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História & Samba

DAS CINZAS À RECONSTRUÇÃO

15 de fevereiro de 2011, nº 3, ano II

O samba nascido da adversidade sabe como ninguém transformar pesadelos em sonhos, dor em arte. O potencial regenerador do carnaval é uma das marcas mais latentes desta festa. Festa construída de gente que supera inúmeras adversidades para transformar os percalços do dia-a-dia em sorriso. Talvez por isso o carnaval carioca seja tão apaixonante.

A segunda-feira de cinzas, como já ficou conhecido o fatídico dia do incêndio na cidade do samba entre os sambistas, revelou feridas já detectadas, mas talvez nem sempre cicatrizadas. A opulência da festa não se encontra somente na parte plástica, mas principalmente no samba no pé e na alegria de desfilar do componente.

Ah Serrinha, tu me disse um dia que as “Super Escolas de Samba S.A, super alegorias, escondiam gente bamba... Que covardia!”. Tudo tão luxuoso, tão brilhante que escondeu o mais importante, as pessoas que carregam a fantasia. E quando queima a fantasia, como fazemos? Não fazemos?

Liberta esse nó da garganta, vem cantar
Pra poder melhorar, tem que lutar
Vai dar a luz à esperança

A mesma Ilha, hoje tão afetada por ter perdido quase todas suas fantasias, em 1999 teve seu barracão arrasado pelo fogo comprometendo o seu carnaval da época. Mas bravamente a escola insulana entrou na Avenida e superou-se.

Os barracões com quase nenhuma infra-estrutura do centro da cidade do Rio eram verdadeiras bombas-relógio que explodiam a qualquer momento. Em 2001 a Imperatriz, após um incêndio em seu barracão trouxe alegorias que exalavam cheiro de queimado. Lembro-me da então carnavalesca da Imperatriz, Rosa Magalhães à época da construção da Cidade do Samba, falando de sua preocupação com um possível incêndio, dada a proximidade dos barracões na nova fábrica do carnaval.

O incidente aconteceu no lugar em que não poderia acontecer. O lugar feito para dar segurança ao devaneio dos sambistas foi pelos ares. Quatro barracões, três agremiações e um sonho, o de brilhar a Avenida. Vieram as lágrimas que logo se transformaram em suor. E não duvide de suor de sambista de fato... Suor de sambista de fato ergue pirâmides egípcias em um mês e castelos medievais em uma semana. Mas se não der para erguer nada, dada a calamidade da tragédia, sambista de fato se ergue sem fantasia nenhuma.

O maior valor do carnaval não pode estar em seu rococó desvairado brilhante, o maior valor do carnaval está em sua gente que faz o samba acontecer. Isso nitidamente já era sentido nas escolas de samba, que gradativamente estavam tentando valorizar o componente e diminuindo a fantasia. Um novo paradigma no carnaval estava sendo criado, o da alegria. Mas tudo isso era um processo lento e esbarrava em tantas plumas e tantos paetês. Eis que os deuses do carnaval nos colocam esse pedregulho em nosso caminho, talvez querendo que nós façamos outros caminhos.

O carnaval não tem mais para onde crescer, se expandir. Falta ao carnaval um crescimento interno, dentro de suas comunidades. As escolas de samba nascidas de elos comunitários foram cruelmente devoradas por ditadores, deixando até mesmo a democracia de lado em muitos casos. O carnaval carioca que é hoje, foi construído pelo folião e deve ser dirigido pelo folião. Grandes líderes, para o bem e para o mal caem de seus tronos, mas a instituição fica. Tudo passa, o incêndio, a inundação, a dor, presidentes... O que fica é a história que o samba construiu em cada um de nós.

Profeta faz nascer
Do fogo alvorecer
Irmão Sol, a verdade é você

O carnaval de 2011 que tinha tudo para ser mais uma disputa do luxo, poder e riqueza pode sagrar-se como o carnaval do humano, do simples e da reconstrução. A Grande Rio, maior afetada neste incidente tem um belo enredo de exatos 10 anos atrás para inspirar-se: Gentileza X, o profeta saído do fogo.

Já fui em muitos ensaios técnicos na Sapucaí, mas nenhum me emocionou tanto quanto o da União da Ilha no último fim de semana, aonde tive a idéia de escrever essa coluna. Foi arrepiante a força e a garra do componente insulano. A frase exposta numa faixa no início do ensaio vai ecoar na minha cabeça nesse carnaval: “Um pouco com Deus é muito".