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Coluna do João Marcos

A ORIGINALIDADE E O CÂNONE DO SAMBA ENREDO

Harold Bloom, professor de Yale e crítico literário, tem um livro chamado “O Cânone Ocidental”, em que ele enumera as obras mais importantes da literatura ocidental e que é quase um guia do que é “obrigatório” de se ler durante a nossa curta existência. Na sua opinião, numa época em que multiculturalistas, neomarxistas, feministas, e outros grupos que ele chama de “escola do ressentimento”, dominam a crítica literária, colocando ideologias políticas acima da qualidade, faz-se necessário ao crítico ater-se a uma análise puramente estética da arte.

É uma missão complicada despir-se dos preconceitos, ideologias e interesses para julgar um obra pelo seu valor puramente estético. Principalmente, dentro de um universo como o do samba-enredo, em que o valor artístico e estético talvez seja o menos importante, onde o compositor não faz samba para se expressar, mas por vaidade ou por razões financeiras.

Como julgar um samba-enredo apenas por sua qualidade estética, sabendo que ele foi imposto por traficantes? Como não se deixar influenciar pelos bastidores das disputas, pelas estratégias de efeitos nefastos das firmas de samba-enredo, que são responsáveis por 95% dos sambas-enredo dos Grupos Especial, Acesso A e B do Rio, e que estão partindo atrás de outros centros, inclusive em cidades do interior e em outros estados, impedindo o desenvolvimento do talento local? É uma tarefa difícil.

Eu, mesmo, não sei muito bem o que farei para comentar o samba da Beija-Flor, para 2008. Qual o valor estético do samba de Cláudio Russo e cia.? É um dos melhores da safra ou é uma paródia ridícula e está para o samba de 2007 na mesma proporção que o “O le lê, O la lá, Romário vem aí, o bicho vai pegar!” está para o Pega no Ganzê, samba do Salgueiro, de 1971? Ainda não sei a resposta. Que ele vai funcionar na avenida, não tenho dúvidas. Mas, qual o seu valor estético?

Transportando as teorias de Bloom para a crítica dos sambas enredo, algumas teses dos sambistas vão por água abaixo. Uma crítica estética desvincularia a análise do samba-enredo do seu funcionamento na avenida. É possível, sim, analisar samba no CD. Não se pode é garantir que ele tirará notas dez – até porque, brincando com uma das frases mais famosas de Shakespeare, “existe mais coisas entre a cabine dos jurados e a realidade do que sonha a nossa vã filosofia”.

Ao contrário do que afirmou um opositor do SAMBARIO, não é preciso comer peixe frito na Mangueira para saber julgar um samba enredo do ponto de vista estético e artístico. Inclusive, para a crítica de um samba, acredito que quanto mais longe da quadra, melhor. Longe da influência da cerveijinha, do contato direto com o compositor (que pode nos causar simpatia ou antipatia), fica mais fácil se ater ao que interessa. Na quadra, há uma certa contaminação, você acaba sentido a energia dos componentes e das torcidas e isto influencia a percepção.

Muitos dos emails mais nervosos que recebi durante minha participação no SAMBARIO foram justamente neste sentido – como você pode analisar o samba do CD? Você não tem noção do que está falando! Você não viu como o samba passou ontem no ensaio! Você está dizendo uma coisa e está acontecendo outra na quadra. Sim, é verdade. E lendo os sites da internet, conversando com amigos, eu sei disso tudo. O samba do bacalhau, da Imperatriz, p.ex., tinha apresentações eletrizantes na quadra. A faixa do CD ficou agradável. Na avenida, no entanto, foi um desastre.

O que muitos não entendem é que, na avenida, nem todo mundo acompanha a escola do coração do sambista indignado. Muitas vezes, nem os próprios desfilantes. E aí, o desempenho na quadra, durante as eliminatórias ou ensaios, não significa muito. Outras coisas, até então obscuras, entram em cena. Evidente que o valor da obra também é um ingrediente para seu sucesso no desfile. Só que, muitas vezes, grandes sambas naufragaram ou tiveram performances decepcionantes. Eles perderam o seu valor?

