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Índios

ENREDO 2012

Índios

Índios - Legião Urbana 


"Que me dera ao menos uma vez Ter de volta todo o ouro que entreguei a quem
Conseguiu me convencer que era prova de amizade
Se alguém levasse embora até o que eu não tinha.

Quem me dera ao menos uma vez
Esquecer que acreditei que era por brincadeira
Que se cortava sempre um pano-de-chão
De linho nobre e pura seda.

Quem me dera ao menos uma vez
Explicar o que ninguém consegue entender
Que o que aconteceu ainda está por vir
E o futuro não é mais como era antigamente.

Quem me dera ao menos uma vez
Provar que quem tem mais do que precisa ter
Quase sempre se convence que não tem o bastante
Fala demais por não ter nada a dizer.

Quem me dera ao menos uma vez
Que o mais simples fosse visto
Como o mais importante
Mas nos deram espelhos e vimos um mundo doente.

Quem me dera ao menos uma vez
Entender como um só Deus ao mesmo tempo é três
E esse mesmo Deus foi morto por vocês
Sua maldade, então, deixaram Deus tão triste.

Eu quis o perigo e até sangrei sozinho
Entenda
Assim pude trazer você de volta pra mim
Quando descobri que é sempre só você
Que me entende do iní­cio ao fim.

E é só você que tem a cura pro meu vício
De insistir nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi.

Quem me dera ao menos uma vez
Acreditar por um instante em tudo que existe
E acreditar que o mundo é perfeito
E que todas as pessoas são felizes.

Quem me dera ao menos uma vez
Fazer com que o mundo saiba que seu nome
Está em tudo e mesmo assim
Ninguém lhe diz ao menos, obrigado.

Quem me dera ao menos uma vez
Como a mais bela tribo
Dos mais belos índios
Não ser atacado por ser inocente.

Eu quis o perigo e até sangrei sozinho
Entenda
Assim pude trazer você de volta pra mim
Quando descobri que é sempre só você
Que me entende do início ao fim.

E é só você que tem a cura pro meu vício
De insistir nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi.

Nos deram espelhos e vimos um mundo doente
Tentei chorar e não consegui." 

Renato Russo

INTRODUÇÃO

Quem me dera ao menos uma vez abrir as cortinas do eterno teatro Tupi em que vivemos.

Teatro Tupi, que em ouro, tecido e armamentos, dá o tom do cenário.

Somos todos colonizadores, colonizados e testemunhas deste ato Brasil.

A epopéia indígena está novamente formada. Somos uma só tribo dos oitenta, que, em voz, violão e batucada, conta a sua saga. De forma simples, literal e direta. Sem rodeios.

Basta cantarolar o clássico para que a nossa história venha fluir junto.

Sejam bem-vindos a recolonização. A história é contada de uma forma jamais vista

ATO I

E então, o Índio vivia feliz em seu Eldorado.

Milhões de p_ássaros gorjeavam e promoviam uma bela revoada. Curumim nadava nas cascatas e corria ingênuo para a sua oca. Os lírios nasciam, os lácios floresciam. Borboletas semeavam o Paraíso na terra.

Eram Obras de Deus, mas uso quase exclusivo do Índio.

Índio caça, pesca e índio ama.

Índio colhe as frutas, prepara as especiarias e rituais

Índio produz ricas vestes para as mulheres das aldeias, e pinta a cara pra ir pra guerra e pra promover a paz. Índio ama os animais, o Sol, a Lua, as Estrelas, Jaci e Tupã.

Kararaô !

Mas as tribos indígenas viam, das frestas de suas humildes ocas forradas de palha e madeira, nas nebulosas sombras além-mar anunciando um tempo que não seria nada bom pro índio. Muita gente, do outro lado das águas hei de mudar a história. Cacique sentia medo. Avisava através da fumaça os demais Caciques de outras tribos do que viria por ali.

Eles chegaram !

A mando do Rei, aportam em Terras Brasilis enormes caravelas lusitanas. Centenas de portugueses descem e, tentando se comunicar, feito um ser estranho de outro planeta, anunciam que vieram em missão de paz. E o Índio, inocente, acolhe o irmão de além-mar em suas terras.

Se deliciando com as belas índias, com seus sabores e sua riqueza natural, os portugueses acabam se misturando aos bugres e, mesmo com certa dificuldade de comunicação, catequiza o Índio.

