PRINCIPAL    EQUIPE    LIVRO DE VISITAS    LINKS    ARQUIVO DE ATUALIZAÇÕES    ARQUIVO DE COLUNAS    CONTATO

Coluna do João Marcos

A PERERECA DA VIZINHA

15 de janeiro de 2012, nº 50, ano VII

Sérgio Cabral, em uma entrevista, disse uma frase que me marcou muito: o melhor carnaval da história é o de quando a gente tem 18 anos. E é por aí mesmo - os saudosistas são aqueles que gostariam de sempre se sentir no carnaval de quando eram jovens, que gostariam de repetir para sempre a sensação do primeiro amor. Esta entrevista deve ter sido mais ou menos no final de 1987 ou início de 1988 porque, na mesma entrevista, ele também comentou sobre a Tradição e sobre o samba do Bar Brasil, da Unidos da Tijuca. Mas, de qualquer forma, eu nunca esqueci aquela observação.

O meu carnaval dos 18 anos foi o de 1991, e não foi o melhor da história – não sei se eu era precoce, mas 1989 parece ser uma unanimidade para a minha geração, a do pessoal na faixa dos 35-40 anos. O meu primeiro carnaval foi 1982. Em 1991, a coisa já estava bem diferente de quando eu comecei a acompanhar. Em 1982, o Império foi campeão; em 1991, foi rebaixado. A produção dos LPs já tinha se alterado bastante, a TOP TAPE já não era mais a gravadora, as faixas ganhavam arranjos mais parecidos com o que se ouvia na avenida. E tinha passado menos de 10 anos.

Lembrando aquela época, eu tento entender o que significa 1991 para o menino que começa a acompanhar escola de samba na atualidade. São 21 anos no passado. Os 21 anos anteriores a 1991 nos levam a 1970, tempo de “Lendas e Mistérios do Amazonas”. 21 anos antes de 1982 é o ano de 1961, de “Rio Antigo” e “Seca no Nordeste”. Ou seja, para o garoto de hoje, 1991 é como 1961 para mim. Eu lembro do choque que tive na primeira vez que escutei “Seca no Nordeste” - era algo totalmente estranho, muito diferente do que eu julgava ser um samba-enredo até então. Fico imaginando se os sambas dos anos 80, que são os do “meu melhor carnaval da história”, causam estranheza parecida naqueles que começam a se interessar por carnaval na atualidade.

Mas, voltando ao assunto, em 1991, estreava no grupo principal uma escola de samba de nome estranho, uma tal de Unidos do Viradouro. Eu ainda não tinha consciência de que ela possuía uma história de sucesso no carnaval de Niterói – para falar a verdade, eu nem sabia que existia carnaval em Niterói. Não sabia das disputas entre Viradouro e Cubango. Sabia apenas que aquela nova escola estava ali, entre as grandes. E traria um enredo sobre a comediante Dercy Gonçalves.

Dercy já era uma senhora de idade avançada. Na época, fazia sucesso no chamado “Jogo da Velha”, quadro do recém-lançado Domingão do Faustão. E ela ficava no centro do, digamos, tabuleiro-cenário, ao lado de outros astros da TV, mas era a personalidade principal, a que o Faustão mais solicitava para fazer comentários. Debochada e desbocada, roubava a cena e tornava coadjuvante até mesmo o apresentador do programa.

Pouquíssimas pessoas tinham noção da verdadeira história da velha que cantava a ‘perereca da vizinha’ e mandava uns palavrõezinhos inocentes nas tarde de domingo na TV. E as escolas de samba, geralmente, faziam homenagens a artistas “mais sérios”, queridinhos da intelectualidade. Poucas e raras eram as homenagens a personalidades que ainda estavam vivas e fazendo sucesso com o povão.

O desfile acabou sendo imortalizado pela suposta ousadia de Dercy, que desfilou de peito nu, mostrando os seios. Lembro ainda dos meus familiares criticando aquela “velha sem vergonha”. Pouco depois, eu soube que ela desfilou daquele jeito por conta das dores que sentia, que a impediram de usar a fantasia que tinha sido feita. Não era desrespeito com a escola, com o público, nem demonstração de feminismo ou deboche com as mulheres de pouca roupa que abundavam nos desfiles da época. Era a única forma que ela podia desfilar e receber a homenagem que tanto a sensibilizou.

Revendo agora a minissérie da TV Globo sobre Dercy Gonçalves, relembrei o samba, cantado por Quinzinho, o grande Quinzinho que, com a sua voz aveludada e o timbre intenso, cantando “Bum Bum Paticumbum Prugurundum”, transformou-me num torcedor do Império Serrano. O Império Serrano, que vinha com um mediano samba sobre caminhoneiros, enquanto o da Viradouro era um primor, talvez o melhor do ano. Uma melodia classuda, com variações sutis e belíssimas que sustentava um samba com apenas um refrão - um refrão esplendoroso que resumia o respeito que a escola tinha pela artista. E o enredo era isso: tinha a perereca da vizinha? Tinha, mas também tinha todo o passado artístico, a luta, a saída da cidade de Madalena rumo ao estrelato; o sucesso na Casa de Caboclo, no circo, no Teatro de Revista, no cinema; e a volta por cima após anos de ostracismo. E com versos de uma simplicidade tocante: “Vou entrar no circo e com você sonhar / No fim da peça pra você gritar / Um bravo... Bravo, bravíssimo!”. Não era uma homenagem a uma velha doida, mas a uma artista que era o símbolo da riqueza cultural do Brasil - o retrato de um povo. Bravo, bravíssimo!

A escola terminou numa excelente colocação, o que hoje é inimaginável para qualquer agremiação que venha do acesso para o Grupo Especial, e se tornou quase que instantaneamente numa potência do carnaval do Rio, sendo campeã poucos anos depois.

Mas eu não gosto apenas de falar do passado. Para mim, o importante é o agora. Eu fico imaginando o mesmo samba hoje em dia, dos fóruns de carnaval o rotulando de ‘trash’ por causa de versos como o “Eu vou me acabar... quá, quá, quá, quá, quá!” (algum compositor atualmente conseguiria pensar numa solução mais simples e eficiente do que esta, mais direta e original, e que passa justamente o que significa o elemento do humor ligado à homenageada?) A rapaziada reclamando do samba, que seria muito para baixo, uma marcha-fúnebre, que iria arrastar na avenida; os diretores de harmonia e intérpretes se reunindo para alterar a letra e jogar para cima determinados trechos da melodia para não prejudicar o canto dos componentes.

E é justamente pensando nisso que eu me lembro que este é o carnaval dos meus 39 anos e que eu não posso cometer o mesmo erro dos saudosistas, querendo que 1989 ou 1991 voltem. Será que os diretores das escolas, que acham que este tipo de samba é inviável no carnaval atual, apenas refletem o sentimento dos foliões de 18 anos, seus interesses e gostos? Será que os comentaristas que pedem uma reflexão sobre a evolução do carnaval são, na verdade, chatos querendo estragar o ‘melhor carnaval’ da geração dos que hoje tem 18 anos? Ou será que o pessoal das escolas apenas querem impor regras goela abaixo dos compositores, para facilitar determinados grupos e perpetuar a pobreza artística dos sambas atuais?

Repasso o questionamento aos leitores.



Abraços a todos!