Fernando
Augusto da
Silveira Pamplona, hoje considerado um dos maiores baluartes do
carnaval carioca, nasceu no Rio de Janeiro, em 26 de setembro de 1926.
Após a Revolução de 1930, fugiu, com o pai,
do Sudeste para a cidade de Xapuri, no Acre, onde cursou o ensino
primário. Ainda criança, teve contato com diversas
manifestações folclóricas da região, como a
festa do boi-bumbá, o que crucial para lhe despertar um grande
interesse por cultura popular. Retornando a sua cidade natal, Pamplona
foi morar em Botafogo, indo durante vários carnavais, ao lado da
empregada doméstica, para assistir as batalhas de confetes da
Rua Dona Mariana. Mais tarde, entrou para Escola Nacional de Belas
Artes, local em que se formou como professor, embora não
contasse com o apoio de sua tia, que julgava este não ser o
curso correto para bons rapazes. Pamplona atuou ainda jovem, juntamente
com Sérgio Britto, no Teatro Universitário, sem relevante
sucesso como ator. Sua grande chance surgiu ao conhecer Mário
Conde no Bar Café Vermelhinho, conhecido ponto de encontro de
intelectuais na década de 50, como Di Cavalcanti, Augusto
Rodrigues, José Pancetti, entre outros. Mário o convidou
para trabalhar no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, onde aprendeu
técnicas de cenografia e produziu cenários para
balés e óperas. Como ocupação extra,
começou a auxiliar na ornamentação dos famosos
bailes carnavalescos do Municipal, além de criar vários
projetos de decoração da cidade para o carnaval. As
temáticas dos demais artistas sempre faziam referência a
cenários europeus, como festas da corte francesa ou veneziana
até que, em 1957, Pamplona, em companhia de Roberto de Carvalho,
surpreendeu a todos ao ornamentar o teatro erudito com adereços
de origem africana.
Em
1959, o escritor Miercio Tati, membro do então Departamento de
Turismo e Certames da Prefeitura (hoje, Riotur), o chamou para integrar
o corpo de jurados dos desfiles das escolas de samba do Rio. Embora
tenha assumido o cargo com dedicação, apenas uma, entre
todas as agremiações, deixou Pamplona realmente
extasiado. Trata-se do Salgueiro, que, naquele ano, havia inovado por
completo os padrões do carnaval carioca ao jogar para o alto os
habituais enredos de capa-e-espada (sobre políticos ou
militares) trazidos pelas escolas e abraçou uma temática
sobre o pintor francês Jean-Baptiste Debret. Tal tema, denominado
Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, fora
elaborado pelos figurinistas Dirceu e Marie Louise Nery e o Salgueiro
fez uma apresentação revolucionária e
inesquecível. Pamplona deu nota 8 à
agremiação, que somente perdeu por um ponto da Portela.
De qualquer maneira, foi ele um dos poucos jurados a defender, sem
medo, sua avaliação sobre os desfiles, o que surpreendeu
o diretor de carnaval do Salgueiro, Nelson de Andrade. A diretoria da
escola, por intermédio de Nelson, o convidou para preparar
desfile salgueirense para o carnaval de 1960 e Pamplona aceitou o
pedido com a condição de fazer um enredo sobre Zumbi dos
Palmares. Pela primeira vez, a vida de uma personagem
não-oficial da história do Brasil era retratada por uma
agremiação. Chamou seus colegas de teatro, Arlindo
Rodrigues e Nilton Sá, e acabou se tornando, por fim, um
carnavalesco de escola de samba.
De
início, foi difícil Pamplona convencer os sambistas do
Morro do Salgueiro a se fantasiarem de negros e abandonar as
requintadas roupas de nobres por eles utilizadas ano após ano.
Com muita conversa, os componentes entenderam a razão do enredo
e foram empolgados para o desfile, ocorrido debaixo de forte chuva. A
apresentação fora aberta por um grande estandarte,
trazendo a imagem de Zumbi e um anúncio a respeito da
história que seria contada na avenida. Logo após, o
carnavalesco ousou em colocar um carro alegórico repleto de
percussionistas tocando atabaques dos mais diferentes tipos, desde o
tambor de crioula do Maranhão aos ogãs de couro dos
terreiros cariocas. Seguiu-se a ala das baianas, homenageando o
maracatu e que, pela primeira vez após muitos anos, voltaram com
a tradição de se apresentarem completamente vestidas, ao
contrário do vinha acontecendo nas demais escolas, nas quais
elas já desfilavam de barriga de fora. A
agremiação relembrou a construção do
quilombo com palhoças, no sertão de Santo Agostinho,
pelos escravos foragidos durante a invasão dos holandeses ao
Nordeste. À cada ala que passava, o carnavalesco fazia
alusão às guerras entre Palmares, liderada pelo
protagonista do enredo, e as forças armadas dos governos
alagoanos e pernambucanos. Depois de 48 anos de confronto, o quilombo
é tomado pelas tropas do bandeirante Domingos Jorge Velho e
Zumbi, refugiado na Serra do Gigante e angustiado por ver seu reino
destruído, atira-se do topo de um penhasco. Além de um
ótimo samba e a empolgante bateria de Mestre Tião, o
Salgueiro contou ainda com o destaque de Mercedes Batista, a
única bailarina negra do Teatro Municipal, fantasiada de Dama
Calunga. O desfile foi encerrado por uma segunda ala de baianas,
representando, com bandeiras brancas, o fim da Guerra dos Palmares. O
Salgueiro saiu da avenida ciente de que havia feito um
espetáculo histórico e era apontado como favorito ao
título. Na apuração, a escola terminou em 3º
lugar, atrás da Mangueira e da campeã Portela.