Índio aprende que Tupã, para o homem branco é Jesus Cristo, enquanto para os Negros, lá da África, o Tupã deles era chamado de Oxalá. Um pouco confuso, mas o Índio acabava entendendo, embora não concordasse muito.

E essa harmonia parecia durar até o futuro. Seguiria até o fim dos dias em que Tupã comandasse tal terra.

Até que um dia, o medo do Cacique perante tal vulto que singrava as águas era real. E a harmonia acabava ali.

Os europeus queriam o Ouro, a Fauna, Flora e Mulheres. Colonizar o lugar e exterminar os bugres dali.

Mas o Índio, inocente, não percebia isso.

Em troca, os portugueses presenteavam as tribos com espelhos e badulaques de pouco valor comercial pros europeus e valor algum pro índio, enquanto enviavam a Portugal, em várias caravelas muito ouro, nobres tecidos, especiarias e demais riquezas.

O índio quis o perigo e sangrara sozinho.

E o Futuro não era mais como era antigamente.

ATO II

Atordoado pela riqueza européia, o Índio não se conformara com tamanha ambição.

Se toda a riqueza de Tupã era do alcance de todos, seja para o índio, para o branco e para o negro, porque só o europeu poderia usufruir ? Os pássaros cantavam para todos, as frutas davam sabor a boca de todos.

Tamanha riqueza construída com o ouro do Eldorado dos índios já não era o bastante ?

Infelizmente não era.

A cada nova carta com ordens do Rei, mais e mais embarcações aportavam em Terra Brasilis e voltavam lotadas a Portugal.

Cacique Raoni não concordava com tamanha ganância e abuso pra cima dos filhos de Tupã.

Tupã estava bravo com o abuso pra cima de seus filhos.

E os filhos de Tupã, com arcos, flechas e lanças, acordavam de seu espírito de paz e atacavam os portugueses.

Em vão. Com o poderio europeu de armas de fogo, os lusitanos exterminam as tribos pouco a pouco. A batalha índio x português era desigual, triste e sanguinária.

Quem não era exterminado, era submetido a afazeres que o Índio, at_é então, julgara ser uma brincadeira. Quase uma escravidão Tupi.

Foram traídos.

E Cacique Raoni, ao ver o Pajé morto no solo sagrado de Tupã e seu sangue escorrer na água que refletia Jaci, ao primeiro alívio lusitano, o indígena sentava as margens do riacho e se olhava num espelho trazido pelos lusos.

O Para_íso na Terra já não era tão saudável assim.

Raoni chorava. E previa pelo pior.

O Índio via um mundo doente. E que não podia fazer nada.

ATO III

E o pior veio:

O Índio, que até então, já perdia a maior parte de sua riqueza material, havia seu Eldorado, os riachos, as árvores, o sol, o céu e a lua e o chamavam de Obra de Tupã, agora tomadas.

Era uma espécie de confisco indígena.

Aymorés e Guaranis não tinham mais livre acesso ao seu Deus. A religião estava cerceada.

As terras agora pertenciam aos Lusitanos, que expulsavam as poucas tribos que restavam por ali e faziam valer a sua religião, com mosteiros, capelas e oratórios.

O que era oferenda pra Jaci, agora era enfeite a Nossa Senhora de Fátima.

Jurema não podia mais se enfeitar com as flores.

Raoni não podia mais admirar as estrelas. Mataram seu Deus.

Mas, o índio pensava: como um só Deus ao mesmo tempo é três ?

Pro Anchieta, que andara junto ao homem branco e nos catequizou, Deus não era Jesus Cristo, que era exatamente o mesmo Tupã que nos protege, presenteia e abençôa ?

"Mataram nosso Deus. Mas nosso Deus não é o mesmo Deus deles ?"

Pensava o indígena, sem entender a tamanha confusão religiosa.

E o curumim ficava maluco. Crescia sem liberdade, sob as ordens dos lusitanos e sem saber porque mataram seu Deus.

O que era a Catequese então ? Não sabiam porque raios o homem branco fazia o sinal da cruz se Deus está morto.

Raoni não podia acreditar que mataram seu Deus. Clamava por Tupã, para que um dia o mundo voltasse a ser perfeito como era antes da chegada dos europeus.

Todos podiam ser felizes tendo sua fé, seu espaço e seus costumes.

A ganância atacava não só a riqueza, costumes e cultura, mas também a liberdade religiosa de crianças e adultos indígenas.

