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O
SAMBA-ENREDO CARIOCA NA ERA PRÉ-SAMBÓDROMO por Marco
Maciel
As primeiras formas do samba
carioca foram geradas pela comunidade negra do Centro do Rio de
Janeiro. A casa de tia Ciata, próxima à Praça Onze (local onde
ocorriam os mais antigos desfiles), é considerada o local de
nascimento do samba na capital carioca. Na residência, um centro
de música - onde se tocava choro e se cantavam vários tipos de
samba, especialmente o partido alto - e de candomblé, nasceu Pelo
Telefone, o primeiro samba gravado (ano de 1917), de autoria
de Donga e Mauro de Almeida. Naquela época, as rodas de samba
eram vistas pela polícia mais como uma reunião criminosa, um
ato de vagabundagem, do que uma manifestação cultural. Nos
morros do centro da cidade, especialmente no bairro do Estácio,
o samba começava a ganhar a forma que o tornaria conhecido em
todo o país, distanciando-se cada vez mais de outros ritmos como
o maxixe e a marcha.
A primeira escola de samba, na
verdade, nunca foi uma escola de samba. Fundada por compositores
do morro do Estácio como Ismael Silva e Bide em 12 de agosto de
1928, a Deixa Falar era apenas um bloco carnavalesco. Mas, por
ter sido fundado por sambistas considerados professores daquele
novo tipo de música, ganhou o título de escola de samba.
Ismael, Bide e companhia, os criadores da Deixa Falar, difundiram
o samba por vários bairros do Rio. No ano seguinte, Cartola e
Carlos Cachaça transformariam o Bloco dos Arengueiros em
Estação Primeira de Mangueira. O primeiro desfile oficial das
escolas acontece em 1932, com quatro agremiações. A Mangueira
vence com o enredo A Floresta. A Deixa Falar, que
realiza um desfile desastroso como rancho, é extinta. Mesmo com
a curta existência, deixa um eterno legado aos sambistas,
espalhando sua arte pela cidade, dando início a uma nova forma
de brincar o carnaval, lançando instrumentos como o surdo e a
cuíca, indispensáveis na percussão da bateria. Em 1º de maio
de 1934, o delegado de polícia Dulcídio Gonçalves sugere ao
compositor Paulo Benjamin de Oliveira que mude o nome de sua
escola Vai Como Pode. Nascia assim, a Portela.
Nos primeiros anos dos desfiles
das escolas de samba, a trilha sonora não era exatamente um
samba de enredo. O que era cantado na antiga Praça Onze eram
sambas de quadra ou de terreiro, e apenas com a primeira parte
pronta, o refrão. A segunda parte era feita na base do
improviso, com os versos vindo de cabeça na hora. A
improvisação passou a ser proibida a partir de 1946, e para o
enredo da escola Prazer da Serrinha denominado Conferência
de São Francisco, os compositores Silas de Oliveira e Mano
Décio da Viola fazem aquele que é considerado o primeiro
samba-enredo da história, com a letra se enquadrando
perfeitamente nas exigências do gênero: Restabeleceu
a paz universal Porém, o presidente da Prazer da Serrinha, em cima da hora, trocou a obra de Silas e Décio por um samba de terreiro, o que ocasionou num desastre a apresentação da escola. A crise estabelecida originou, no ano seguinte, a criação de uma nova escola: o Império Serrano. Em 1949, morria Paulo Benjamin de Oliveira, o popular Paulo da Portela. Seu enterro foi acompanhado por uma multidão de 15 mil pessoas.
