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Coluna do João Marcos

COMPLETANDO O CÂNONE

Durante meses, pensei nos vinte e quatro sambas que fariam parte do meu cânone do samba-enredo, ao lado de Seca no Nordeste a Aquarela Brasileira. Conclui que o número que estabeleci é pequeno demais. Deveria ter selecionado vinte e seis compositores – o que aumentaria consideravelmente o número de sambas. Até porque um cânone é composto pelo que há de sagrado, intocável, e samba-enredo não teve apenas vinte e seis momentos de genialidade.

Mais do que um cânone, a lista que se segue é um apanhado de vinte e seis momentos de ruptura e consolidação – momentos em que a regra do jogo mudou. O jogo mudou, p.ex., quando a Tradição trouxe, em 1985, o melhor e mais conhecido samba de uma escola que não desfilou nem no Grupo Especial, nem do Grupo de Acesso A - “Pássaro Guerreiro, Xingu” não é só o primeiro, mas é também o mais belo e aquele que inaugurou o movimento de resgate de valores dos sambas-lençóis dos anos 60, depois de duas décadas em que imperaram sambas mais alegres e curtos. E, de certa forma, a exstência da Tradição foi o que impulsionou o pequeno interesse da mídia pelos grupos de acesso.

O samba da Tradição foi uma reação a um processo que se iniciou com o samba da Vila, de 1967, que se consolidou com Salgueiro 1969 e deu título para várias escolas nos anos seguintes, com sambas fáceis de memorizar e refrões arrasa-quarteirão. Na minha opinião, o grande momento desta formula foi em “Festa do Divino”, o samba da Mocidade de 1974, que tem um vantagem - momentos melódicos emocionantes, que, antes, só a Mangueira, em 1973, tinha conseguido. A perfeição foi com a Mocidade e o melhor samba de sua história. É claro que você encontra emoção em “Ilu Ayê”, da Portela de 1972, outro samba do meu cânone, mas o espírito e a novidade deste samba é outra – como meu parceiro Imperial define, este é um samba “valente”. E esta valentia, não consigo lembrar em sambas anteriores.

O primeiro samba canônico, ou melhor, o mais antigo, é “Exaltação à Tiradentes”, Império Serrano, 1949. A obra de Mano Décio da Viola é tão visionária, criativa e original que foi incorporada de forma definitiva pela MPB, com regravação até de Elis Regina. O leitor talvez não consiga entender o que ela tem de tão especial – a letra é super simples, apenas fala o nome de Tiradentes, a data de sua morte e sua importância, sem rebuscamentos ou frescura. Porém, atentem para a melodia – é diferente de tudo. A riqueza das variações melódicas é sentida até na forma como “Joaquim José da Silva Xavier” é entoado no samba, já que aparece duas vezes. Além disso, a melodia consegue passar a força da figura como mártir. Quer algo mais perfeito?

A Mangueira, nos anos 50, foi uma fábrica de grandes sambas, como o rebuscadíssimo e super  lírico “Quatro Estações do Ano”, talvez o mais poético samba-enredo da história e assinado pelo eterno Jamelão. Mas foi nos anos 60, mais precisamente em 1961, que um compositor criou o verdadeiro estilo Mangueira de fazer samba-enredo – Hélio Turco e seu fantástico “Rio Antigo”, o melhor samba da história da escola. Antes disso, só o samba em homenagem à Getúlio Vargas tinha chegado perto disso.

