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Coluna do João Marcos

AS MARAVILHAS DO MAR E AS MARAVILHAS DA SIMPLICIDADE

Em seu novo disco, "O Mar de Sophia", a cantora Maria Bethânia resolveu resgatar um hábito que o pessoal da MPB tinha e que simplesmente desapareceu - gravou um samba-enredo. E escolheu o meu samba preferido, "Das Maravilhas do Mar, fez-se o Resplendor de uma Noite", dos mestres David Corrêa e Jorge Macedo, obra que embalou o desfile portelense em 1981.

A interpretação pode não ser do agrado dos sambistas mais puristas - Bethânia resolveu cantar de forma diferente da versão original, dando maior ênfase a algumas sílabas, tentando, talvez, deixar a faixa mais emocionante. Errou porque a beleza do samba é justamente a sua simplicidade e ela quis complicar.

Foi a simplicidade que tornou este samba atemporal. Você não precisa de sinopse para entender a letra. Você não precisa entender a letra. O samba se sustenta por si só. E é singelo, não precisa de palavras difíceis e de expressões rebuscadas para ser poético. É em tom maior e não tem um traço de oba-obismo. Apesar de alegre e contagiante, é suave e traz a mesma paz que se sente ao olha o mar quando o sol se põe.

Em 1981, a Portela era a grande favorita ao título. Tinha feito desfiles arrebatadores nos anos anteriores e, mais do que isso, ESSE samba. Na avenida, entretanto, muitos erros acabaram tirando a vitória da escola, alguns até por culpa do sucesso do samba - o povo invadiu a avenida, prejudicando a evolução da escola.

É muito provável que este samba tivesse vida curta nos concursos de samba-enredo atuais. Teria de ser cortado logo para a quadra não o abraçar. E mesmo se fosse longe, dificilmente seria escolhido. A escola iria se amedrontar. A letra não quer contar enredo algum, quer passar imagens e sentimentos. Fico imaginando o carnavalesco de uma escola atual olhando para a letra e pensando "não serve, não fala dos cavalos marinhos, nem da poluição do mar, nem de Netuno, não aborda o setor tal. Não conta o enredo."

Justamente por não "contar" o enredo, o samba, 26 anos depois, pôde ser gravado. Não fica estranho ao lado das demais faixas do CD de Bethânia. Não é apenas um samba enredo antológico - é uma obra-prima da música brasileira, como "Aquarela do Brasil" e "É Hoje", sambas que também foram regravados por músicos da MPB.

Eu escuto o CD de 2007 e não consigo pensar em um samba que pudesse ser regravado por um músico da MPB. São sambas que foram feitos para o desfile e pronto. Evidente que samba-enredo tem de ser funcional, mas não precisa ser apenas uma trilha sonora de desfile. Pode sobreviver depois da quarta-feira de cinzas. Só que os sambas deste ano não nasceram para isso.

Para ser eterno, um samba tem de ser simples, assobiável, para grudar na mente e não mais sair. A letra, além de tocar no enredo, tem de tocar na nossa vida. "E lá vou eu, pela imensidão do mar (...)" remete a momentos que cada um de nós viveu, trás a nossa mente imagens que não são apenas alegorias e fantasias.

Pega agora o refrão: "dança quem tá na roda, roda de brincar". Compare com o pavoroso refrão do samba do Salgueiro deste ano, todo em africanismos só para dizer "rapaziada, sou um samba afro, tem de me amar!". Fica fácil de entender porque ninguém irá regravar o samba salgueirense nos próximos 26 anos.

Os sambas atuais são tão complicados e difíceis, tão frios e sem inspiração que realmente não tem como serem eternos. São momentos que passam. "Das Maravilhas do Mar..." é como o primeiro beijo. Os sambas atuais são como o copo de água que você bebeu ontem. De qual momento você se lembrará até o fim da vida?

* * * * *

E se fosse um samba inédito e fosse levado por alguma escola, "Das Maravilhas do Mar..." faria o mesmo sucesso de décadas atrás? Talvez, porém as dificuldades seriam maiores. O apelo comercial dos sambas-enredos foi destruído por tantos erros de estratégia que dificilmente o gênero voltará a ter a mesma atenção de outrora.

O primeiro erro foi a mudança na sonoridade dos discos. A preocupação em tornar as faixas dos LPs e dos CDs com sonoridade próxima a dos desfiles fez os sambas ficarem mais difíceis de escutar para aqueles que não estão acostumados. Eu pego com marco nessa mudança de sonoridade o LP de 1993, com a bateria mais pesada e andamento mais acelerado que a dos anos anteriores. Para notar isso, é interessante pegar um CD que o McDonald's distribuiu anos atrás com os sambas campeões de 79 a 98. Os sambas foram ficando com uma sonoridade pesada demais, de audição exaustiva, que não desce bem ao lado das músicas que normalmente tocam nas FMs. Justamente o oposto do que ocorre com o carnaval baiano. A ligação de um Daniela Mercury ou de uma Ivete Sangalo com a programação das FMs era tão próxima que o "crossover" foi fácil. Já os sambas-enredo se afastaram cada vez mais dos demais gêneros musicais. Tornou-se um 'nicho' específico demais.

Outro fato importante para acabar com os sambas-enredo foi a proliferação dos pagodeiros "mauricinhos", que venderam muitos CDs na década de 90, mas que deram uma imagem de "brega" aos sambistas. Você, que gosta de samba-enredo, já deve ter sentido na pele o preconceito que vem junto com este rótulo. Antes do pagode mauricinho, samba não era brega. Era poesia popular. Até hoje, gostar de Cartola é 'chique'. Porém, o pagode mauricinho mexeu com a imagem que a classe média tinha do carnaval. E o problema é que a ligação foi oficializada em 1999, quando Belo e Alexandre Pires foram "ajudar" Neguinho e Jamelão no CD dos sambas enredos do ano. Estratégia de Marketing inacreditavelmente péssima.

Os sambistas que continuam fazendo sucesso e que não receberam o rótulo de brega, com Martinho e Zeca, em seus CDs, cada vez mais utilizam produções suaves, sem muitas afetações, sem perder a identidade de sambista e sem parecer "alienígenas" junto à programação das FMs.

Aliás, interessante notar que, antigamente, as gravadoras apostavam em intérpretes e compositores de samba-enredo e sambistas ligados a escolas. O último a ter alguma exposição foi Wander Pires, que teve um sucesso na linha do pagode mauricinho e... só.

Por fim, a complexidade imposta pelo carnaval técnico tirou qualquer ligação dos sambas enredo com o nosso dia-a-dia. As letras do tipo "resumo de sinopse", com seus "pinballs" e outras expressões estapafúrdias, aliadas a uma sonoridade que não se preocupa com os que não são iniciados ao gênero tornam os sambas-enredo coisa de um grupo cada vez mais fechado de apaixonados.

Por isso, dificilmente um samba atual fará muito sucesso fora do desfile. Para melhorar a imagem, só mesmo começando a premiar a qualidade, a inspiração e a emoção, o que parece distante em 2007. Talvez assim, algum ídolo da MPB volte a regravar sambas-enredo, dando a sobrevida que tornará as obras imortalizadas na mente das pessoas - mesmo aquelas que não vivem carnaval o ano todo. Talvez assim, a platéia poderá cantar junto com as escolas. Sonhar não custa nada...

Abraços a todos!

João Marcos
joaomarcos876@yahoo.com.br