No mesmo ano, o Império Serrano
apresentaria o enredo Exaltação a Tiradentes. Em uma
época que, em função de divergências, dois desfiles oficiais
ocorriam devido à existência de duas ligas das escolas de
samba, a escola da Serrinha vencia o oficial - subvencionado pela
Prefeitura - cantando este samba-enredo: Joaquim José
da Silva Xavier Seis anos depois, Tiradentes
seria o primeiro samba de enredo gravado por um artista popular:
o cantor Roberto Silva. Nos primórdios, era este o formato da
letra da trilha sonora dos desfiles: pequena e simplória, com a
história sendo contada de forma direta, sem tanta poesia. Já
nos anos 50, as letras foram tendo seus tamanhos elevados. A
melodia se destacava pelo lirismo e a poesia já era mais
marcante. Os refrões, tão característicos nos sambas de hoje,
não apareciam com tanto destaque. Era mais comum a cabeça do
samba ser formada por um "lalalaiá" - bastante usado
pelo Império Serrano -, presente nos sambas-enredo até o
início dos anos 80. Em 1953, é fundado, após a fusão de três
escolas, o Acadêmicos do Salgueiro. O bloco das quatro grandes,
que reinaria até a primeira metade da década de 70, estava
completo: Mangueira, Portela, Império Serrano e Salgueiro.
Ao longo dos anos, os locais de
desfiles variavam entre a Praça Onze e as avenidas Presidente
Vargas, Rio Branco e Antônio Carlos. Em 1960, o lendário
carnavalesco Fernando Pamplona encontrava dificuldades para
desenvolver o enredo Quilombo dos Palmares. O tema
representava uma quebra de protocolo, já que os enredos, na
ocasião, retratavam sempre fatos e personagens históricos,
principalmente fazendo referências a monarcas. No desfile, os
negros teriam que se fantasiar de escravos, ao invés de se
apresentarem como reis, rainhas, duques, etc. "O povo das
escolas de samba, desempregado ou mal pago em seus trabalhos, já
era escravo o ano inteiro. Por que ser escravo também no
carnaval?", questiona o jornalista Sérgio Cabral em seu
livro As Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Apesar
disso, Pamplona e sua equipe convenceram os sambistas e o
Salgueiro desfilou com um dos primeiros enredos afro da história
(a mesma escola já havia apresentado o tema Navio Negreiro,
em 1957), conquistando o seu primeiro título (ainda assim,
dividido com outras quatro escolas). A partir daí, muitos
enredos evidenciando a cultura negra despontariam nos desfiles.
Os anos 60 são considerados os anos de ouro em termos de
sambas-enredo, oriundas dessa época as maiores obras-primas do
gênero. Em 1961, a escola Tupy de Brás de Pina subiria para o
Primeiro Grupo com um samba intitulado Seca no Nordeste.
Apesar do samba-enredo ter desfilado no obscuro Grupo de Acesso,
a música acabou popularizada através de uma gravação do
célebre intérprete Jamelão no ano seguinte ao desfile da Tupy.
Artistas como Clara Nunes, Abílio Martins, Fagner e Mestre
Marçal também o regravaram. O comentarista do site SAMBARIO,
João Marcos, dá o seu parecer sobre Seca no Nordeste:
"Um dos cinco melhores de todos os tempos na minha opinião.
Basta ler os versos para se ter noção da beleza desta letra,
que consegue passar sentimento como poucos sambas-enredo da
história", elogia. Abaixo, um trecho de sua letra: No auge do
desespero
No Primeiro Grupo, a cada ano, o
público que via os desfiles era agraciado com sambas de enredo
de extrema qualidade. Letras quilométricas, melodias pesadas e o
andamento lento da bateria eram mais do que comuns nos anos 60. A
Mangueira apresenta os melhores sambas do Grupo Especial dos anos
de 1961 (Rio Antigo) e 1962 (Casa Grande e Senzala),
sempre cantados pelo já veterano José Bispo Clementino dos
Santos, o Jamelão. Em 1963 e 1964, é a vez do Salgueiro
desfilar com dois belos sambas (Chica da Silva e Chico
Rei, respectivamente). Brasil, essas
nossas verdes-matas
A genialidade de Silas de
Oliveira faria com que o compositor ganhasse o concurso de
sambas-enredo do Império Serrano até o ano de 1969,
enfileirando uma seqüência de sambas históricos. Em 1965, é o
autor, ao lado de Dona Ivone Lara (primeira mulher a se consagrar
no gênero) e Bacalhau, de outra obra-prima: Os Cinco Bailes
da História do Rio. No ano seguinte, a Portela ganha com o
enredo Memórias de um Sargento de Milícias, cujo samba
foi o único que Paulinho da Viola fez para sua escola de
coração. Em 1967, a Mangueira se sagra campeã com o clássico O
Mundo Encantado de Monteiro Lobato (primeiro que fez sucesso
nacional, graças a uma regravação da cantora Eliana Pitman).
