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A NAVALHA NO OLHO Nos últimos dias, assisti um DVD com os filmes Um
Cão Andaluz/A Idade do Ouro, de Luis Buñuel. São dois
clássicos que definiram a estética surrealista na sétima arte.
Você já ouviu falar deles? Provavelmente, não. São duas obras
interessantes, provocadoras. As cenas são chocantes – de
cara, temos a cena de alguém uma navalha cortando o globo ocular
de uma jovem. É um convite – o que se segue deve ser visto
com um novo olhar, longe dos padrões convencionais. Em outra cena, um homem tenta atacar uma mulher,
mas para ir ao encontro dela, pega, no chão, uma corda. Presos a
esta corda estão dois irmãos de um colégio cristão e dois
pianos de calda de onde emergem cadáveres de burros. Ele arrasta
tais objetos. É o desejo animal e instintivo sendo obstruído
pela religião, pelas responsabilidades que carregamos
voluntariamente e pela morte. É um filme artístico, e por sua proposta de
subverter os padrões estéticos e narrativos do cinema. O filme
rasgou todas as fórmulas desenvolvidas pelos diretores até
então. Sua influência não se restringiu ao cinema,
alcançando, também, os vídeos clipes e comerciais de TV. Sem o
cinema de Buñuel, talvez nem o Casseta e Planeta existiria. Começo falando de cinema por duas razões.
Inicialmente, porque a Universidade Estácio de Sá organizará
um curso sobre cinema e carnaval. E a notícia deste curso me fez
pensar em algo que, talvez passe longe do objeto das aulas que
serão ministradas. E aí vem a segunda razão – ao assistir
o filme de Buñuel, fiquei pensando no samba-enredo como arte e
como produto. Se o cinema é arte e produto, o samba também pode
ser. Existem filmes como os de Buñuel –
artísticos, influenciadores e importantes. Existem filmes para
99% da população, como os da Xuxa, p.ex. E existe um tipo de
filme que, simplesmente, não agrada nem aos fãs de Buñuel, nem
aos da Xuxa. São filmes cuja pretensão é maior do que a
realização. Recebem meia dúzia de aplausos dos chatos que
enxergam arte nas quatro horas de nada projetadas na tela, alguns
elogios em revistas especializadas e... é isso. Provavelmente,
você tem um amigo ou amiga que adora encher a boca para dizer
que viu um filme existencialista do Uzbequistão numa mostra
cultural qualquer. É desse tipo de filme que eu estou falando. Sinceramente, é como se o samba-enredo atual
fosse mais ou menos a mesma coisa – música de péssima
qualidade, irrelevante do ponto de vista cultural. Não consegue
agradar nem aos críticos um pouco mais exigentes, nem ao
público em geral. As vergonhosas vendagens dos CDs mostram que o
público de samba-enredo, além de estar diminuindo, está se
tornando cada vez mais restrito. É um nicho específico de
mercado. Se existe um grupo de pessoas que assiste a estes filmes
pavorosos, sem qualquer qualidade artística ou apelo de qualquer
espécie, agora existe também o público de samba-enredo. E o pior é que esse grupo, além de consumir um
produto de péssima qualidade, ainda se coloca numa postura
arrogante, muitas vezes verificadas nos fóruns de internet.
Vestem a imagem de grandes conhecedores e de sambistas só porque
uma vez por mês visitam uma quadra qualquer para beber. Rodeiam
“famosos” (famosos dentro daquele mercado específico)
para conseguir credibilidade. Incensam compositores medíocres,
grande parte deles componentes das terríveis firmas de samba
enredo, que ganham 20, 30 sambas e não conseguem deixar qualquer
marca na música brasileira. Analisando a história, notamos que nem sempre foi
assim. O samba enredo já teve valor artístico. Já foi
influente, mesmo quando não existia o disco de sambas enredo.