Entretanto, as duas primeiras colocadas deveriam ser penalizadas em 15
pontos em cronometragem, o que foi ignorado pelos jurados. Depois de
muita confusão entre os diretores das escolas, ficou decidido,
em uma nova reunião, que todas as cinco primeiras colocadas
– Portela, Mangueira, Império Serrano, Unidos da Capela e
o próprio Salgueiro – seriam tidas como campeãs.
Para
1961, a
agremiação não contaria mais com a presença
do diretor de carnaval, Nelson de Andrade, e Pamplona decide seguir o
amigo ao se afastar do Salgueiro. Contudo, faltando menos de dois meses
para o desfile, a escola não demonstrava qualquer sinal de
preparo para entrar na avenida. A angústia tomou conta da
comunidade, a qual, desesperada, foi buscar Nelson e Pamplona de volta,
que tiveram a idéia de homenagear o escultor Aleijadinho, um dos
maiores nomes da arte barroca no Brasil. Ambos chegaram a viajar
até Minas Gerais a fim de recolher material sobre as obras do
artista. Além deles, o barracão do Salgueiro fora
também desenvolvido pelos carnavalescos vice-campeões de
1959, Dirceu e Marie Nery, e pelo então aluno de Pamplona na
Escola de Belas Artes, Mauro Monteiro. O começo do desfile do
Salgueiro foi muito prejudicado pela invasão de público
na Avenida Rio Branco, atrapalhando de forma penosa a
evolução dos sambistas. O abre-alas trouxe
réplicas dos doze profetas de Congonhas, impressionando a todos
os espectadores pela tamanha perfeição das esculturas,
muito semelhantes às originais. Com indumentária barroca,
os componentes do Salgueiro passearam pelo Brasil Colonial em meio
à liteiras, sacrários, procissões, damas e nobres.
Nenhuma das obras de Aleijadinho em Vila Rica (Ouro
Preto), Sabará, Mariana e São João Del Rey deixou
de ser descrita pelo carnavalesco. As baianas se apresentaram com
bateias nas mãos, lembrando a extração do ouro, em Minas Gerais,
no tempo do homenageado. Em substituição à
destaque Paula, foi esta a primeira vez em que Isabel
Valença, futuramente considerada personalidade
histórica do carnaval carioca, desfilou no Salgueiro. Apesar de
alguns contratempos, a escola animou a todos e conseguiu o
vice-campeonato, perdendo apenas para a Mangueira.
Em
1962, Nelson de Andrade enfim deixa o Salgueiro e Pamplona, tal como
faria no ano anterior, acaba por acompanhá-lo. Arlindo Rodrigues
assume seu posto de carnavalesco principal, levando a
agremiação à 3ª colocação com o
enredo O Descobrimento do Brasil. No mesmo ano, Pamplona viaja
para estudar na Alemanha, retornando em um breve período para as
festas de fim de ano. Nesse meio tempo no Rio de Janeiro, é
convidado para escolher o samba-enredo salgueirense para o carnaval
seguinte, cuja temática abordaria a vida da ex-escrava Chica da
Silva. Seu voto fora colocado em um envelope, com a exigência de
que somente fosse aberto após ele já ter partido de volta
a Europa. Sendo assim, foi escolhido o belíssimo hino de Noel
Rosa de Oliveira e Anescarzinho. Com uma apresentação
antológica, a escola consagrou de forma merecida seu segundo
título. Para 1964, Arlindo pede Pamplona para elaborar um tema a
respeito do negro Chico Rei. O carnavalesco que já havia
recolhido material sobre o personagem quando esteve em Minas Gerais
pesquisando acerca de Aleijadinho para o desfile de 1961. Ainda na
Alemanha, Pamplona envia o enredo completo a Arlindo, no Brasil, que o
faz ganhar vida em fantasias e alegorias vermelho-e-brancas.