Neste ano, Martinho José Ferreira compõe seu primeiro samba
para a Unidos de Vila Isabel, se imortalizando como Martinho da
Vila. Em Carnaval das Ilusões, considerado o primeiro
enredo imaginário, Martinho utilizou a seguinte cantiga como
refrão principal: Ciranda
cirandinha Os jurados não aprovaram a
inovação de Martinho, lhe concedendo notas baixas no quesito
samba-enredo. Um desses jurados era o jovem Chico Buarque de
Holanda. Com Carnaval das Ilusões, Martinho iniciava uma
seqüência de triunfos nos concursos na Vila, introduzindo uma
modernização no formato do samba-enredo, o que inclui melodias
mais leves, de andamento mais rápido e letras menos caudalosas.
É em 1968 que, pela primeira
vez, os sambas das escolas do Rio são gravados e reunidos em um
LP (nos primeiros anos, dois discos eram lançados - do Museu de
Imagem e Som e da gravadora Codil, cada um contendo os
sambas-enredo a serem apresentados pelas escolas do Grupo
Especial), com qualidade da gravação precária, pois os
registros eram feitos ao vivo, utilizando poucos instrumentos de
bateria, apostando na voz do intérprete na primeira passada
(praticamente à capela, acompanhado apenas por um tamborim e um
pandeiro) e, na segunda, com a marca das carregadíssimas vozes
das pastoras (tendo a bateria, bastante cadenciada, ao fundo). A
Mangueira ganhou com o lindo Samba, Festa de um Povo. Neste mesmo
ano, a recém fundada Unidos de Lucas canta um dos maiores
primores de sambas-enredo em todos os tempos: Sublime
Pergaminho. O samba, que conta a história do negro no
Brasil, investe na poesia e no lirismo, dividindo a melodia em
duas partes. Na primeira, entoada em tom triste, aparecem os
infortúnios sofridos pelo negro desde a viagem nos navios
negreiros até o auge da escravidão. E na segunda, em tom de
celebração, a abolição é emocionantemente comemorada. A
música foi eternizada por uma regravação de Martinho da Vila
(autor de outro excelente samba-enredo em 68, Quatro Séculos
de Modas e Costumes, para a Vila Isabel). Eis um trecho da
letra, uma das melhores da história do carnaval. Quando o
navio negreiro 1969 é considerado, com
justiça, o ano da melhor safra de sambas-enredo de todos os
tempos. Praticamente todas as obras possuem qualidade gigantesca.
Com destaque maior aparecem Brasil, Flor Amorosa de Três
Raças, talvez o samba mais poético e lírico de todos
(empatando nesses aspectos com Primavera, cantado pela
Mangueira em 1955) e o melhor da história da Imperatriz
Leopoldinense; Yayá do Cais Dourado da Vila Isabel; Treze
Naus, da Portela (que, no disco, ganha uma legendária
atuação do saudoso intérprete Silvinho do Pandeiro e das
pastoras portelenses); e Bahia de Todos os Deuses, do
Salgueiro. Este último (reeditado pela Tradição em 2006)
quebrou a escrita existente até então de que nunca um enredo em
homenagem à Bahia ganharia o carnaval. O Salgueiro não só
conquistou o campeonato como também lançou provavelmente o
primeiro refrão de sucesso no gênero samba-enredo, fora o
andamento rápido da melodia - incomum na época. Até hoje, o
Brasil canta esse refrão: Negra baiana Na época do carnaval de 1969, a
ditadura militar atingira o seu auge. Recém o Ato
Inconstitucional número 5 havia sido promulgado, acabando com
qualquer resquício de democracia no Brasil, acarretando a
tirania e opressão dos militares contra quem se opusesse ao
regime. E eis que entra em cena novamente Silas de Oliveira,
juntamente com seu eterno parceiro Mano Décio da Viola mais
Manuel Ferreira. Eles ganham o concurso de samba-enredo do
Império Serrano, que apresentará na avenida o enredo Heróis
da Liberdade. As autoridades militares não gostam dos
seguintes versos: Ao longe,
soldados e tambores O secretário de Segurança do
então Estado da Guanabara, general França, e seus asseclas
estavam particularmente preocupados com esse trecho porque a
ditadura militar ainda não se recuperara do susto levado com a
"passeata dos 100 mil", realizada em 1968 sob a
liderança dos estudantes pela volta da democracia no país.
