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O Rei que Bordou o Mundo (Cubango - 2018)
O Rei que Bordou o Mundo (Cubango - 2018)

E vós, ó coisas navais, meus velhos brinquedos de sonho!
Componde fora de mim a minha vida interior!
(…)
Ter a audácia ao vento dos panos das velas!
Ser, como as gáveas altas, o assobio dos ventos!

Álvaro de Campos – Ode marítima

Sete anjos, sobre sete nuvens, desceram do sétimo céu e abriram o sétimo selo. Munidos com as suas armas, mostraram um descaminho. Dezembro, Rio de Janeiro. No destino do peregrino, a Igreja da Candelária e o Mosteiro de São Bento. Cingiu o ouro barroco, era véspera de Natal, a REVELAÇÃO divina – faísca, raio, trovão, estrela. Centelha! O sonho, o senho, a missão atribuída pelas vozes do Criador: inventariar o mundo, antes do Julgamento.

OS ANJOS VÃO ARRIANDO
A FORMOSA FINA PLUMA
POR ONDE SAHI O VERBO
(…)

As vozes roucas dos homens, porém, condenaram mais um corpo negro. O corpo virou um número e foi uniformizado, armazenado à toa, à força, beijar a lona, entre tantos prisioneiros de passagem. Num cemitério de vivos – o grito de Lima Barreto ecoa nos manicômios.

Mas a arte irrompeu da pele, rasgou o corpo, refez a roupa. Desfiou as suas memórias, floriu nas suas mandalas. Nos lençóis amarrotados, bússolas e astrolábios; a cela, claustro-oficina, o quarto de um grande palácio: castelo de um Rei Antigo, o Senhor do Labirinto, a Coroa de São Benedito e o Manto da Senhora do Rosário. Mapas, Atlas, compêndios – desfraldados sob o Sol inteiro, os sinos do campanário. Bordou, construiu, desenhou, destruiu. Tapeçarias e pompas, o mundo que viu outrora:

VOIS HABITANTES
DA TERRA
EU APRESENTO
AS SUAS NAÇÕES

Bandeiras, brasões, fardas, fardões, os ringues onde lutou, os portos que percorreu, concursos, medalhas, disputas. O arame do último circo, o andaime maior da cidade. Arenas de homens e feras: a guerra! Roda-viva ferida, rosáceas no firmamento. Soldados, estilhaços, fragmentos. O fio do medo. TABULEIRO DE XADREZ na praia.

Retalhos, pedaços, quimeras. Acúmulos. Estradas!

UM DIA EU SIMPLESMENTE APARECI

E um dia se foi embora, entretecendo mistérios. Trilhou a sua CHEGANÇA, a APRESENTAÇÃO em glória. Na “procissão profana”, o samba, a mui sagrada alegria rebrilha em fitas e franjas. Gira o carrossel da infância, engenho e moenda em brasa! O mundo, enfim, recriado:
Reis Negros, Rei Congo, Reis Magos, Rei Mouro.
Quilombos, reisados, rebolos, taieiras.
Remansos, rabecas, retratos, palavras.
Palavras, palavras, palavras.
Fogueiras, candeias, Cangira, cabaças.
Festa caipira na praça.
Rocas, teares, caboclos, cocares. Agulhas.
Mel de cana-de-açúcar. Mel de abelha selvagem.
O Rio de muitas voltas, o rio da sua aldeia.
Rendeiras e rendendês, ao som do reco-reco.
Dançam as bandeirolas, o vento chama.
Ouro e prata resplandecem: não há abismos.
O cosmo, o mito, luzeiros-botões no espaço, a abóbada celeste.
De um Ser-tão profundo: tudo. Cruzado. Na alma agreste.

EU PRECISO DESTAS
PALAVRAS – ESCRITA

Almirantes e tenentes, cavaleiros e grumetes, cuícas e pandeiros, atabaques e ganzás: a escola em cuja bandeira existe um livro sendo escrito a pena, historicamente comprometida com a exaltação da afro-brasilidade, veste o fardão em verde, a imortalidade, e canta um profeta negro, pobre, marginalizado, excluído e aprisionado, que fez do corpo o estandarte e descortinou a aura:

EU SOU O REI DOS REIS
ARTHUR BISPO DO ROSÁRIO

Livre que varre o tempo, as águas dos devaneios.
Um navio carrega os desejos de quem nele navegar.
Das Narrenschiff
Ao mar, nobres marinheiros! Ao mar!

