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João Saldanha - Um apaixonado pela verdade caminhando em tempos de ilusão (Botafogo Samba Clube - 2021) Sinopse
“Meus amigos”, que falta faz a voz de João Saldanha! Os mais jovens provavelmente não conhecem suas fabulosas histórias, mas deveriam. O fato é que a lenda engoliu o fato e se tornou história. “Entre o fato e a lenda, imprima-se a lenda” João nasceu envolto em fábula, no revolucionário 1917. Dizem que foi em Porto Alegre, mas ele garante que foi no Alegrete, embora sua certidão seja do Uruguai. Cresceu cercado por facas, ponchos, espingardas, bombachas e chimarrão. Seu pai era um líder Maragato, lenço vermelho no pescoço e sangue de guerreiros. Mesmo em uma família de algumas posses, aprendeu que seguir seus ideais custava a luta de uma vida inteira. Quando criança, cruzava a fronteira trazendo armas do Uruguai para o Rio Grande e dormia sob a cama da mãe, prevenindo represálias dos Chimangos. Acostumou-se ao exílio: a família foge para o Uruguai e volta nos rastros abertos pela Coluna Prestes – do amigo Luis Carlos, que moraria com os nove filhos junto à família de João em seu apê, décadas mais tarde. Os Saldanha se assentam em Curitiba, de onde seguem em romaria política: com a Revolução de 30, a família se muda para o Rio de Janeiro. Esse encontro de dois Rios em revolução forjariam a identidade de João. A Estátua do Cristo Redentor chega ao Rio de Janeiro em 1931. Junto com ela, o jovem que se encontra em bares e cafés; na boemia com vedetes, em batalhas de confete; praias, carnaval e futebol. João entrou de penetra em bailes com Heleno de Freitas, com quem dividiria uma garçoniére cujo acesso se dava por uma funerária. Viu o tetracampeonato do Botafogo, sua grande paixão, e passou a integrar o time de praia do lendário Neném Prancha. Diz-se que muitas das famosas frases atribuídas a Neném, eram, na verdade, de João. Vai saber: “Goleiro bom tem que dormir com a bola…” “Pênalti é tão importante que deveria ser batido pelo presidente” “Se macumba ganhasse jogo, o campeonato baiano terminava empatado” Flanava entre as Turmas dos Cafajestes e da Bossa Nova, de Vinícius – João atuou em um filme do Poetinha – e de seu primo Tom, que “falavam difícil”. Se identificava com Neném e o pessoal da praia mais popular, a Turma da Miguel Lemos. Filiado ao PCB, ao participar da Reunião Contra a Bomba Atômica, considerada subversiva pela polícia, não se conteve quando autoridades interromperam o evento. João arremessou uma cadeira no chefe da polícia e tomou um tiro que perfurou seu pulmão. Ainda ensanguentado organizou a fuga com elegância: “mulheres primeiro, por favor”. Detido e levado ao hospital, escapa espetacularmente e passa a ser foragido. Muda-se para a Vila Formosa, em São Paulo, onde milita pela causa “O Petróleo é Nosso” e é preso e torturado pelo DOPS e depois jogado do Alto do Sumaré. Mas João não descansa, nem usa seu lugar de privilégio para se acovardar ou acomodar. Logo se envolve no conflito agrário de Porecatu, no Norte do Paraná. Enfrentou polícia, jagunços, fazendeiros e a milícia Mata Pau ao lado dos camponeses posseiros. Entre emboscadas e tiroteios, o misterioso homem agiu sob identidade secreta e arriscou sua vida para fazer aquela Reforma Agrária que assentou cerca de 1600 famílias nas cidades vizinhas. João ainda participou da Passeata das Panelas Vazias que, para o desespero dos patrões, evoluiu para a Greve dos 300 Mil. Sob o codinome “Souza da Vila Formosa”, cativou o Sindicato das Tecelãs e trouxe junto os Carpinteiros, Gráficos, Metalúrgicos e Vidreiros com quem organizava piquetes e reivindicava aumento salarial e melhores condições de