Basta lembrar que foi através do carnaval e do samba-enredo que
figuras como Zumbi dos Palmares, Chica da Silva, Dona Beija e
Chico Rei se popularizaram (e só estou falando de Salgueiro,
hein). Sambas de valor artístico inquestionável, que
influenciaram toda a MPB. Ou vocês acham que clássicos da MPB
como “Vai Passar” ou “Mestre Sala dos Mares”
não pagam tributo aos sambas-enredo? A partir dos anos 70, os sambas-enredo encontram
um público fiel, que ia das camadas mais populares até a classe
média alta. Popularizou-se, tornando-se um dos produtos mais
importantes da indústria fonográfica brasileira. Inúmeros
sambas enredos entraram para a memória coletiva – da mesma
forma que a cena do chuveiro, do filme “Psicose” de
Hitchcock. E hoje? Bem, temos 60, 80 mil que ainda compram os
CDs. Levando-se em consideração que o alcance dos desfiles, os
comerciais e as vinhetas da Globo (que atingem milhões de
espectadores por dia e não fazem qualquer efeito) e o fato de
que todo mundo sabe que existe carnaval e o CD das escolas de
samba, tais números são ridículos. E a vendagem só está neste patamar pela
exposição na mídia. O produto é muito ruim. Não é a toa
que, quando avaliado por críticos de MPB, o CD é massacrado,
não recebendo mais do que um “regular” ou “duas
estrelas”. O CD, para quem não faz parte desse público
específico de samba-enredo, é chato, enfadonho e traz letras
que não tem qualquer ligação com o nosso dia-a-dia. Como
alguém vai se identificar com um samba sobre mitologia nórdica
e bacalhau? Samba-enredo, hoje, é para uns poucos doidos, que
não conseguem mais separar o joio do trigo. Como separar o que
é bom ou ruim se é tudo a mesma coisa, tudo segue a mesma
fórmula, a mesma estrutura? Nenhum dos sambas influencia outros
estilos, nenhum dos sambas sobrevive na voz do povo. O CD de
sambas enredo é o DVD do filme do Uzbequistão. Tem gente que
gosta, não se sabe bem por qual razão. Se ainda está vendendo
o que está vendendo, agradeçam. Porém, a tendência é
diminuir e se tornar, cada vez mais, um estilo musical para um
pequeno grupo. * * * * * Por outro lado, a tecnologia tem sido amiga dos
sambistas. Num gênero condenado ao “descarte”, seja
nos concursos das escolas, onde milhares de sambas-enredo são
eliminados todo ano, seja pela própria máquina criada pela
LIESA, que levou à criação desta fórmula de samba-enredo
previsível e chato, a tecnologia acaba servindo para que
tenhamos como registrar e guardar para sempre grandes sambas que
não tiveram oportunidade de brilhar. E para os “sambistas de internet”,
discos rígidos e CD-Rs repletos de sambas concorrentes hoje são
fatos comuns. Além disso, a própria indústria fonográfica
traz os CDs de sambas de todos os grupos, de todas as cidades,
fazendo com que a cada ano, nosso arquivo de sambas seja maior. Até bem pouco tempo atrás, isso não acontecia.
Se voltarmos aos anos 70, 80 e 90, a coisa ficava restrita aos
discos oficiais. Alguns concorrentes, só aqueles que chamavam
muito a atenção, acabavam em LPs de grandes sambistas -
principalmente, quando estes eram os compositores de tais obras. E se voltarmos mais ainda no tempo, nem estes
registros existiam. Até 1968, os sambas enredo de cada ano não
eram registrados em LP. Foi o sucesso nacional de “Mundo
Encantado de Monteiro Lobato”, que fez sucesso nacional, que
acordou as gravadoras. Antes disso, muita pouca coisa foi
registrada. Um dos poucos exemplos é um disco do Jamelão, que
registrou os sambas campeões e vices dos três grupos de escolas
de samba existentes em 1961, salvando do esquecimento “Seca
no Nordeste”, da Tupy de Brás de Pina. Alguns sambas enredo anteriores a 1968 acabaram
sendo regravados anos depois. Porém, a grande maioria se perdeu.