Outra coisa que muitos não entendem é que não acreditar no potencial artistico de um samba e dizer que ele tem grandes probabilidade de fracasso não significa odiar a escola que o escolheu. No futebol, o sujeito pode ser atleticano, como eu, e achar o time horroroso. Eu vi Éder, Reinaldo e Cerezo jogarem - como eu posso achar o time atual bom? Como alguém pode gostar do futebol que o Galo está apresentando? O futebol está mais rápido, mais baseado na força física... porém, continua sendo futebol, ou estou errado?

Aliás, esse negócio de “evolução”, de que “os tempos são outros” é pura conversa fiada. Para Bloom, p.ex., todos os escritores estão competindo por um lugar no cânone e isso significa que estão competindo com Shakespeare, que é a figura central deste cânone. Trazendo isso para o mundo do samba-enredo, significa que, independente de estarmos em uma época totalmente diferente, amigo compositor, sinto informar, mas... você está competindo com Silas de Oliveira. E não só com ele. Para sua obra ter importância, você terá de brigar por espaço com Martinho, Hélio Turco, Geraldo Babão, Tôco, Noel Rosa de Oliveira, Niltinho, David Correa, Beto Sem Braço, Candeia, etc.

Bloom defende que o traço mais marcante de uma obra canônica é a sua “estranheza”. Estranheza seria um tipo de originalidade. Um samba realmente genial não é aquele que “realiza espectativas”. Essa originalidade pode ter duas conseqüências – ou nunca ser plenamente assimilada (como “Raízes”, o magnífico samba sem rimas de Martinho, que continua único e inimitável), ou contaminar de tal forma as demais obras que chega-se a um ponto que é como se aquilo tivesse sempre existido, de tanto que é copiado.

Temos um cânone oficial no troféu Estandarte de Ouro, oferecido pelo jornal O Globo. Temos algumas listas e CDs enumerando os melhores sambas de todos os tempos. Aqui no SAMBARIO mesmo, vários colunistas já estabeleceram o seu cânone. Acho que chegou a minha hora. Não será uma lista dos meus sambas preferidos – apesar de quase todos os meus sambas preferidos estarem no Cânone. Outra observação - apenas incluirei sambas do Carnaval do Rio de Janeiro – aviso logo, para que não me perguntem onde está Narainã ou Fruto do Amor Proibido.

Bloom escolheu 26 escritores para a sua lista. Para não ficar atrás, eu escolherei os 26 sambas canônicos. Bloom destaca dois escritores como aqueles que são o centro de seu cânone – Dante, autor de A Divina Comédia (que serviu de inspiração para o samba da Renascer de Jacarepaguá, de 2006) simbolizando a estranheza selvagem, nunca plenamente assimilada. Para ocupar este espaço, colocarei “Seca no Nordeste”, samba da Tupy de Brás de Pina, de 1961, com a sua melodia pesadíssima, sua letra devastadora, triste, desesperada, que vai da frustração à redenção quando, do céu, começam jorrar “lágrimas”. O impacto do samba é brutal, principalmente quando seu primeiro contato com ele é através da versão de Jamelão. Além disso, nada é mais estranho e genial do que o “ôô ôô” ser a melodia da sinfonia entoada pelo gado, ao ver a chuva caindo.

O outro centro do cânone é “Aquarela Brasileira”. Silas de Oliveira, assim como Shakespeare, absorveu tudo que havia sido feito antes. Num primeiro momento, “Aquarela Brasileira” pode parecer apenas mais uma exaltação às belezas naturais e culturais do Brasil, o que não é novidade. Shakespeare, muitas vezes, apenas reescreveu histórias já contadas. No entanto, ainda assim, a originalidade está presente. Shakespeare foi o primeiro escritor a faz o personagem “entreouvir-se”, ou seja, o personagem analisa suas próprias ações e muda de idéia ao longo da peça. “Ser ou não ser?” Silas de Oliveira, por sua vez, ao compor a letra de Aquarela, faz algo que não lembro outro autor de samba-enredo ter feito antes – o samba é em primeira pessoa. No entanto, é uma primeira pessoa diferente – não é o Silas de Oliveira que se deparou com lindos coqueirais, que assistiu, em Pernambuco, a festa do frevo e do maracatu. Quem fez isso é quem está cantando. VOCÊ é personagem do samba. O “Rio dos Vice Reis”, Império Serrano de 1962, pode ser o “meu Rio de Janeiro”, mas quando você canta isso, você não “praticou” nenhuma ação.

