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Bembé (Beija-Flor
-
2026)
Ocupamos
o espaço público. Se somos, afinal, livres, então
não deveria haver problema algum nisso. Já não
há mais distinção entre “nós” e
“eles”, certo? A rua também é nossa —
ou não? Num país que aboliu a escravidão com uma
canetada, sem nenhuma reparação, ocupar é —
e sempre foi — nossa forma de autorreparação. Nossa
articulação pela cidadania. Ocupar é ressurgir,
resistir, transgredir. Fazemos do corpo-travessia, da fé e da
memória, um ato político: liberdade conquistada —
tardia, mas viva. A cidade é nossa. O Largo do Mercado,
também.
Livres, portanto, não escondemos mais nossas roupas de santo, as rendas de rechilieu, os panos da costa, as contas de proteção. Não baixamos a cabeça. Não silenciamos nossos cânticos, nem apagamos nossa fé. Não renegamos nossa cor, nossas origens. Não escondemos nossa ancestralidade: raízes fincadas no massapê do Recôncavo, regadas com nossas lágrimas e nosso suor. Seguimos, sob a régia de Funfun, no equilíbrio das forças que nos guiam, rumo ao território que antes nos fora negado. Somos nós, o povo de João de Obá. Somos nós: pescadores, capoeiristas, baianas — marisqueiras, quituteiras, ganhadeiras, mães de sangue, de samba, de santo. É cortejo, é batuque, é levante. Ano após ano, caminhamos de cabeça erguida — todos nós — em direção ao nosso lugar, como aprendemos desde 13 de maio de 1889. Não nos detemos diante dos olhos tortos — seguimos. Não reagimos a ataques — ocupamos. Ao toque dos primeiros atabaques, Santo Amaro da Purificação desperta. Na alvorada, os fogos riscam o céu com luzes cintilantes e anunciam: o dia é nosso. Quebramos as encruzilhadas, damos água ao chão, erguemos nossa cumeeira, hasteamos a bandeira e plantamos nosso axé no coração do Mercado. Assim, abrimos caminho para que o Candomblé ganhe as ruas — livre, como na terra dos nossos ancestrais. Ocupamos para ver e sermos vistos. Para sermos. Para estarmos. Ocupamos o chão sagrado — como um Beija-Flor que toma a avenida uma vez por ano, celebrando a ancestralidade e a nossa comunidade em festa. Chegamos. É o Mercado. É o meio da rua. Casa de Exu, quem transforma interditos em passagens. Onde agora assentamos nossa energia vital — em forma de resistência, em forma de transgressão. O cheiro de alfazema, arruda, manjericão e guiné invade o ar como uma sinfonia de aromas que preenche o ambiente. Animais, grãos, farinhas, sarapatéis, maniçobas, dendês, carnes, frutas — tudo para alimentar nossas cozinhas e preparar nossos padês. Crianças correm, os mais velhos jogam com a sabedoria do tempo, mulheres e homens vendem com olhar atento e ritmo seguro, enquanto as moedas circulam como pulsos de vida. Compra, escambo. O espaço público se transforma a cada movimento, vibrando em cores, sabores e sensações, como se a terra despertasse para a consciência de sua força: pindobas balançam ao vento, o peregum traz proteção, e as bandeirolas dançam conosco num abraço de fé e cor. O caos se refaz em ordem; a mistura, em harmonia. Uma desorganização orquestrada, onde tudo se refaz para renascer. Cada tenda se torna altar, cada barraca, um elo que nos liga ao passado e ao futuro — tecendo, com nossas próprias mãos, a corrente que não se rompe: apenas se renova. A energia flui com naturalidade, como se soubéssemos, em nossas almas, que o Candomblé pertence à praça pública. Orum e Ayê já não se distinguem mais. É nesse lugar — não por acaso, mas por destino — que, no mês de maio, tudo se prepara para ser encantado. E assim tem sido há 136 anos. Ali, a arte preta também se coloca — nas tendas de artesanato, culinária, literatura, teatro — expressões vivas do nosso fazer criativo, que ecoam a alma de uma comunidade que não se cansa de inventar e resistir. Celebramos nossa arte, nossa gente, com o Nego Fugido, o Maculelê, o samba de roda, a capoeira, o terno de reis, mandus, bombachos, caretas — manifestações que reverberam a força do povo