As escolas de samba nunca tiveram grandes cuidados com suas
histórias. E o resultado é o desconhecimento total, até mesmo
de colecionadores, de uma parcela gigantesca da história dos
sambas enredo. Felizmente, nem tudo está irremediavelmente
perdido. Através da internet, o que se salvou está sendo
disseminado e passado para as novas gerações. Basta observar o
trabalho do SAMBARIO, que disponibiliza para download uma
quantidade gigantesca de sambas enredo obscuros. Vídeos de
desfiles antigos pipocam pelos fóruns de carnaval. A internet está aí justamente para isso. É um
instrumento fascinante. Nunca, na história da humanidade, foi
tão fácil ter encontrar informações. É um universo a ser
explorado. Se por um lado, este poder pode ser mal explorado,
como foi constatado por pesquisadores ingleses, que descobriram
que os trabalhadores chegam a perder o equivalente a dois dias de
trabalho por mês com “navegação inútil”, provocada
pelo mar de informações oferecidas pela grande rede, por outro
lado, nós, sambistas, agora temos um excelente meio para
conseguir ter acesso a raridades ligadas ao samba e ao carnaval. E foi através da internet, por intermédio de um
amigo, que eu tive acesso ao LP “Escolas de Samba em Desfile”.
Neste LP, provavelmente da década de sessenta, três escolas
mostram seus sambas: Império Serrano, Aprendizes de Lucas e...
Padre Miguel. Mocidade Independente ou a Unidos? Não sei.
Infelizmente, as informações do LP são pouquíssimas e
imprecisas. Cada escola mostrou quatro sambas. Os do Império
Serrano, eu descobri facilmente, até porque os conhecia –
“Exaltação a Bárbara Heliodora”, que deu o
vice-campeonato à escola, em 1958; e “Conferência de São
Francisco” ou “Paz Universal”, samba-enredo da
Prazer da Serrinha, comentado por mim na seção de sambas até
1967. Para vocês terem idéia de como as informações deste LP
são imprecisas, no encarte, “Paz Universal” é
intitulado “Brasil Gigante”. Além destes, dois sambas
de quadra aparecem no LP. Já com relação às outras escolas, fica
difícil tecer quaisquer informações. Acredito que nenhum dos
sambas da Aprendizes de Lucas seja samba-enredo. Todos me parecem
sambas de quadra. Um deles é assinado, inclusive, pelo
fantástico Elton Medeiros. Com relação à escola de Padre Miguel, a coisa
é mais engraçada. Dos quatro sambas, três são sambas enredo.
O primeiro, é em homenagem a Carlos Gomes; o segundo fala da
“redentora” Princesa Isabel e da libertação dos
escravos; o terceiro, é sobre os bandeirantes. Nenhum dos sambas
tem assinatura de compositores famosos da Mocidade. Nas listas de
enredos da Mocidade e da Unidos de Padre Miguel existentes nos
sites Academia do Samba e Galeria do Samba, nenhum se encaixa com
as temáticas dos sambas. Não posso nem afirmar de qual escola
de Padre Miguel esses sambas pertencem. De qualquer forma, os sambas estão sendo
disponibilizados e resgatados para o deleite dos amigos leitores.
Quem tiver como saber estas informações entre em contato
conosco. Os links: http://www.4shared.com/file/16745559/23bb5f91/Escolas_de_Samba_em_Desfile_1.html http://www.4shared.com/file/16745910/3711db55/Escolas_de_Samba_em_Desfile_2.html ***** Falando em Padre Miguel e continuando a série de
sambas obscuros que poderiam ter uma sobrevida em discos de
sambistas e de artistas da MPB, disponibilizaremos o samba de
1970, da Unidos de Padre Miguel. A escola desfilou no segundo grupo e conseguiu o vice-campeonato, com um enredo exaltando o poema “Primavera” de Casemiro de Abreu. O samba, apesar da gravação muito cadenciada, com um ar melancólico (típico das gravações da época), tem uma melodia doce e uma letra poética, simples e despretensiosa. Com isto, já temos 3 sambas indicados: o primeiro, o samba da Acadêmicos da Orgia, escola de Porto Alegre, de 1981; o segundo, o samba concorrente de Eduardo Medrado e cia. para o Salgueiro, em 2003; o terceiro, o samba da Unidos de Padre Miguel, de 1970. Em breve, o quarto samba da série. Link: http://www.4shared.com/file/16745007/bfbf4438/03_unidos_de_padre_miguel_70-_primavera.html Abraços a todos! João
Marcos |
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