Meu
parceiro Ricardo Delezcluze está assinando a coluna “Samba
Alternativo” no site SRZD-Carnavalesco. Pelos artigos já
publicados, parece que o foco serão as escolas menores, dos
Grupos C, D e E do Rio, que atualmente desfilam na Intendente
Magalhães, em Campinho. Conhecendo a figura, acho que
ninguém poderia fazer melhor este papel – estas escolas
pequenas precisam ser apresentadas para o grande público
através de um olhar generoso, como o de Delezcluze.
Eu até tento fazer um papel semelhante, alertando para sambas de
pequenas escolas de cidades do interior do Rio, São Paulo e o
carnaval do restante do Brasil. Quando vejo algo bonito, diferente, um
samba ousado, uma letra poética, uma melodia que traga alguma
emoção, eu faço questão de divulgar.
E verifiquei que pouco falei do carnaval da Intendente aqui. Serei
franco: não é à toa. O carnaval da Intendente
é muito complicado do ponto de vista artístico. Podemos
até dar mil descontos para isso: muitas escolas, p.ex.,
estão em áreas muito carentes, dominadas pelo
tráfico, as “faixas de Gaza” do Rio de Janeiro.
São escolas praticamente inviáveis, que dificilmente
teriam como evoluir. Para estas, ter um contingente de centenas de
pessoas desfilando já é uma vitória.
O que não suporto é escola que poderia ser grande e
é arrasada pela mediocridade. A mediocridade é uma
doença do carnaval atual e, no Rio, com seus
“doutores” de carnaval, que criaram fórmula para
tudo, ela está presente em larga escala, em todos os sentidos.
Vou dar um exemplo de como a mediocridade pode ser encontrada nas
escolas da Intendente: sinopse da Acadêmicos do Engenho da
Rainha, de 2011. Um enredo homenageando o atual Presidente da Portela.
Segue um trecho da sinopse. Note bem o ano para o qual a sinopse foi
escrita: 2011.
“Para dar seguimento, após o Carnaval de 2005, às idéias representadas pelas Metas do Milênio, está sendo realizado
um Seminário denominado Implantação das Metas do
Milênio em Oswaldo Cruz , Madureira e Bairros Adjacentes,
iniciado no dia 05 de novembro de 2005 com a visita do presidente Lula
à PORTELA”.
Logo em seguida, temos o seguinte trecho:
“Com tais objetivos o Seminário deverá ter prosseguimento a partir de março de 2005”
É neste ponto que eu não consigo ser como o Ricardinho.
Quando eu vejo isto aí, uma sinopse bastante divulgada na
internet, de uma escola que por anos ficou no segundo grupo e
beliscando posições próximas da ascensão ao
Grupo Especial, não consigo ser romântico. Essa sinopse
foi supostamente escrita por alguém e supostamente aprovada por
mais alguns. Como reclamar do descaso do poder público diante
disto? Como, diante disso, pode se falar em subvenção
baixa (e as escolas dos Grupos C, D e E do Rio recebem
subvenção maior do que muito carnaval de Grupo Especial
pelo Brasil a fora)?
Analisemos algumas escolas tradicionais que estão na Intendente
Magalhães. Peguemos a Unidos de Lucas, fruto da fusão da
Unidos da Capela (campeã do Grupo Especial de 1960) e Aprendizes
de Lucas (escola da onde saiu ninguém menos do que Elton
Medeiros). A Unidos de Lucas era considerada a quinta força do
carnaval do Rio até o início dos anos 70. Nos anos 80,
era uma escola que sempre disputava o Grupo de Acesso entre as
primeiras colocadas, sempre batendo na trave. Hoje se encontra no Grupo
E, o último grupo das escolas de samba.
Nos anos 80, a escola vinha como enredos como Vinicius de Moraes,
Ataulfo Alves, Dircinha e Linda Batista. Foi três vezes
consecutiva terceira colocada no Acesso. Aí, começou com
enredos de qualidade duvidosa – em 1994, a Cidade de
Conservatória levou a escola a um décimo segundo lugar no
Acesso. Veio a queda para o terceiro grupo e enredos sobre Bernard do
Vôlei e Agnaldo Timóteo. Nos seus últimos anos,
apelou para reedições. Deu adeus a Sapucaí com um
enredo sobre o Piauí. Nos dois últimos anos, duas quedas
consecutivas com dois enredos cansadíssimos, que já foram
repetidos um bilhão de vezes no carnaval: reciclagem e cerveja.
Trajetória parecida fez a queridíssima Unidos da Ponte. E
se você analisar bem, o mesmo aconteceu com a Unidos do
Cabuçu, a Em Cima da Hora e o Arrastão de Cascadura,
dentre outras. Chegou um momento em que elas apostaram na mediocridade
e decaíram para o que são hoje.
E quando falo em mediocridade, não falo só em sinopses e
enredos. Algumas disputas de samba de escolas da Intendente são
inacreditáveis. Você vai numa final, estão
concorrendo um samba ótimo, um samba mediano e um samba trash
e sem sentido. Vai dar o samba trash e sem sentido. As poucas pessoas
presentes nas finais olham aquele cenário e ficam perplexas.
Aí, você conversa com os diretores, conversa com a
harmonia da escola, pergunta o que diabo aconteceu e percebe que houve
uma escolha deliberada, que a escola queria um samba medíocre
– “aquele samba é lindo, mas é para a
Beija-Flor. Samba de Intendente é isso aí”.