trabalho. Segurou a greve sob sabres e socos da cavalaria paulista. Anistiado, volta ao Rio de Janeiro e comanda o Botafogo em 1957, sagrando-se Campeão Carioca. O técnico que abriu alas para Garrincha desfilar é carregado nos ombros da torcida que invadiu o gramado do Maracanã. Sem ganhar salário e tirando do bolso para pagar Garrincha, era o líder que tomava uma com os jogadores no bar, escrevia seus esquemas táticos em maços de cigarro e militava pela liberdade: “se concentração ganhasse jogo, o time da penitenciária seria campeão”. Logo depois se tornaria “o comentarista que o Brasil consagrou” e criou expressões como “a vaca foi para o brejo”, “zona do agrião”, ir pro vinagre”, no bagaço”, “cabeça de bagre”, “mostrar o mapa da mina” e “entregar o tesouro ao bandido”. Sua voz ecoava pelo velho Maracanã, amplificada pelos radinhos de pilha. João comentava olhando nos olhos dos geraldinos, gesticulando e falando a língua do povo. Pois eis que chega a ditadura e João antevê um “longo e tenebroso inverno”. Em tempos de repressão e censura, “João Sem Medo, que fazia os abutres calarem as bocas de ódio”, como Nelson Rodrigues definia, fazia as televisões saírem do ar. Assim foi ao vivo na Alemanha ao dizer que “bárbaros são vocês” e ao partir pra cima de Castor de Andrade em uma mesa redonda. Enquanto o AI-5 aprofundava a ditadura, João aceitava o convite para ser técnico da Seleção. Queriam calar um opositor? Aproveitar sua popularidade? Depois da melhor campanha do Brasil em eliminatórias, as arquibancadas do Maracanã explodiram: “Saldanha! Tricampeão!”. O técnico que abriu os caminhos para a conquista do Tri, comandando os “feras do João” era o maior ídolo do país atrás de Pelé. Acontece que Médici assumiu a presidência e João o definiu como “o maior assassino da história do Brasil”, além de denunciar tortura e desaparecimentos nos maiores jornais do mundo. Para piorar, Médici queria Dario na seleção e João disparou: “organize seu Ministério que eu organizo meu time”. Tornou-se um problema de Estado e criou-se uma intervenção para tirar o “comuna” da Seleção. Saiu com bom humor: quando Havelange sentenciou: “está dissolvida a Comissão Técnica”, sem levar desaforo para casa, João respondeu: “não sou sorvete para ser dissolvido”. Acreditava no brasileiro e creditou a vitória a nosso talento, “que não copia ninguém e fez da arte dos seus sua força maior”. Ainda viu seu Botafogo ser campeão de 89 e sua última Copa na Itália, onde recebeu seu derradeiro parabéns dos emocionados colegas da imprensa. Morreu em Roma, no campo de batalha. Seus milhões de fãs e amigos juraram: “João, o Rio vai gritar sempre para defender você” Como a morte não é um fim absoluto, renovamos esta prece e invocamos a voz de indignação que jamais deve se calar. Que João nos inspire a escolher as lutas certas: “eu não brigo para ganhar, eu brigo porque tenho razão”. Em um tempo em que se renovam o medo, o temor, a injustiça e as desigualdades, a Botafogo Samba Clube move as engrenagens do espaço e do tempo através da memória para sintonizar a poderosa voz de João nos dias de hoje. “Não acendam um fósforo perto do João”, dizia Nelson Rodrigues. Desculpe, Nelson, mas vamos riscar e botar fogo na paixão que arde no peito do brasileiro. A paixão pela justiça, pela igualdade. João era assim: um apaixonado pela verdade caminhando em nuvens – ou seriam tempos? – de ilusão. Embalados pelo samba, pela coragem e a insubmissão, festejemos a luta de João com uma pergunta: o que ele diria se estivesse aqui hoje, armado com um microfone? A Voz de João hoje é a nossa voz! Viva João Saldanha! Marcelo Adnet e Ricardo Hessez |
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