Silas, Décio e Ferreira alegavam que a descrição nada tinha a
ver com fatos recentes e que tudo fora retirado de livros de
História do Brasil. Depois de muita conversa, os compositores
tiveram de substituir a palavra "revolução" por
"evolução", o que em nada prejudicou no entendimento
da mensagem passada na letra. Heróis da Liberdade, pela
emoção contida a cada verso - seja na poesia ou na melodia -,
é, na minha humilde opinião, o melhor samba-enredo da história
do carnaval. O comentarista do SAMBARIO, João Marcos, coloca que
Heróis representa um daqueles momentos em que o homem
chegou perto da perfeição divina. "Heróis da
Liberdade, no gênero samba-enredo, é o equivalente à Mona
Lisa na pintura ou à Nova Sinfonia de Beethoven na música
clássica. Se os compositores atuais escutassem isso e fizessem
uma autocrítica, ficariam envergonhados", afirma.
Um fato melancólico ocorreu ainda em 1969. Ismael Silva,
fundador da dita primeira escola de samba Deixa Falar, fora
ignorado pelo secretário de Turismo da Guanabara, Levi Neves,
que sequer o recebeu quando Ismael o procurou para pedir um
ingresso. Sem ser reconhecido, Ismael Silva não conseguiu
assistir ao espetáculo que ajudou a criar quatro décadas antes
por não ter dinheiro para comprar uma entrada. A década de 60
encerrou-se com o último título conquistado individualmente
pela Portela (dividiria os de 1980 e 1984), que apresentou em
1970 o enredo Lendas e Mistérios da Amazônia
(excelente samba, que seria reeditado em 2004 pela escola). Claro
que não devemos desprezar também outras obras que despontaram
neste ano, como os belíssimos Oropa, França e Bahia da
Imperatriz e Glórias Gaúchas da Vila Isabel (o refrão
usado por Martinho da Vila era o da cantiga Prenda Minha).
Em 1970 que, pela primeira vez, foram registrados em disco os
sambas do Grupo de Acesso (pela gravadora Caravelle, que também
assumira, naquele mesmo ano, o disco do Grupo Especial em
substituição à Codil).
Os anos 70 marcariam a transição dos sambas de letra extensa e
poesia exagerada para obras com a quantidade de versos bem
reduzida, aliada a melodias mais leves. Os refrões se tornariam,
a partir daí, o ponto forte do samba-enredo, sendo vitais para o
funcionamento do samba na avenida. Se em 1969, tivemos um
avant-premiére salgueirense com o "zum zum zum,
capoeira mata um", dois anos depois a mesma escola
revolucionaria de vez o gênero com o samba escolhido para o
enredo Festa para um Rei Negro. O compositor Zuzuca,
pela primeira vez, deu prioridade ao refrão, o tornando um
verdadeiro fenômeno. Quem nunca ouviu ou cantarolou os seguintes
versos? Olelê,
olalá A composição de Zuzuca reunia
as características da música tradicional do carnaval (que desde
o início da década de 60 se encontrava em decadência), sem
quase nada do samba-enredo tradicional. Descoberto pelos
veículos de comunicação bem antes do carnaval, a gravação de
Festa para um Rei Negro passou a ser executada pelas
emissoras de rádio e o seu autor foi convocado para cantá-lo na
Discoteca do Chacrinha, o programa mais popular da
televisão brasileira na ocasião. O samba do Salgueiro foi a
música mais cantada no verão carioca de 1971, quando poucos a
conheciam pelo nome verdadeiro, mais pela expressão "Pega
no Ganzê".