EU VOU DEIXA
ESTE GLOBO
ESPLENDO

ESTRONDO!

Gabriel Haddad e Leonardo Bora – carnavalescos

* Os trechos em caixa-alta são partes do texto original de Arthur Bispo do Rosário, bordados encontrados em mantos, fardas, estandartes, assemblages, miniaturas e demais peças.

GLOSSÁRIO

Prisioneiros de passagem: Referência ao título do filme (curta-metragem) realizado pelo fotógrafo e psicanalista Hugo Denizart, O prisioneiro da passagem. A película ajudou a divulgar o trabalho de Arthur Bispo do Rosário entre os círculos artísticos e denunciou as condições assustadoras em que viviam os “pacientes” da Colônia Juliano Moreira.

Cemitério de vivos: Menção ao livro O cemitério dos vivos, de Afonso Henriques de Lima Barreto, escritor negro, diagnosticado esquizofrênico, que foi internado no Hospital dos Alienados, no Rio de Janeiro, no início da década de 1920; neste mesmo hospital, Arthur Bispo do Rosário foi inicialmente trancafiado. Depois, transferido para a Juliano Moreira.

Senhor do Labirinto: Referência dupla: ao livro de Luciana Hidalgo, O senhor do labirinto, base para o entendimento da dimensão literária da obra do homenageado; e ao longa-metragem de Geraldo Motta Filho e Gisella de Mello, no qual Arthur Bispo do Rosário é interpretado pelo ator Flávio Bauraqui.

Chegança: Festejo tradicional do Sergipe, a terra de Arthur Bispo do Rosário. Auto popular ligado ao ciclo natalino, expressa a rotina dos marinheiros e os conflitos entre mouros e cristãos. Mantos, capas, franjas, bordados, coroas, espadas e símbolos da Marinha se misturam em tal evento – temas recorrentes no “inventário do mundo”.

Apresentação: A forma como Arthur Bispo do Rosário se referia ao momento da entrega da obra construída ao Criador, vestindo a mortalha sagrada – o “Manto da Apresentação”.

Palavras, palavras, palavras: Célebre trecho de Hamlet, peça de William Shakespeare. O personagem-título simula estar louco para desmascarar seus opositores. Há referências às casas reais e ao imaginário shakespeariano (“cama de Romeu e Julieta”) na obra de Arthur Bispo do Rosário – cujo nome de batismo, Arthur, nos remete à figura do Rei Arthur e aos Cavaleiros da Távola Redonda (signos presentes no medievalismo nordestino, especialmente na literatura de cordel).

Rio de muitas voltas: Significado de Japaratuba, berço de Arthur Bispo do Rosário, no Sergipe. Solo ancestral de folguedos (cheganças, reisados, congadas, taieiras, a Festa das Cabacinhas), terra de moendas e engenhos de cana-de-açúcar, procissões e ritos de catolicismo popular, couro de tambores quilombolas e noites de batuques e fogueiras.

Das Narrenschiff: “Nau dos insensatos”, barco que realmente existiu, na Idade Média, cujo fim era retirar da vida em sociedade os possessos “indigentes”, aprisionando-os às correntezas. Pintura (fragmentada) de Hiermonymus Bosch, El Bosco, percursor do surrealismo. Arthur Bispo do Rosário, que foi marinheiro e pugilista, confeccionou uma série de navios, jangadas e demais embarcações, hoje compreendidos enquanto símbolos da luta antimanicomial. Tais peças já foram expostas nas bienais de Veneza, São Paulo e Lyon, no Victoria and Albert Museum, em Londres, no Parque Lage e no MAM do Rio de Janeiro, além de inúmeras outras mostras e bienais. O acervo pode ser visitado no Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
ARAÚJO, Emanoel (et al.) Arthur Bispo do Rosário. Rio de Janeiro: Réptil, 2012.
CAMPOS, Marcelo (org.). Um canto, dois sertões. Bispo do Rosário e os 90 anos da Colônia Juliano Moreira. Rio de Janeiro: Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea / Azougue Editorial, 2016.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 18ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003.
DANTAS, Marta. Arthur Bispo do Rosário: a poética do delírio. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
ELIADE, Mircea. Mito do eterno retorno. São Paulo: Editora Mercuryo, 1992.
HIDALGO, Luciana. Arthur Bispo do Rosário: o senhor do labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
MORAIS, Frederico. Arthur Bispo do Rosário: arte além da loucura. Rio de Janeiro: NAU / Livre Galeria, 2013.