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Pelos trilhos da história: Engenho de Dentro de lutas, batuques e glórias
(Botafogo Samba Clube - 2023) 1
- Desce o sol nas planícies douradas da Guanabara. Com o
silêncio e a escuridão, o pajé se recolhe e a taba
aquieta para mais uma das milhões de noites como todas as
outras. Os batuques e rituais, as visões, a cultura de harmonia
e respeito à natureza estavam ameaçados.
O homem branco aportou e nada mais seria como sempre. Trouxeram a cruz, a contagem do tempo, a ganância e o projeto de exploração de uma terra sagrada. Os Tupinambás escravizados deixaram de herança os caminhos abertos pelos pés descalços e tantos saberes ancestrais: da pesca às ervas e plantas que compõem, até hoje, a subsistência dos brasileiros. "Nhamandu ouare nhamaem (Quando vier Deus pai) reve nhamonhendu mborai" (Estaremos todos a cantar) Ressoava o canto de fé dos originários que ainda não foram aprisionados. 2 - O bárbaro projeto que chamamos de civilização segue com a chegada de mais escravizados, desta vez sequestrados além mar, arrancados do colo de sua própria terra. O temor que habita o olhar de indígenas e africanos se encontra e deságua dentro do mesmo engenho. O edifício está de pé, a mão de obra segue farta, Portugal está contente: o engenho produz, com o amargo dissabor das mãos e vidas pretas, o ouro branco que adoça a boca do feitor. "Ogum àgò fi rí rí (Ògun nos dê licença) Ága dé lò wa de a o (Pedimos que saia de seu reino e venha nos encontrar para que possamos vê-lo) Koró ba ga dá (Lá do alto ele nos ajuda)" Ressoava o batuque dos pretos fugidos em uma serra perto do engenho, onde a fé se fez alforria. 3 - É 1873 e a pomposa realeza se reúne na gare luxuosa para a inauguração da Estação Engenho de Dentro. O Engenho que nomeia o bairro deu lugar à maior oficina de trens da América Latina. Os indígenas já quase não se viam e os cativos africanos continuam, séculos depois, entre a cruz e o pelourinho, a sustentar o luxo de um pequeno e poderoso grupo. Escravizados, estrangeiros e brasileiros se misturam para abrir os caminhos de ferro com suor e sacrifício. Hoje, 150 anos após a inauguração da Estação, o requinte dos vagões se transformou, pois quem os frequenta são os filhos da falsa abolição, a classe trabalhadora. Não há mais sinais das cantigas, a Serra dos Pretos Forros deixou quilombos e batuques na memória. O único som é o do trilho dos trens, do ferro e das máquinas, acelerando a suburbanização planejada para estas terras. 4 - Um senhor na calçada, de chinelo de dedo e cordão de São Jorge no peito, abre o portão de seu jardim para vender latões de cerveja na porta de casa. Em suas veias se misturam cantigas, pontos e preces. Cachorros latindo no quintal parecem anunciar que é dia de jogo no Estádio Olímpico Nilton Santos. A duas quadras dali, o sangue mestiço lota os vagões do trem, pulsando nas veias tantas histórias e gentes. Várias tribos urbanas colorem as praças gingando capoeira, dançando, cantando e festejando, celebrando o milagre da superação. Entre igrejas e terreiros, prédios e barracos, botecos e ambulantes, as fachadas dos casarões coloniais nos lembram quem, de fato, construiu esse lugar. Virando a esquina pelas calçadas machucadas pelo tempo, um tambor ressoa e relembra a ancestralidade que paira nessas esquinas. A estrela em fundo preto infinito, que apontava a chegada das manhãs, hoje guia o otimismo deste novo orgulho do bairro, de gente que conhece a origem deste chão sobre o qual giram suas baianas. De portas abertas, a Botafogo Samba Clube se enche da força daqueles que construíram este lugar e adapta os versos de Jorge: "Engenho de Dentro Quem não sambar agora Só no próximo ano em pleno centro" Assim ressoa o canto de fé dessa gente que acredita que os trilhos da história nos levam à Sapucaí. Texto e pesquisa: Marcelo Adnet Carnavalescos: Marcelo Adnet e Márcio Puluker |
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