Nos balangandãs de prata, romãs e muiraquitãs. Medalhas. Uma figa, uma rosácea, um coração, um crucifixo. Búzios, firmas, fitas, fios de conta. Dentes de animais encastoados. Pulseiras, colares, cocares. Calungas. Me banhei com guiné, alfazema e dandá. Defumei com quarô, benjoim. Patuás. Ourivesaria sagrada, jóias de mandingueiras. Quase tudo se faz amuleto, pedir proteção é de praxe – “basta encontrar na rua um fetiche qualquer, pedra, pedaço de ferro ou concha do mar”, escreveu João do Rio, nas quebradas. O seguro morreu de velho e é preciso se precaver: fechar o corpo, tomar a sorte, ganhar coragem, fazer os nós. Nos sacrários das sacristias, nos segredos dos Candomblés. Ebós. Arriar comidas nos entroncamentos. Carrancas pra navegar, máscaras nos bailados. Terços e escapulários – e um pouquinho de pó de pemba.

3 – De pagar promessas

No alto do morro chega a procissão.
Um leproso de opa empunha o estandarte.
As coxas das romeiras brincam no vento.
Os homens cantam, cantam sem parar.
(…)
No adro da igreja há pinga, café,
imagens, fenômenos, baralhos, cigarros
e um sol imenso que lambuza de ouro
o pó das feridas e o pó das muletas.

Carlos Drummond de Andrade – Romaria

Pedido feito, graça recebida – então é preciso pagar. Caminhar, seguir romaria. Carregar uma cruz tão pesada, o drama de Zé-do-Burro. Nas mãos calejadas da lida, cem mil corações em brasa. Ex-votos do Brasil inteiro desenham um mapa de pernas. O catolicismo popular expressa as andanças da nossa gente: Bonfim, Nazaré, Matosinhos, Bom Jesus, Pai Eterno, Canindé, Monte Santo, Juazeiro, e lá se vai a multidão cantando. Que ex-voto levo à Aparecida, se não tenho doença e só lhe peço a cura? – questionou Adélia Prado. São Judas Tadeu – Niterói. A Candelária, a Penha, a Penna. Nos “museus das promessas ou dos milagres”, como o descrito por Jorge Amado, vê-se a sobreposição de dádivas: barro, cera, madeira, papel. São partes do corpo, são pinturas, são retratos e miniaturas (de casas, de bichos, de barcos, de gratidão). Cartas, bilhetes, roupas, diplomas. Vitalino esculpiu ex-votos, Mestre Fida é uma referência. Artistas contemporâneos revisitam o imaginário – mesmo o Bispo do Rosário, que tanta alegria nos deu, a quem novamente rogamos: olhai por nós, nobre peregrino! Cada rosto esculpido foi dor alentada. (…) Deixa a dor nas aras, como ex-voto aos deuses – e segue o teu destino!

4 – Da (falsa) promessa que é dívida

HELOÍSA – Ficaste o Rei da Vela!
ABELARDO I – Com muita honra! O Rei da Vela miserável
dos agonizantes. O Rei da Vela de sebo. E da vela feudal que nos fez
adormecer em criança pensando nas histórias das negras velhas…
Da vela pequeno-burguesa dos oratórios e das escritas em casa… (…)
Num país medieval como o nosso, quem se atreve a passar
os umbrais da eternidade sem uma vela na mão?
Herdo um tostão de cada morto nacional!

Oswald de Andrade – O Rei da Vela

Mas há os falsos profetas e as falsas promessas à venda. Objetos de todo tipo, no shopping-cassino da unção. É água de benzer camisa, é caneta de assinar contrato, é tijolo para erguer a casa, é vassoura de varrer o diabo. Travesseiros para sonhos bons, redes de pescar vitórias. E velas aos borbotões! Não é outro que não a vela o mais famoso objeto votivo: de pedir, pagar, prometer. Abelardo I, o Rei da Vela, lucrou e fez fortuna explorando a miséria alheia. A crítica de Oswald de Andrade, Antropofagia e Tropicália, permanece ferida aberta no peito do Brasil atual. São promessas que viram cifras e moedas que se avolumam: qual é o preço a se pagar por um lugar confortável no céu? E que céu tão nublado é este, que mais exclui do que celebra a diferença? Dívidas que se pagam a preços exorbitantes – inclusive um outro tipo de voto, nem devoto nem ex-voto: o voto depositado nas urnas eleitorais.
Que as velas acendam pedidos de dias mais iluminados. Afinal, já dizia o poeta: há sempre uma promessa de alegria…
Amém, Axé, Evoé, Saravá!
-Glória pro fio de Exu!

Carnavalescos – Gabriel Haddad e Leonardo Bora
Autores e pesquisa do enredo – Gabriel Haddad, Leonardo Bora e Vinícius Natal
Nascido de uma confluência de sonhos, sequências de sincronicidades.
Agradecimentos especiais a Thiago Hoshino e Fred Góes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMADO, Jorge. Bahia de Todos-os-Santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
ANDRADE, Oswald de. O Rei da Vela. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2000.
BARRETO, Cristina; BORGES, Adélia. Pavilhão das Culturas Brasileiras: Puras misturas. São Paulo: Terceiro Nome, 2010.
BATISTA, Marta Rossetti (org.). Coleção Mário de Andrade. Religião e Magia, Música e Dança, Cotidiano. São Paulo: EdUSP / Imprensa Oficial, 2004.
BISILLIAT, Maureen; SOARES, Renato. Museu de Folclore Edison Carneiro. Sondagem na Alma do Povo. São Paulo: Empresa das Artes, 2005.
BITAR, Nina Pinheiro; GONÇALVES, José Reginaldo Santos; GUIMARÃES, Roberta Sampaio (orgs.). A Alma das Coisas: patrimônio, materialidade e ressonância. Rio de Janeiro: Mauad X; Faperj, 2013.
COELHO, Beatriz (org.). Devoção e arte: imaginária religiosa em Minas Gerais. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2017.
CUNHA, Laura; MILZ, Thomas. Joias de Crioula. São Paulo: Terceiro Nome, 2011.
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GAUDITANO, Rosa; TIRAPELI, Percival. Festas de Fé. São Paulo: Metalivros, 2003.
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LODY, Raul. Moda e história. As indumentárias das mulheres de fé. São Paulo: SENAC, 2015.
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MUSSA, Alberto. Ẹlẹgbara. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2005.
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RUFINO, Luiz; SIMAS, Luiz Antonio. Fogo no Mato. A ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018.
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http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/3378/1/2007_dis_lmosilva.pdf.
VAREJÃO, Adriana. Entre carnes e mares. Rio de Janeiro: Cobogó, 2009.
VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás. Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo. Salvador: Corrupio, 2002.
https://projetoex-votosdobrasil.net/.

Canções mencionadas no texto:
Afoxé, Heraldo Faria e João Belém
Feita na Bahia, Roque Ferreira
Laguidibá, Nei Lopes

Poemas e demais textos literários mencionados no texto:
Alegria, entre cinzas, Carlos Drummond de Andrade
Bahia de Todos-os-Santos, Jorge Amado
Ẹlẹgbara, Alberto Mussa
Ex-Voto, Adélia Prado
Ex-Votos, Aninha Duarte
Macunaíma, o herói sem nenhum caráter (capítulo Macumba), Mário de Andrade
Manifesto Antropófago, Oswald de Andrade
No mundo dos feitiços, João do Rio
O Pagador de Promessas, Dias Gomes
O Rei da Vela, Oswald de Andrade
Romaria, Carlos Drummond de Andrade
Segue o teu destino, Ricardo Reis/Fernando Pessoa