Contando
com um conjunto visual leve e, ao mesmo tempo, riquíssimo, o
Salgueiro começou sua apresentação com um grupo de
sambistas abrindo passagem para Neca da Baiana, o qual encarnou a
figura do próprio Chico Rei, seguido das três famosas
passistas Irmães Marinho, ainda em estréia na escola. A
temática tinha início em uma tribo africana, terra natal
do homenageado, de onde foi arrancado à força e o
transportado em navio negreiro pelos portugueses para
escravizá-lo no Rio de Janeiro. Já no Brasil, foi levado
a Vila Rica por um nobre para trabalhar na mineração,
onde Chico Rei, a fim de conseguir dinheiro para comprar sua alforria e
dos demais escravos, decide esconder o pó de ouro nos cabelos
durante o trabalho e retirá-lo nas pias das igrejas. Desta
maneira, várias alas coreografadas por Marcedes Batista, que,
por sua vez, fantasiou-se de Rainha da Congada, representaram a lavagem
da cabeça dos escravos. Aliás, o desfile fora muito
prejudicado por conta dessas coreografias, feitas à pedido de
Arlindo Rodrigues e que lamentavelmente fizeram os componentes da
escola não cantar seu belo samba. O Salgueiro saiu da avenida
lembrando a conversão de Chico Rei ao cristianismo e a
construção da Igreja Santa Efigênia do Alto da
Cruz, em Ouro Preto.
Embora bastante aplaudida, a agremiação
terminou amargando o 2º lugar, principalmente graças sua
fraca harmonia.
Em
1965, ano cujo carnaval monotematizava, entre todas as escolas de
samba, os 400 anos da cidade do Rio de Janeiro por sugestão da
Secretaria de Turismo, Pamplona enfim retorna da Europa e opta, no
Salgueiro, pelo enredo História do carnaval carioca,
inspirado no livro homônimo de Eneida de Moraes. Para desenvolver
o desenho dos carros alegóricos salgueirenses, Arlindo Rodrigues
convidou um bailarino maranhense, colega do Teatro Municipal,
João Clemente Jorge Trinta, apelidado na época de
“Joãozinho das Alegorias” e bem mais conhecido no
futuro como Joãosinho Trinta. Infelizmente, o abre-alas, aonde
viria o filho do falecido presidente Casemiro Calça Larga,
não chegou ao barracão da escola, que, assim, teria que
se apresentar desfalcada. Pamplona pediu então às
Irmães Marinho para abrirem o desfile com o lema da escola
escrito em um cartaz: “Nem melhor, nem pior, apenas uma escola
diferente!”. Embora o carnavalesco tivesse medo de vaias na
avenida, isso não aconteceu e o público aplaudiu
intensamente a agremiação, principalmente a
comissão de frente, composta de 20 homens fantasiados com
burrinhas de vime, em alusão a cavalgada ocorrida em
comemoração à “Festa da
aclamação” de Dom João VI como rei de
Portugal, em 1818. O Salgueiro foi recebido por uma enorme chuva de
confetes e serpentinas, distribuídos por seus dirigentes nas
arquibancadas. Houve menções os corsos, através de
um calhambeque da década de 30, emprestado por um colecionador e
ornamentado com flores. Inclusive, um bloco do Catumbi,
muitíssimo elogiado pela crítica, esteve presente junto
à escola, fazendo referência aos antigos ranchos. As
grandes sociedades foram lembradas por um dragão de
plástico, encimados por mulatas da comunidade. Em seguida,
vieram alas representando os foliões de rua, como índios,
tenentes do diabo, melindrosas, arlequins, palhaços, além
de um bonde de verdade, usado como alegoria com as rodas de ferro
cortadas e substituídas por de borracha. Tendo a destaque Paula
como Tia Ciata, o carnavalesco recordou os sambistas da Praça
Onze e o desfile foi encerrado por fantasias do baile de gala do Teatro
Municipal, além de casais de mestre-sala e porta-bandeira
trazendo estandartes de todas as escolas de samba nas mãos. A
agremiação seguinte a se apresentar, a Portela, protestou
contra a sujeira deixada pelos confetes e serpentinas na passarela.
Pamplona, em tom de deboche, comparou a roupa dos garis da prefeitura,
limpando a avenida, com a comissão de frente portelense, o que
não foi muito bem recebido pela diretoria azul-e-branca,
ordenando então aos varredores para que se aproximassem mais do
Salgueiro ainda desfilando. Ironicamente, o júri pensou que os
garis fossem integrantes da escola, que não havia se esquecido
nem dos pobres trabalhadores da quarta-feira de cinzas. Ovacionado pela
imprensa e pelos espectadores, o Salgueiro sagrou-se novamente
campeão.
