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Coluna do Pesquisador

Coluna do Pesquisador

PARA ONDE IREMOS? 

Muitos dos que começam a ler essa coluna nesse momento devem estar se questionando sobre o mesmo assunto. Mesmo que seja de forma involuntária, a grande preocupação de quem gosta e de quem vive Carnaval, nesse instante, é o rumo que a festa vai tomar nos próximos anos. Por isso mesmo, a forma de interesse do público pelo Carnaval tem mudado, e um bom observador pode sentir isso. Qual é o pensamento que nos conduz hoje a preocupação com cada detalhe da preparação? 

Há anos atrás, obviamente, também existia o acompanhamento de cada detalhe desse pré-carnaval. E essa temporada, embora começasse um pouco mais tarde, mobilizava sempre seus admiradores na mesma proporção que hoje. Mas o que sinto, atualmente, é um objeto distinto de comoção, o motivo e outro. Parece-me que a paixão que mobilizava as comunidades em torno de suas escolas vai dando lugar, na cabeça e no coração de alguns, a preocupação, a ansiedade, baseada em duas correntes. Uma, dos que se mobilizam em nome da competitividade; outra, dos que se mobilizam em nome do medo. 

E por que estou falando nisso? Tenho uma sensação estranha de que os motivos que estão levando as pessoas a se interessarem tanto pelas escolhas dos enredos para 2005 sejam outros que não a paixão e ansiedade pura pela data da festa. Farejo no ar uma certa nuance de temor pelo futuro. Há uma preocupação com a qualidade dos temas, com a qualidade dos sambas, com a qualidade dos patrocínios, com a qualidade dos profissionais, ... Enfim, parece-me que o público fica cada vez mais preocupado com o que está sendo decidido nas escolas, muito mais de forma comparativa que de forma absoluta. Ou seja, parou-se de observar os enredos em si, para se observar, por exemplo, os enredos desse ano comparados com os do ano passado, e, o mais surpreendente, tomados como um todo. O público parece assustado com o que vem acontecendo nos últimos anos e, por conseguinte, demasiadamente atento a cada acontecimento. Vê-se isso nas listas de Internet, nos fóruns virtuais, nos jornais, nas ruas. Chegamos ao ponto de até mesmo um importante colunista de um jornal relativamente formal e conservador abrir seu berreiro contra dois enredos em específico. Tudo isso me cheira fortemente a um contra movimento, ao início da saturação do público carioca. O Rio e sua população sabem ainda quem são e podem estar começando uma reação, buscando de volta suas identidades originais. Assim sendo, não vejo lugar mais carioca pelo qual começar do que pela Marquês de Sapucaí. A palavra chave, portanto, é mobilização. 

Por muito anos a cultura do samba carioca foi sendo levada pela ação social e política do tempo. Pura e simplesmente. Não reagiu. Os valores foram sendo alterados em função das mudanças na sociedade carioca. Isso é evidente, afinal a cultura, principalmente popular, é apenas o reflexo dos valores do povo que a constrói. No entanto, esse povo pareceu não perceber que o reflexo de suas agonias e suas angústias poderia vir a trazer efeitos nocivos para o que mais estimava, para o mascote do Rio, o Carnaval. Vimos a sociedade dos anos 70, 80 e 90 ir se tornando cada vez mais pragmática, racionalista, fria, agressiva, desconfiada, vimos as instituições irem se quebrando como galhos secos. Vimos o espírito totalitarista da concorrência mercantil tomar conta do espetáculo. E assistimos a tudo isso conformados, como se inertes diante ao nosso próprio cataclismo social. E, prepotentes como somos, como coletividade, jamais paramos para pensar que poderíamos estar caminhando pelo rumo errado. Sempre conduzidos por outrem, alienados por interessados externos, agentes políticos ou sociais disfarçados de formadores de opiniões culturais, éramos animais ruminantes, soberbos e arrogantes, nos alimentando de nossos próprios dejetos culturais. Nesse período de transição escura sempre perecemos mais os homens da caverna idealizados por Platão. E foi nesse período que vimos pacientemente a nossa maior manifestação cultural ser remexida por agentes externos que pouco teriam a ver com ela. Todos presos em uma jaula, como dizia Max Weber, calmos em demasia, ou melhor, temerosos em demasia... 

Chegamos aqui ao seguir por esse rumo. Mas o dia acabou, a noite se aproxima, o sol se foi. Nada mais a frente podemos ver. O futuro parece sombrio, escuro e amedrontador. O ser humano, medroso e covarde por natureza, salvo exceções históricas, e movido apenas pelos seus temores. E calcula seus temores, sendo o mais interessante. O homem utilitarista é uma máquina de calcular... e calcula sempre qual é o caminho mais seguro, menos arriscado, mais estável, mais tranqüilo. E, mesmo sem saber, eis que todos nós estamos fazendo complexos cálculos em nossas cabeças nesse exato momento. Sim, o medo move o homem, que pensa o tempo todo, de forma racional, em qual é o rumo onde menos medo ele poderá ter. E vendo as opções que temos a frente, qual é o caminho que menos nos assusta? Esse será o escolhido. E dei essa volta toda para explicar que esse é o momento onde todos paramos e vimos que o caminho que estamos seguindo nos trás mais temores que um caminho alternativo. E se o medo aumenta para cá, agora sim, é hora de mudar. Curiosa a alma humana, não? Apenas quando vê tudo escuro, quando sente a aproximação do abismo mortal, é que clama por mudanças... 