"Como fomos ingênuos. Perdão, Tupã ! Perdão ! Ninguém pode ser feliz sem poder viver como um pássaro, que voa livre perante arvoredos e cascatas", lamentava o indígena em tupi-guarani.

ATO IV

Centenas de anos se passaram e hoje o índio é herança.

Sua cultura, sua crença e seus valores estão vivos incorporados na cultura do homem branco, já miscigenado com demais raças (não só a européia, mas também a negra, a asiática e com o próprio índio).

Veja você, o nosso próprio país possui vários cartões postais com nome de herança indígena, como Maracanã, Tijuca, Pacaembu ou Vale do Anhangabaú. A bebida brasileira mais famosa, vem do índio: o guaraná.

O índio é arte e o índio é Carnaval. Virou nome de bloco e figurou em diversos filmes, peças, quadrinhos, programas e canções.

Ficou a herança do índio e desapareceu o próprio índio.

A Terra Brasilis deve muito ao Índio. Mas nunca lhe agradece. Seu nome está em todos os lugares e ninguém agradece aos Caciques, Pajés e Curumins.

O Índio ganhou até uma data própria: Dia 19 de Abril. O problema é que, até a ganância européia chegar, todos os 365 dias, eram dias de índio, mesmo sem o próprio saber quantos dias tem um ano.

Hoje, o Índio ganhou também algo que não tinha quando o português chegou. O respeito.

E Manoelzinho, de oito anos, tataraneto de um português qualquer brinca livre no interior do Amazonas com seu amigo Kaori, tataraneto de um Cacique Raoni qualquer, que era explorado. Mas, Manoelzinho, diferente de seu tataravô, não ataca o indiozinho.

Hoje, todos somos iguais.

Tupã devolvera a alegria e paz ao índio perante o branco e Jesus Cristo ensinara ao branco a amar o irmão indígena. Embora tarde demais para se celebrar. Ou para chorar. De tristeza ou emoção.

O branco não ataca mais o índio e sua mais bela tribo por ser inocente.

E o Índio entende o branco e vê que, apesar de serem poucos, luta pela sobrevivência das aldeias restantes.

O Mundo doente visto no espelho começava a se curar.

Obrigado, Índio !

ATO V

Finalizando a nossa epopéia indígena, a nossa história se encerra em Brasília,

Exatamente em Brasília, onde um Índio de terno e gravata foi parar. Exatamente em Brasília onde a Tribo do Homem Branco pinta a cara e lança cânticos pra fazer a revolução e derrubar do poder quem manda de forma injusta e gananciosa.

Uma tribo moderna, que não usa cocar nem arco e flecha, mas sim, voz, violão, guitarra, baixo, bateria, talento e Rock And Roll, encerra o nosso ato.

A Legião Urbana num palco de Brasília, cidade-satélite, capital da antiga Terra Tupi, canta "Índios" e a saga indígena é defendida numa mistura de ritmos, encerrando a nossa rica história.

E juntos, uma tribo de milhões cantarolávamos felizes nos anos 80, 90 e até os dias atuais:

"E é só você que tem a cura pro meu vício
De insistir nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi.

Nos deram espelhos e vimos um mundo doente
Tentei chorar e não consegui."

Renato Russo, Dado Villa-Lobos, Renato Rocha e Marcelo Bonfá fazem a nossa história entre índios e brancos mais contemporânea do que nunca.

Encerra assim o Ato V do espetáculo Tupi de Terra Brasilis, mais indígena a cada dia.

E o Índio, que tantas vezes virou carnaval, virou Rock and Roll. Dessa mistura, virou desfile.

"Quem me dera ao menos uma vez desfilar a tua história

E mostrar que ela está tão viva como nunca. "

FIM


NOTA 1: Segundo Renato Russo no livro "Depois do Fim: Vida, Amor e Morte Nas Canções da Legião Urbana", a intenção de todas as obras da Legião Urbana é que cada um possua uma interpretação diferente. Não há um significado 100% correto ou 100% errado. Espero que desfrutem da nossa interpretação e visão de enredo, carnavalizando a obra de Renato, sem alterar ou depreciar o conteúdo melódico ou poético da mesma.

NOTA 2: A letra original da Legião Urbana, por se tratar de uma licença poética, não traz a cronologia fielmente correta da história indígena. Pequenas alterações cronológicas na ordem dos versos representando alas e alegorias serão propositais para a melhor compreensão, tanto da música como do enredo. 

Luís Butti
Pesquisador e Enredista
G.R.E.S.V. Bandeirante da Folia