Depois
da conquista do título de 1965, Arlindo e Pamplona decidiram
sair do Salgueiro, acusando o presidente Osmar Valença a sempre
se ausentar em momentos críticos da preparação do
carnaval anterior. Em 1966, o desfile salgueirense ficou sob
responsabilidade do museólogo Clóvis Bornay, que
organizou a temática Os Amores Célebres do Brasil.
Sem o mesmo vigor e empolgação dos anos anteriores, a
escola acabou amargando uma decepcionante 5ª
colocação, o que levou a comunidade a chamar os dois
carnavalescos campeões de volta. Ambos concordariam com o
regresso com a condição de que Osmar Valença fosse
afastado da presidência da agremiação. Com uma
comissão administrativa, liderada por Jesus de Oliveira, Arlindo
e Pamplona retornaram ao Salgueiro, que, inspirados no livro
homônimo de Manuel Viriato Correia, escolheram o polêmico
enredo História da liberdade no Brasil. Passados
três anos após o Golpe Militar, um grande tormento foi
gerado entre os dirigentes da escola e oficiais a serviço do
DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), que, como se
não bastasse sempre estarem presentes nos ensaios da escola, por
várias vezes, chegaram a intimar Pamplona e pedir
explicações a respeito do tema, o qual teve sua
abrangência delimitada apenas até a
Proclamação da República, em 1889. De qualquer
forma, o temor pela censura na abertura do desfile prosseguiu, o que
fez com que os carnavalescos sugerissem aos sambistas se apresentarem
com esparadrapos na boca sob sinal de protesto e ao som apenas do toque
de um surdo. Felizmente, para a alegria dos componentes, tal
proibição acabou não ocorrendo, embora muita gente
tenha trazido os esparadrapos como fora pedido.
Aliado
a um belo samba de Aurinho da Ilha, o Salgueiro abriu seu desfile com
um livro aberto como abre-alas, seguidos de alas referentes à
Inconfidência Mineira, com bandeiras brancas e o lema
“Libertas quae sera tamen”. Adereços de mão
segurados por diversas alas, feitos de madeira leve e palha,
representavam as máscaras africanas do Quilombo dos Palmares. A
partir daí, o Salgueiro relembrou Aclamação de
Amador Ribeiro, Revolta de Bequimão e Guerra dos Emboabas. As
Irmães Marinho e o casal de mestre-sala e porta-bandeira,
Agostinho e Maria de Lourdes, iniciaram o setor dedicado a Revolta de
Felipe dos Santos, marcada pela rebelião de mineiros de Vila
Rica contra a proibição, pela Coroa Portuguesa, da
circulação do ouro em pó. As baianas, com fantasias
floridas, vieram no capítulo referente à
Conjuração Baiana, movimento emancipacionista que
separaria a Bahia do Brasil Colônia. A escola ainda passeou pelos
episódios da Guerra dos Mascates, Revolução
Pernambucana, Proclamação da Independência e Dia do
Fico. No quadro alusivo à Abolição da Escravatura,
veio Isabel Valença em uma de suas grandes
apresentações, ao redor de lampiões e quatro
portais e no papel de Princesa Isabel com uma roupa branca, vermelha e
dourada, incrustadas com pedrarias. A agremiação terminou
sua apresentação com Instauração da
República, tendo o destaque Bolonha como Marechal Deodoro da
Fonseca. Juntamente a um visual impecável, um dos grandes
momentos do desfile foi uma alegoria, ladeada por uma cascata de
espelhos, invenção de Arlindo Rodrigues contendo um
chafariz colonial, em homenagem a Ismael Silva, fundador da primeira
escola de samba da história, a Deixa Falar. A única falha
foi a bateria ter saído do recuo desnecessariamente mais cedo, o
que prejudicou o ritmo dos demais componentes. Muito elogiado, o
Salgueiro acabou 3º lugar, perdendo apenas para o Império
Serrano e a Mangueira, campeã com O mundo encantado de
Monteiro Lobato.
Para
1968, Pamplona escolhe o enredo Dona Beija, a feiticeira de
Araxá, homenagem à negra Ana Jacinta de São
José e seu romance com Dr. Joaquim Inácio da Motta, o
ouvidor do Rei em
Minas Gerais, no século XIX. O maior objetivo
maior do carnavalesco e sua equipe era preparar um espetáculo
que se assemelhasse o ambiente imperial das cidades mineiras daquele
tempo, o que foi cumprido com grande sucesso. Com o conjunto de
fantasias e alegorias mais elogiado na temporada
pré-carnavalesca, o Salgueiro iniciou seu desfile em uma
manhã de chuva, embora o público nas arquibancadas ainda
continuasse empolgado. Pamplona relembrou a beleza da personagem que
encantava a todos em Araxá e seduziu o ouvidor do local ao ponto
de raptá-la, apesar de estar noiva. Ambos fugiram para a Vila do
Paracatu do Príncipe e Beija acabou por se tornar amante de seu
seqüestrador, retornando a Araxá tempos mais tarde, onde
ela não era mais admirada, mas sim vista com olhos desconfiados
pela população. A escola fez alusões a sua vida
luxuosa na corte, como fora mostrado no setor em que desfilou Isabel
Valença, representando magicamente a própria homenageada.