Nos anos 60, o Salgueiro fez uma quantidade absurda de clássicos do carnaval carioca, quase sempre apostando em enredos que tratam da história dos negros. O melhor exemplo, para mim, e o momento de ruptura total foi com “Quilombo dos Palmares”. Apesar dos sambas de 1963 e 1964 serem mais elogiados pelos críticos, acho que o samba de 1960, além de ser o primeiro título da escola, tem uma grande vantagem – a aposta não é numa figura, num personagem, mas na força de resistência do negro. Zumbi é um coadjuvante, parte do todo. É algo como fez Einsentein, cineasta russo, no meu filme preferido, “O Encouraçado Potemkin”, que trata da rebelião de marinheiros diante das péssimas condições de tratamento. O personagem principal é a coletividade e sua força na lutra contra as injustiças. Além disso, o refrão é o mais sensacional dentre os sambas salgueirenses da época: “Meu Maracatu é da Coroa Imperial / Meu Maracatu é da Coroa Imperial /  É de Pernambuco, ele é / Da casa real”. Seguindo a mesma linha, temos mais cinco sambas canônicos, as maiores representações de suas escolas: “Sublime Pergaminho”, da Unidos de Lucas, de 1969; “O misticismo da Africa ao Brasil”, Império da Tijuca, de 1971; “Rio Grande do Sul na Festa do Preto Forro”, da Unidos de São Carlos/Estácio de Sá, de 1972; e “A Criação do Mundo na Tradição Nagô”, Beija-Flor, de 1978 e “Kizomba, Festa da Raça”, Vila Isabel, 1988.

Os sambas-lençóis tiveram uma queda de prestígio nos final dos anos 60. Depois da última vitória de Silas de Oliveira, e seu “Heróis da Liberdade”, os sambas mudaram. Apesar de obras mais clássicas, como “Os Sertões”, Em Cima da Hora, 1976, ainda aparecerem,o panorama se modificou. Martinho da Vila, com “Yayá do Cais Dourado”, também de 1969, já mostrava os novos caminhos do samba-enredo nas décadas seguintes, com sua dolência e estruturação diferentes, que já podem ser ouvidas no transicional “Lendas e Mistérios da Amazônia”, Portela, 1970, que apesar de ter um refrão mais simples, tinha momentos experimentais na melodia, unindo o que, naquele tempo, era o antigo e o novo. Estas experiências fizeram possível o surgimento de um “Das Maravilhas do Mar, Fez-se o Esplendor de uma Noite”, na Portela, em 1981.

No entanto, a busca por sucesso e comunicação nos anos 70, fez com que o gênero samba-enredo começou a sofrer muitas críticas, inclusive dos próprios amantes do carnaval. A disputa de samba no Império, em 1975, mostrou que entre um samba de maior qualidade e um samba arrasta-povo, as escolas escolhiam o mais animado. A união entre comunicação com o público, simplicidade e qualidade é uma fórmula difícil de ser encontrada. Talvez o maior exemplo de sucesso nesta fórmula tenha sido “Domingo”, de 1977, o grande momento da Ilha. “Bum-Bum Paticumbum Prugurumdum”, Império Serrano, 1982, foi o primeiro grito de alerto, que foi seguido pelo aparecimento da Tradição. No final da década, alguns sambas mais clássicos começaram a se destacar, como Mangueira, 1988 “Cem Anos de Liberdade, Realidade ou Ilusão”. No entanto, o grande samba clássico dos anos 80 é “Liberdade, Liberdade, Abre as Asas Sobre Nós”, Imperatriz Leopoldinense, 1989, trilha sonora do mais perfeito desfile da história.

Os anos 90 foi uma época complicada para os sambas-enredo. Os melhores sambas foram aqueles que tinham um espírito anos 80 e, por isso, encontram-se no início da década. “Peguei um Ita no Norte” é um exemplo, com seu andamento marcheado e seu refrão fantástico, que fez a Sapucaí pegar fogo. Mas os enredos foram ficando cada vez mais esquisitos, teve escola falando do guarda-chuva, da Disney, etc. O melhor samba da segunda metade da década de 90, “O Dono da Terra”, acabou sendo visto por poucos, porque a Unidos da Tijuca, em 1999, estava no Grupo de Acesso. O samba, fruto de um enredo simples, baseado na cultura brasileira, era poético sem ser prolixo ou complicado.