Pois bem, é esse sentimento que tenho quando vejo essa preocupação com as escolhas do enredo. Não me tem o mesmo sabor que tinha em outros anos. Não estou afirmando que seja melhor, ..., nem pior, ..., é apenas diferente (verso tão conhecido no mundo do samba...). Parece que 2004 abriu os olhos. Parece que em 2004 saímos de dentro da caverna e vimos como o mundo pode ser maravilhoso do lado de fora. E o que causou isso, o que houve de peculiar em 2004? Será que foi o desfile do Império Serrano e a deslumbrante visão do que um bom samba pode fazer mesmo com alegorias primárias? Será que foi a trágica imagem do setor 11 vazio? Será que foi os desfiles frios e tristonhos, praticamente sombrios, das escolas de segunda feira, principalmente da escola com maior torcida da cidade, a Mocidade Independente de Padre Miguel? Será que foi o desfile da Mangueira, com sua falta de identidade verde-e-rosa? Será que foi o carro mágico do Paulo Barros, que poderia mostrar que outro caminho seria possível, um caminho onde os seres humanos e seus movimentos humanos nos carros humanos poderiam chocar mais que as maquias e efeitos especiais? Será que foi a Portela e os oitenta minutos da mais pura escola de samba que vimos na Avenida no ano, o que pode ter despertado na cabeça de muitos memórias de tempos que não voltam mais? Cada um dos leitores pode escolher sua própria justificativa. Pois, na verdade, é o somatório delas. O ano de 2004 foi trágico e repleto de peculiaridades. Quais? Tivemos flashes do futuro misturados a flashes do passado. E parece, nesse choque de momentos, que muitos sentiram sair de seus lábios uma simples pergunta: “Onde é que nós fomos parar?” E essa pergunta matriz originou diversas outras como “Onde foi que erramos?”, “Por que mudamos?” e, a minha favorita, “Para onde iremos?”. 

É certo que estamos em um período de auto questionamento em todos os setores da sociedade. Mas, aqui, nos debruçamos apenas sobre as questões carnavalescas. É hora também de parar para refletir a respeito dos valores que regem a nossa festa. E, não apenas os que mandam, os que fazem, os que organizam, mas todos que montam e participam da festa, ou seja, nós. É de baixo que tem que começar essa mudança, porque é de baixo que surge uma manifestação de cultura popular como os nossos desfiles. Um clamor é necessário, um clamor por mudanças que tragam a festa de volta para seu âmago, para o povo. E, nesse início de pré-temporada carnavalesca, eu começo a sentir um princípio de mobilização preocupada. 

A cada profissional contratado, a cada enredo escolhido, a cada patrocínio fechado, um grupo sai em defesa de alguns valores. Sente-se hoje que os amantes do Carnaval começam a perceber que uma escolha precisa ser feita, e que tal opção estará em suas mãos. Começa-se a não tolerar mais ações que antes eram vistas com, até mesmo, bons olhos. O ponto de saturação chegou. Vimos o que éramos, vimos o que poderíamos ser, vimos o que somos. E agora, para onde iremos? 

Eu havia dito que essa seria a finalidade dessa coluna. Levantar temas para serem debatidos nos fóruns, listas virtuais e ruas da cidade. Preferi levantar essa bola antes de comentar os enredos, até mesmo porque nem todos estão realmente fechados. Antes de comentar cada enredo, o melhor é comentar o contexto. Gosto dessa percepção de mobilização que venho tendo, me agrada saber que os olhos de muitos começam a se abrir. Antes de pensar em criticar ou elogiar um enredo ou outro, um profissional ou outro, um contrato outro, pensemos um pouco para onde queremos que a festa vá, quais os valores que queremos que funcionem como paradigmas nos próximos anos. Nunca percamos o pé na realidade, fria, cruel e dura, como é, de fato. Mas não abandonemos o espírito crítico da situação em nome de um pragmatismo exacerbado. É hora de parar e pensar na situação como um todo. E por que digo isso? 

Eu tenho reparado nas constantes críticas aos enredos escolhidos de uns, assim como aos elogios demasiados de outros. Mas quais os parâmetros para se avaliar um bom enredo nos dias de hoje? Será que depois desse longo processo de complexificação da festa ainda podemos pegar o modelo dos anos 70, com seus enredos mais simples, com paradigma? Será que podemos exigir algum tipo de enredo específico? Se somos nós os culpados, pela nossa inércia nas últimas décadas, como podemos criticar o ponto de chegada de um caminho pelo qual elogiamos todo o percurso? É complicado. Estamos falando de uma relação obrigatoriamente causal. Apoiamos valores que nos trouxeram até aqui e agora rechaçamos as conseqüências. Mas já paramos para pensar no que queremos, de fato? Sendo assim, afinal de contas, o que seria um bom enredo para o contexto atual do Carnaval Carioca? Como bancaríamos esse enredo? Que tipo de profissional é o ideal? Sim. Porque se tanto critica-se o status quo, alguma idéia de realidade alternativa deve-se ter... Não queremos o retrocesso, não queremos voltar no tempo, e eu entendo isso; também não queremos parar nele, o que também entendo; mas não pensamos, enquanto isso, em qual modelo poderíamos ter como alternativa. 

Não quero parafrasear Marx, mas o fato é que somos nós os sujeitos da história do Carnaval Carioca nesse momento. Não podemos perder a chance de tentar mudar o rumo das coisas. Não podemos deixar o rio passar por nós de qualquer forma, sem tentar estudar para onde ele vai. Se criticamos a realidade, devemos pensar na utopia e em como transformá-la em realidade. 

Na próxima coluna comentarei os enredos sob essa ótica; a ótica do enredo ideal. Qual, afinal de contas, seria o enredo ideal? 

Até a próxima semana...

Pesquisador

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