Contando ainda com a presença das Irmães Marinho, a
tradicional Paula e a recém-chegada Narcisa, a
agremiação finalizou seu desfile com a
recordação do pedido de Joaquim a Dom João VI para
transferir o Triângulo Mineiro da Capitania de Goiás para
a de Minas, temendo um julgamento por ter raptado Beija. Após
uma das melhores apresentações do ano, o Salgueiro
repetiu sua colocação do ano anterior, atrás
novamente do Império Serrano e da bicampeã Mangueira, com
Samba, festa de um povo.
Em
1969, mais uma vez, o Salgueiro virou notícia pela escolha de
seu tema: Bahia de todos os deuses. Acontece que, no carnaval
carioca, sempre houve um tabu a respeito de enredos sobre a Bahia,
tendo em vista que, ao longo da história, já haviam sido
desenvolvidos em várias ocasiões e nunca uma escola de
samba passou do 3º lugar. Quando tal temática fora
anunciada na quadra, a comunidade chegou a achar que fosse brincadeira,
porém se tratava da pura realidade e, apesar de contrariar muita
gente, a agremiação trabalhou firme para desmistificar
essa lenda que atormentava a mente dos sambistas. Com um
orçamento limitado, Pamplona não hesitou ao soltar sua
ambígua e mais famosa frase: “Tem que tirar aquilo que
não se tem no bolso!”, fazendo tanto um protesto contra o
exagerado gasto financeiro tido nos barracões, como uma
exaltação ao uso da criatividade pelos carnavalescos.
Como ele e Arlindo eram, naquele ano, os responsáveis pela
cenografia do baile de gala do Copacabana Palace, Pamplona se
aproveitou deste fato para elaborar ornamentos propositalmente
desmontáveis para serem, depois, reutilizados na
construção das alegorias salgueirenses. Com um samba
interpretativo e extremamente inovador, de autoria de Bala e Manuel
Rosa e cantado por Elza Soares, a escola começou sua
apresentação com a comissão de frente em ternos
brancos e componentes balançando incontáveis bandeiras
brancas, seguida de alas, coreografadas por Mercedes Batista,
representando cada um dos doze orixás do candomblé. A
maior surpresa da escola seria a alegoria referente a Iemanjá,
toda confeccionada com papel-machê, rodeada de oferendas, rosas
prateadas e uma cascata de pequenos espelhos, que, debaixo de sol
forte, proporcionaram aos espectadores um efeito visual
extraordinário, tornando-se um momento inesquecível do
carnaval carioca. O Salgueiro ainda aludiu o Mercado Modelo de Salvador
com vendedores de flores, pássaros, cerâmicas, gaiolas,
peixes e frutas, além dos quitutes regionais levados pelas
baianas da escola, todas de branco. Pamplona também não
pode se esquecer de citar as obras de grandes baianos, como Jorge
Amado, Genaro de Carvalho, Dorival Caymmi e Mário Cravo, todos
devidamente homenageados. Com muita garra e uma leveza jamais vista
anteriormente, a agremiação abocanhou o título e a
Bahia deixou de ser considerada uma maldição para as
escolas de samba.
Sonhando
com o bicampeonato em 1970, Pamplona opta por enaltecer, o berço
do samba e da malandragem carioca com a temática: Praça
XI, carioca da gema. A maior intenção era rememorar
os tempos dourados do carnaval e trazer de volta o ar existente no Rio
de Janeiro do começo do século XX. Ricamente
fantasiado, o desfile do Salgueiro fora aberto por uma comissão
de frente de malandros, vestidos de preto e representando a
“pilantragem de todos os tempos”, segundo o enredo.