No novo milênio, como canônico, vejo apenas “Manoa, Manaus, Amazônia, Terra Santa: Alimenta o Corpo, Equilibra a Alma e Transmite a Paz”, samba da Beija-Flor, de 2004, que se mostra como a grande obra do movimento que se percebe nos sambas atuais,  resgatando os valores das obras dos anos 60, porém com uma nova roupagem. No entanto, a fase ainda é de transição e poucos sambas atuais conseguiram fazer isso sem ser desnecessariamente longos e chatos. Por isso, para mim, “Manoa” é o último samba nota 10 do carnaval do Rio.

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Para quem ficou curioso sobre o filme “O Encouraçado Potemkin”, citado mais acima, filme russo de 1925, coloco o link de um trecho abaixo, um dos mais famosos da história do cinema. Trata-se do massacre de Odessa, quando os cossacos saem atirando contra a população da cidade, que saúda o navio com os marinheiros revoltosos. As cenas são impressionantes – a fuga desesperada do povo pelas escadas, o pisoteamento, o assassinato de mulheres e crianças, o desespero de um deficiente físico, etc. Além disso, tem o momento em que o carrinho de um bebê desgovernado desce pela escadaria, que foi imitada em diversos filmes, inclusive “Os Intocáveis”, com Kevin Costner e Sean Connery.


Na LIESV, este filme estará presente no desfile da Vizinha Fofoqueira, que tem como enredo o cinema mudo, com samba interpretado pelo intérprete da Estácio de Sá, Serginho do Porto. Quem quiser conferir o CD da LIESV, o link é este aqui:

http://www.liesv.com/musical/cds2008.html

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Ainda falando em LIESV, alguns amigos me perguntaram sobre as semelhanças entre os enredos da União da Ilha para 2009 e um que eu fiz para a Imperatriz Paulista, em 2007, inclusive perguntando se houve plágio. Lendo a sinopse, diria que há semelhanças, sim, evidentemente. Ambos são bem próximos no trecho sobre Júlio Verne, iniciando com as influências do meio sobre sua visão do mundo (a sinopse da Ilha fala só da Revolução Industrial, e eu falo do liberalismo e da Revolução Francesa), passeia pelas culturas e lugares exóticos por ele retratados, a viagem ao centro da terra, a viagem espacial onde a nave é projetada por um canhão, etc, e termina com a Jangada (chamada de aldeia flutuante na sinopse da Ilha), que é o livro do Verne ambientado no Brasil.

Bem, serei sincero – acredito que o Jack Vasconcelos tenha se inspirado no meu enredo, sim, tendo em vista que diretores e compositores da Ilha já passaram pela LIESV, alunos do carnavalesco são da LIESV e, suspeita-se, ele fez um carnaval na LIESV em 2006, para uma escola que hoje está em outra liga. Portanto, acho que o Jack conhece a LIESV ou tomou conhecimento do enredo enquanto pesquisava sobre o tema na internet.

Agora, não posso falar em plágio. O meu enredo é sobre a obra de Verne, o dele é sobre viagens, inclusive fazendo a vinculação entre Verne e Santos Dumont. Com toda a certeza, as alegorias e fantasias serão bem diferentes (é perceptivel isso na sinopse, p.ex., na parte da revolução industrial, onde ele fala de automóveis)

Acho que o Jack utilizou a mesma “sacada” para criar algo novo. Se isso realmente aconteceu, tenho de ficar envaidecido de ver a idéia servindo de inspiração para um enredo da maravilhosa escola da Ilha do Governador. E se não aconteceu, se foi só coincidência, eu tive uma sacada de carnavalesco com passagem em Grupo Especial. Ou seja, de qualquer forma, sinto-me envaidecido.

Para quem quiser conferir o carnaval da Imperatriz Paulista, de 2007, este é o link do desfile:

www.liesv.com/imperatriz_index.htm  

E este é o samba, que o Mestre Maciel, quando era jurado da LIESV, deu um inexplicável 9,5 (ai, ai, ai, Maciel!)

P.S.: Só espero que o Jack Vasconcelos não use o enredo para fazer um carro “cérebro com redinha de neon 2” porque as possibilidades estéticas são incontáveis.

Abraços a todos!

João Marcos
joaomarcos876@yahoo.com.br