É contra estes sambas que o compositor atual está competindo. Agora me digam, como uma firma, compondo vinte sambas por ano, pode fazer algo que tenha valor estético e originalidade? Os caras não conseguem mais nem mudar a melodia de um ano para o outro...

*****

Quando eu falo do poder verdadeiramente destrutivo das firmas de samba, alguns não entendem. Costumar engolir o argumento de Andre Diniz, que disse numa entrevista que samba de firma ganha porque é bom. No entanto, não é bem assim que a banda toca. Seria ingenuidade achar que numa eliminatória vence o melhor samba. Muitas outras coisas entram em jogo. E não são só engradados de cerveja e bolinhas de soprar.

No dia 27 deste mês, a Consulado do Samba, de Florianópolis, realizou sua final. Algumas coisas já eram estranhas ao longo do concurso – o presidente da escola abriu as eliminatórias, que antes eram restritas aos membros da ala de compositores. Fechado o prazo de inscrições, o presidente da escola impôs um prorrogamento do prazo de inscrições. Eis que inscreve-se um samba obscuro, de uma compositora de origem totalmente desconhecida na escola, chamada Célia Regina.

Quem seria Célia Regina? Ninguém sabe. Em enquete no Orkut, 90% das pessoas acreditam que ela seria o próprio intérprete da escola, Luizinho Andanças. Outros, achavam que as iniciais de CCCCCCCCCCCCCcélia RRRRRRRRRRRRRRRRRegina davam a dica. De qualquer forma, o samba ficou conhecido como o “samba do Rio”. Segundo fontes, a obra não funcionava na quadra. Dois sambas de parcerias locais dividiam a preferência do público.

Na grande final, cinco sambas, dentre eles o de Célia Regina - que muitos não conseguiam entender como ainda não tinha sido eliminado. Anuncia-se o resultado. A escola optou por Célia Regina (que não estava na quadra), em fusão com um dos sambas da parceria local. O samba local, que foi anunciado primeiro, entrará com um refrãozinho, para diminuir a insatisfação do pessoal da escola. Quando a vitória de Célia foi anunciada, o publico reagiu de forma imediata, como se pode ver na gravação aqui disponível.

Link:
http://www.4shared.com/file/27645798/18292b97/consulado2008anuncio.html?dirPwdVerified=ad5f427b

Ao som das vaias, o presidente da escola afirmou que o “o pessoal de Floripa não sabe como funciona uma escolha de samba”. O interessante é que a escola é a atual tricampeã do carnaval da cidade, com sambas locais, quase todos com notas máximas. E o engraçado é que as firmas não garantem bons resultados - a escola que foi a última colocada do carnaval de Florianópolis em 2007, a Coloninha, utilizou um samba estranhamente “semelhante” com um concorrente de uma das firmas do Rio para a Beija-Flor, do ano das sete missões de amor.

No Carnaval de São Paulo, em 2007, supõe-se que uma mesma firma teria vencido três sambas em escolas da cidade. Os três sambas apontados pelos boatos, somando os quesitos letra e melodia, foram, justamente, os que obtiveram as três notas mais baixas dos julgadores.

Não posso dizer que o samba da Consulado seja de firma, nem de quem é, nem quais os motivos que levaram a escola a escolhê-lo, etc. Apenas relatei as impressões e as reações dos componentes da escola. Caso o samba seja de firma, os fatos apenas demonstrariam que esses escritórios não só impõem sua vitória por meios para lá de obscuros, como também empobrecem a qualidade do espetáculo e, o pior de tudo, sufocam os talentos locais. É lamentável.


Abraços a todos!

João Marcos
joaomarcos876@yahoo.com.br