Além disso, o carnavalesco se aproveitou de tripés
contendo frases de empolgação, como “Abra-alas, que
o Salgueiro vai passar!”, “O Salgueiro vem
aí!” e o lema da escola, “Nem melhor, nem pior,
apenas uma escola diferente”. Em seguida, a
agremiação fez alusões a Igreja de Santana, a
qual, há mais de séculos, sempre foi um dos principais
pontos de encontro entre pregoeiros de rua nas imediações
da antiga Rua das Flores. Logo após, vieram alas referentes
à chegada dos negros escravos e suas batucadas, futuramente os
símbolos mais importantes da região. Como era obvio, o
carnavalesco fez menções à boemia local, que,
entre bares, serestas, vadiagem e sinuca, foi crucial para o surgimento
do samba carioca, não faltando também Isabel
Valença, ao encarnar a Tia Ciata, dita a grande fundadora do
gênero musical. Incansavelmente aplaudido, a escola contou ainda
com a presença do cantor Jorge Ben e das tracionais
Irmães Marinho, Narcisa e Paula. Em pouco mais de 50 minutos no
ano em que ressurgiu o quesito cronometragem, a
agremiação terminou seu desfile, como apregoava Pamplona:
“Prefiro o ‘já’ ao
‘ainda’!”. Sem grandes surpresas, o Salgueiro ficou
em 2ª lugar, atrás da campeã Portela.
Para
1971, Pamplona buscou inspiração no trabalho de mestrado
de sua aluna na Escola de Belas Artes, Maria Augusta Rodrigues, a
respeito dos festejos feitos para celebrar a chegada de
príncipes africanos ao conde Maurício de Nassau, na Nova
Holanda em meados do século XVII. Além de Arlindo,
também se integraram à equipe do carnavalesco as
figurinistas Rosa Magalhães e Lícia Lacerda, em
substituição à própria Maria Augusta por
motivos de saúde, e o então passista e presidente de ala
no Salgueiro, Max Lopes. Com um samba fácil de cantar e de
refrão instigante, de autoria de Zuzuca, a escola iria investir
imensamente na leveza e na empolgação de seus componentes
para batalhar por uma boa colocação. O início do
desfile retratou a corte do Recife colonial, com direito à
presença especial do pintor holandês Albert Jongmans,
encarnando Maurício de Nassau, e Isabel Valença,
fantasiada de Ana Paz, portuguesa amante do conde, ladeados por
lampiões brancos e seguidos de mucamas com sombrinhas de renda.
O segundo setor da escola, aberto por quarenta armeiros, lembrou a
vinda da embaixada do Rei Manicongo, representado por Neca da Baiana,
sentado em uma carruagem ao lado de cinco príncipes negros. A
escola encerrou sua apresentação com uma
exaltação ao candomblé, se utilizando de oferendas
e totens africanos idealizados por Joãosinho Trinta. Cumprindo
seu papel com perfeição, o Salgueiro realizou um dos
momentos históricos do carnaval carioca, uma verdadeira aula de
animação e bom gosto estético em perfeita
aliança. Com facilidade, Pamplona faturou seu quarto campeonato.
Tal
como em 1960, 1967 e 1969, os olhos da imprensa se voltaram de maneira
repentina para o enredo a ser desenvolvido por Pamplona no Salgueiro
para 1972: Minha madrinha, Mangueira querida. Nunca
anteriormente uma escola de samba havia homenageado uma co-irmã
e, apesar de os carnavalescos argumentarem sempre as diversas vezes em
que a Mangueira prestou auxílio gratuitamente ao Salgueiro, o
clima entre ambas as agremiações se tornou bastante
desagradável. A intenção do tema era reviver os
gloriosos carnavais da escola e fazer um preito a seus maiores
baluartes, porém boatos se formavam entre os mangueirenses, como
o que alegava que “seria um modo de Arlindo Rodrigues ensinar a
Júlio Mattos, carnavalesco da escola, a como fazer um belo
desfile com as cores verde e rosa” ou que “os integrantes
da comissão de frente salgueirense seriam travestis”. Sem
nada disso comprovado, o Salgueiro investiu em sua
apresentação da forma que pode, escolhendo novamente um
samba de Zuzuca, na linha do oba-obismo, para repetir o sucesso de
1971. Para agravar a situação, o carro de som quebra na
concentração e, embora uma Kombi com caixas de som tenha
sido trazida por Osmar Valença, não se tratava de uma
solução eficiente. Pamplona decidiu que o Salgueiro
deveria levar o samba apenas na voz dos componentes, o que acabaria
sendo a pior decisão de sua profissão como carnavalesco.