E este acaba sendo o cenário. O carnavalesco copia a sinopse do
Wikipédia porque não sabe escrever e concatenar
idéias. Muitas vezes, é um garoto saído dos
terríveis cursos de carnaval das faculdades mercenárias
que se multiplicam por aí. A escola não tem muito
dinheiro e recebe esculturas e materiais das maiores para reciclar e,
por isso, tem de fazer desfiles genéricos. Os sambas são
lixos, seja por eliminatórias eivadas de sacanagem, seja por
mentalidade pequena de seus diretores na escolha. A comunidade desiste
da escola. Ela morre e vira cinzas.
Nas escolas “medianas”, aquelas que ficam nas
últimas posições do A, no B ou nas primeiras
colocações do C, a coisa não muda muito de figura.
Como elas têm mais dinheiro, podem fazer alguns luxos. Grande
parte, p.ex., monta comissão de carnaval capitaneada por um nome
forte de escola do Especial. Isto também é muito comum em
algumas escolas de fora do Rio – o presidente contrata um cara da
comissão de carnaval de uma grande escola do Especial e acha que
está trazendo um profissional de ponta. Só que este cara,
que realmente é bom, vai ficar 99% do seu tempo na escola do
Especial do Rio. A escola “mediana” vai ficar com a sobra.
O compositor do Grupo Especial vai fazer o samba para escola mediana (e
para a de fora do Rio) e a obra não vai ter o mesmo nível
do samba da escola do Grupo Especial – para a escola mediana, ele
pega os sambas antigos dele que perderam, reutiliza alguns trechos
melódicos genéricos, faz uma colcha de retalhos e, em 15
minutos, o Frankenstein está formado.
E a mediocridade está no Grupo Especial e na LESGA
também. Peguemos este incêndio que consumiu os
barracões de Grande Rio, Ilha e Portela. Todos nós
ficamos tristes com o ocorrido, não há como não
lamentar. Não é a primeira vez que algo desse tipo
acontece. Aliás, um dos momentos mais tristes que eu vi na
Sapucaí foi no Grupo B de 1996, quando a Mocidade Unida de
Jacarepaguá perdeu seu carnaval devido às enchentes do
Rio de Janeiro. Mais do que perder fantasias e alegorias, a comunidade
da escola viveu uma verdadeira tragédia, com dezenas de mortos e
desabrigados. A escola foi obrigada a desfilar e seus componentes
entraram sobre protesto, ao som da marcação de um surdo,
sem sambar e sem cantar, muitos chorando de tristeza. Segue um trecho
do desfile:
O
que aconteceu com a escola, que sofreu muito mais do que qualquer uma
das três da LIESA? Foi rebaixada sem dó nem piedade.
Não teve prefeito na televisão para defender a escola da
Cidade de Deus.
Não estou dizendo que Ilha, Grande Rio e Portela devam ser
rebaixadas. No entanto, o acidente, que serviu para fins
demagógicos pelo Prefeito do Rio de Janeiro, também
serviu como desculpa para as escolas manterem seu status quo e
não correrem riscos. Explico: queimaram-se as fantasias;
queimaram-se as alegorias; mas o componente está vivo. As
escolas poderão sambar, cantar, evoluir; o mestre sala e a
porta-bandeira poderão dançar; a comissão de
frente poderá se apresentar; a bateria poderá tocar seus
instrumentos. O desfile das escolas de samba é mais do que
visual.
No entanto, não há interesse num carnaval não
visual. Sim, porque é mais fácil você fascinar pelo
visual do que passar um sentimento ou fazer um samba cair nas
graças do povo. Por isso, as escolas valorizam o
‘visual’, porque é mais fácil competir no
luxo do que na emoção. É mais interessante fazer
um carnaval baseado em premiar quem consegue captar mais dinheiro e
patrocinadores do que valorizar a arte.
O incêndio foi utilizado como pretexto para que ninguém da
LIESA corra risco. As escolas que competem não perderão
para o samba no pé; as que sofreram com o incêndio (e duas
das três escolas poderiam se recuperar caso seus presidentes
quisessem se esforçar para competir, até porque
receberão ajuda do Município) não correrão
risco de cair; as doze escolas e seus presidentes estarão
garantidos e receberão gordas subvenções no ano
que vem. Tudo está bem amarradinho, na mesma mentalidade que fez
com que a LIESA se tornasse um grupo praticamente fechado, que criou a
regra vergonhosa do rebaixamento de apenas uma escola por ano.
É uma mentalidade que garante escolas ricas e felizes, mas que
privilegia a falta de qualidade e a mediocridade. A mentalidade
medíocre que afasta o samba do povo, das rádios, que faz
os CDs terem vendagens pífias (sim, porque nenhum artista tem
tanta propaganda quanto as escolas de samba, com as vinhetas tocando o
dia todo na televisão. E ainda falam que os sambas atuais
não “pegam” por falta de divulgação.
Você já viu vinheta com cada música do CD do
Zezé Di Camargo e Luciano de hora em hora na
programação de qualquer emissora de televisão?)
O carnaval do Rio poderia renascer das cinzas. Mas, para isso, teria de
fazer como o mestre Martinho da Vila ensinou, valorizando a cabrocha
sambando, a cuíca roncando, a viola e pandeiro, mostrando para
todos que o papel das escolas de samba é sambar na avenida.
Quando a LIESA definiu que quem perdeu parte do seu
‘visual’ não pode competir, mostrou a
importância que dá para o sambista. Pegou as cinzas das
escolas de samba e, junto com a Prefeitura, depositou tudo em latas de
lixo. Os deuses da mediocridade ficaram mais felizes do que nunca.