preto do Recôncavo baiano, unido em prol da liberdade. Nesse mesmo território, o xirê acontece em nossas noites de cânticos e oferendas aos espíritos que regem a festa. Os ogãs invocam os atabaques que ressoam — da força que abre caminhos à que sustenta a criação. O Mercado se sagra, tomado por nossa presença ancestral. Somos gente que reza, canta e dança, unida no tempo espiralar. O calor sagrado nos purifica e transforma, enquanto as folhas curam e protegem com sua seiva de sabedoria. O guerreiro avança, abrindo trilhas e nos concedendo coragem. Perseguimos a fartura com precisão e firmeza, enquanto ventos de renovação sopram sobre a terra. A natureza se revela em sua totalidade: cada gesto nos conecta ao divino. Vivemos a liturgia das nossas tradições e das Nações do Candomblé. O território consagrado respira memória, energia e vida: chão de axé onde o passado encontra o presente, onde o sagrado pisa firme e se torna visível nas ações, nas vibrações que atravessam o tempo. Ali, mantemos acesa a herança, reinventando-a a cada giro, reafirmando-a em cada canto. É festa, é culto, é resistência. Um outro fluxo, onde vivos e ancestrais dançam juntos. No ápice da celebração, os trompetes anunciam a chegada dos presentes. Dois balaios se oferecem em reverência às Yabás: um azul para Yemanjá; outro dourado para Oxum. A elas, nosso profundo agradecimento pela liberdade conquistada e pela emancipação do povo preto. Neles estão girassóis, rosas brancas, lírios, alfazema, perfumes, sabonetes, espelhos, brincos — objetos escolhidos com zelo, carregados de afeto e respeito. O que se entrega é louvor e súplica, lembrança do passado e esperança no futuro. Que essas oferendas tragam boas águas, bênçãos e vitórias, e afastem o que é ruim: a inveja, a ponta da faca, a tristeza. Quando o presente não chega, a cidade sente — é um clamor coletivo para manter vivos seus filhos e filhas. É ebó, tecnologia ancestral de proteção e resistência. Sem ele, não estaríamos aqui. Um caminhão, cercado de gente — de santo e de não-santo — segue pelas ruas da cidade sagrada, rumo às águas onde tudo começou. A carreata passa pela Igreja da Purificação, onde rosários ecoam memórias ancestrais. Transita pelos terreiros mais antigos, guardiões de séculos de história e fé, e segue pelas casas de personalidades santoamarenses, símbolos de uma tradição viva: Tia Ciata, Dona Canô, Edith do Prato, Nicinha do Samba, Mãe Guiomar, entre tantas outras. Das margens do Rio Subaé às marés da praia de Itapema, o cortejo avança em direção ao mar sagrado, azul e branco. Se toda terra tem dono, a água pertence a todos nós. É nela que entregamos, em forma de ritual, o trabalho de um ano inteiro. Recebem as oferendas Oxum, Senhora das águas doces, do amor e da fertilidade, e Yemanjá, Senhora do mar, mãe de todos os oris. Assim se dá o Bembé — o maior Candomblé de rua do mundo — nascido da transgressão de João de Obá, mantido na resistência de Pai Tidu, acalentado na doçura de Mãe Lídia, insistido na inquietude de Pai Pote e preservado na firmeza de sua Iyá Egbé e de seus detentores. No meio dessa festa, nossos olhos se confundem. Somos nós, o mesmo povo que reza, dança, samba, canta e celebra em comunhão — seja nas areias de Itapema ou no solo sagrado da Marquês de Sapucaí. É o encontro agendado pela ancestralidade, que confirma o que nos ensinou Cabana: “Ser de Nilópolis é a mesma coisa que ser da Bahia.” Como o balaio que atravessa o mar do Recôncavo, nós avançamos a Sapucaí com nosso desfile-presente nilopolitano: um rito que agradece pelas batalhas vencidas e, com fé renovada, pede às Yabás das águas que abram caminhos para mais um ano. Amanhã, talvez, tudo recomece. Afinal, resistir, ocupar, reexistir e transgredir é o que nos mantém, Beija-Flor, é o que nos mantém, BEMBÉ. Pesquisa e texto: Vívian Pereira, Guilherme Niegro e Bruno Laurato Colaboradores: Ana Rita Machado e Antonioni Afonso |
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