Com
um conjunto visual de ótima qualidade, a
agremiação, para a alegria de todos, fez um bom
começo de desfile, com o setor “O guri do Mundo de
Zinco”, referente à infância no morro de Mangueira
com sombrinhas, pipas, cata-ventos e piões. Apesar da boa
entrada, conforme as alas se distanciavam da bateria, o Salgueiro ia
perdendo crescentemente sua cadência. De qualquer maneira, nada
apagaria o brilho das fantasias e alegorias vermelho-e-brancas criadas
pela equipe de Pamplona, as quais, a este ponto, descreviam o quadro
“Mangueira, estação primeira”, relembrando a
fundação da escola, em 1928. O Salgueiro continuou
passeando pelas tradições de sua madrinha ao aludir a
locais renomados do morro de Mangueira, como Buraco Quente,
Tengo-tengo, Chalé, Catedral e Santo Antônio, além
de homenagear Cartola, Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça,
Jamelão, Clementina de Jesus, entre outros. Infelizmente,
enquanto a escola enaltecia os carnavais gloriosos da verde-rosa, como Reminiscências
do Rio Antigo, Casa grande e senzala, Exaltação
a Villa-Lobos e O mundo encantado de Monteiro Lobato, a
tensão tomava conta dos sambistas, pois toda a harmonia estava
visivelmente arruinada e os dirigentes não encontravam um meio
de manter o ritmo dos componentes. O samba, por ter um refrão
repetido em dois momentos, fez com que cada parte da escola reentrasse
cantando trechos distintos da letra, resultando em uma gigantesca
catástrofe. O público, que, de início, até
tentou apoiar o Salgueiro, começou a vaiá-lo. Com fim da
apresentação, a Pamplona tinham ciência que sua
permanência na agremiação era uma questão de
tempo. Na apuração, a escola terminou com a 5ª
colocação, a pior da trajetória dos carnavalescos
até então. Depois de uma dramática reunião
com a diretoria, Pamplona e Arlindo abandonam o Salgueiro.
Em
1977, pouco depois da saída de Joãosinho Trinta,
Laíla e uma série de seus integrantes para a Beija-Flor
de Nilópolis, o Salgueiro mostrou claramente indícios de
que entrava em uma crise. O maior problema enfrentado pela escola era a
falta de uma sede, uma vez que, completamente endividada, acabou
perdendo sua quadra no alto do morro. A solução tomada
foi a eleição de China Cabeça Branca, dono de
pontos de jogo do bicho na Praça da Bandeira, para presidente,
em especial pela promessa de conseguir a posse de um terreno no
Andaraí para a agremiação se instalar. Outra
medida providenciada foi convocar de volta personalidades salgueirenses
afastadas do carnaval, o que, neste caso, incluía o retorno do
posto de carnavalesco para Pamplona, que, aliado a uma nova equipe que
contava com o aderecista Stoessel Cândido da Silva, a desenhista
Maria Carmen e cenógrafo da TVE do Rio de Janeiro, Renato Lage,
escolheu como enredo uma viagem bem-humorada pela culinária
brasileira do Oiapoque ao Chuí. Tal idéia surgiu
já há algum tempo, enquanto o carnavalesco estava em uma
feira de artes, promovida pelo Itamaraty, na Alemanha. Vasculhando seus
pertences, encontrou um livro de José Calazans, cognominado
“Cachaça, Moça branca”, sobre a
história da cachaça. A partir daí, começou
a pesquisar afoitamente a respeito das inúmeras formas pelas
quais as bebida se relacionava com os pratos típicos do Brasil.
Porém, inesperadamente, o Salgueiro abateu-se por um tenebroso
contratempo: depois de jantar no restaurante Saci, em Vila Isabel,
o patrono China foi misteriosamente assassinado. Assumindo o
vice-presidente Moacyr Lord, a escola padeceu à falta de verba e
algumas das alegorias acabaram não sendo desenvolvidas.
Desfilando
debaixo de sol forte, o Salgueiro abriu sua apresentação
com o abre-alas “Coisas de comer”, aonde vinha um imenso
caldeirão com a destaque Adele Fátima, representando a
feijoada, seguida de Isabel Valença, lindamente no papel de
“Moça Branca”, e da atriz Wilza Carla, a glutona
“Dona Redonda” da novela “Saramandaia”,
fantasiada de “Indigestão”. Utilizando-se de muitos
tripés, Pamplona relembrou charges e frases humorísticas
famosas ao citar alguns dos históricos pontos de encontro
gastronômicos do Rio de Janeiro, como o Café Nice,
localizado na Galeria Cruzeiro, na Avenida Rio Branco, e que serviu de
reduto da boemia carioca na década de 20. As alas, a seguir,
aludiram o Café Lamas, inaugurado em 1874, onde sempre se
reuniam políticos, intelectuais e artistas, como o presidente
Getúlio Vargas, Olavo Bilac e Machado de Assis, além do
austríaco Bar Adolph, importante estabelecimento que teve que
mudar o nome para Bar Luiz, pois, por pouco, não seria
destruído, nos anos 40, por militantes estudantis se não
fosse uma intervenção de Ary Barroso. Os membros da
bateria vieram vestidos de cozinheiros e até os mestres
Arengueiro e Louro usaram colheres de pau como batuta. O desfile
terminou com uma referência ao popular Angu do Gomes, das
imediações da Praça XV, panelaço de
fubá com miúdos com o qual centenas de trabalhadores,
vindos das barcas de Niterói, matavam a fome diariamente. Apesar
do espírito escrachado, o Salgueiro não chegou a empolgar
tanto o público nas arquibancadas, como fizeram a Beija-Flor e
União da Ilha, e acabou ficando em 4º lugar.
Para
1978, Pamplona, que já havia pensado em uma temática
sobre a história da comunicação no Brasil, o qual
acabaria sendo sugerida por ele ao Império Serrano, em 1986,
decidiu optar por enredo Do yorubá à luz, a aurora
dos deuses, o qual seria idêntico ao que Joãosinho
Trinta levaria pela Beija-Flor, sobre o surgimento do mundo pela
cultura yorubá. Brigando fogo contra fogo e apostando na
tradição do Salgueiro com temas afro-brasileiros, o
carnavalesco lamentavelmente continuava se deparando com tormentos. Na
concentração, três alegorias chegaram quebradas e,
no instante em que os auxiliares de Pamplona iam concertá-los,
eram surpreendidos por grupos armados rivais ao presidente Moacyr Lord
e acabavam se vendo obrigados a assistir seus próprios trabalhos
sendo destruídos sem fazer nada. Ainda antes do desfile, o
mestre de bateria, Arengueiro, foi intimado à prisão e
somente pode reger seus ritmistas graças à promessa da
diretoria de apresentá-lo após o término do
desfile, o que, de fato, aconteceu. O começo da
apresentação retratou o paraíso criado por Olurum
e os orixás enviados como seus mensageiros. O que mais chamou a
atenção da imprensa foi à utilização
de sobras industriais baratas, como espelhos e armações
de vime, mas que proporcionaram um visual muito bonito. A
agremiação ainda fez alusões à
África e a vinda do candomblé para o Brasil por meio do
comércio negreiro, até o momento no qual o policiamento
da avenida perdeu o controle e a invasão de pista tomou conta do
desfile, prejudicando completamente a evolução e
harmonia. Finalizando sua apresentação debaixo de chuva,
os salgueirenses sabiam que aquele carnaval foi uma verdadeira
tragédia e que seu futuro era bastante duvidoso. Com sorte, a
escola ficou em 6° lugar em um ano cujo descenso acontecia a partir
da 7ª colocação. Já angustiado, Pamplona
abandona o Salgueiro para não voltar mais.
Mesmo distante da carreira como carnavalesco, Pamplona não se
afastou do carnaval carioca, sendo comentarista das transmissões
dos desfiles durante as décadas de 80 e 90, primeiramente pela
TVE, onde também atuou como apresentador do programa “A
Verdade”, e, a partir de 1984, pela Rede Manchete. Especialista
sagaz, formava opiniões de alto embasamento intelectual, sem
dispensar, de modo algum, críticas, muitas vezes severas,
não só ao que via na avenida, como aos próprios
técnicos de televisão que cobriam o espetáculo.
Doa a quem doer, diversos artistas de renome tiveram seus trabalhos
alfinetados por Pamplona, o que acabou lhe dando um prestígio
muito grande entre os telespectadores amantes da maior festa popular da
Terra. Além disso, durante vários anos, sugeriu enredos
serem elaborados, no Império Serrano, por seus ex-colegas, como
em 1982, para Rosa Magalhães e Lícia Lacerda com Onze
Candelárias Sapecaí (depois modificado para a
onomatopéia Bumbum Paticumbum Prugurundum, levando a
escola ao campeonato), em 1983 e 1984, para Renato Lage com Mãe
baiana mãe e Foi malandro é e em 1987 e 1988,
para Ney Ayan com Com a boca no mundo, quem não se comunica,
se trumbica (antigo tema de 1978, não desenvolvido pelo
Salgueiro) e Pára com isso, dá cá o meu.
Homem
sensato e importante defensor do samba de raiz, Pamplona, até
hoje, é considerado uma figura polêmica, em especial por
suas posições controversas às medidas
demasiadamente confusas tomadas pelas escolas de samba. Sem meias
palavras, é crítico rigoroso da crescente
artificialização dos desfiles, a péssima qualidade
dos sambas-enredo atuais e a deturpação dos antigos
valores culturais já tidos como raros no carnaval carioca.
Embora chamado de “saudosista” pelas novas
gerações, ele foi um dos principais responsáveis
pela evolução das escolas de samba, rompendo barreiras
arcaicas, inovando estéticas, trazendo de volta
tradições, aliando o popular ao acadêmico e o
acadêmico ao popular. Uma geração inteira de
carnavalescos de primeiro nível, reverenciados, atualmente, por
todos os sambistas de maneira geral, surgiu basicamente as suas custas.
Sempre foi tratado e respeitado como um profissional veterano em tudo
que fez, o que realmente não passa da mais sincera verdade.
Fernando Pamplona faleceu em 29 de
setembro de 2013.
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