A revista O Cruzeiro dedicou várias páginas às
mudanças do samba-enredo, assinalando que as inovações eram
sinais de que "as escolas de samba entraram definitivamente
na era da comunicação de massa", e acrescentou que "o
samba-enredo tradicional, longo e pesado, traz problemas quase
insolúveis para a sua divulgação radiofônica em horários que
não sejam exclusivamente dedicados ao samba". Dominguinhos
do Estácio, um dos mais populares intérpretes de samba-enredo,
diria seis anos depois que o gênero nunca mais seria recuperado.
"O negócio agora é agüentar o refrão e jogar pra frente.
Samba-enredo com poesia pura, sem apelação, não cola
mais", afirmou. Mesmo com tais mudanças anunciadas, 1971
ainda apresentou algumas obras-primas, como Rapsódia de
Saudades (o melhor samba da história da Mocidade), Lapa
em Três Tempos (Portela, cujo refrão era o contagiante
"Abre a janela, formosa mulher..."), O
Misticismo da África ao Brasil (Império da Tijuca, cuja
regravação pelo conjunto MPB-4 o tornou célebre) e Nordeste,
seu Povo, seu Canto, sua Gente (Império Serrano, eternizado
pela voz do lendário Roberto Ribeiro, considerado um dos
melhores intérpretes de todos os tempos).
Em 1972, o efeito-ganzê
contagiou as escolas. Praticamente todas as agremiações
desfilaram naquele ano com sambas de letra curta, sem poesia e
com refrões de efeito. O Império Serrano foi bem sucedido e,
com o enredo Alô, Alô, Taí Carmem Miranda, voltou a
vencer o carnaval depois de doze anos. O samba-enredo da escola
era tenebroso, repleto de gírias como "que grilo é
esse/vou embarcar nessa onda", apostando no pegajoso
refrão "cai, cai, cai, cai, quem mandou escorregar/cai,
cai, cai, cai, é melhor se levantar". O grande Silas
de Oliveira, derrotado no concurso do Império, morreria no dia
20 de maio de 1972 desgostoso com o novo formato de samba-enredo.
O Salgueiro novamente colocou Zuzuca em ação e levou para a
Presidente Vargas um samba sustentado por refrões e que fazia
uma polêmica exaltação à "madrinha" Mangueira. Mas
o fenômeno do carnaval anterior não se repetiu. Eis o principal
trecho: Ô ô ô, oh
meu Senhor A safra de 1972 também
apresenta suas obras-primas, como o inigualável Onde o
Brasil Aprendeu a Liberdade (Vila Isabel), o curto e
emocionante Ilu Ayê (Portela), o popular e marcante Martim
Cererê (Imperatriz, presente na trilha sonora da novela
global Bandeira Dois) e o vencedor do Estandarte de Ouro
do jornal O Globo (a tradicional premiação estreava
neste ano) Rio Grande do Sul na Festa do Preto Forro
(Unidos de São Carlos, consagrado por uma regravação da então
novata Beth Carvalho). No carnaval seguinte, destaque apenas para
o belíssimo O Saber Poético da Literatura de Cordel,
da novata Em Cima da Hora, e Lendas do Abaeté, da
campeã Mangueira. A partir de 1973, os discos de sambas-enredo
passaram a ser produzidos pela gravadora Top Tape, acarretando
uma considerável melhora nos arranjos.
Desde 1959, desfilava no Grupo Especial uma agremiação até
então pouco badalada no mundo carnavalesco. Costumava-se dizer
que se tratava de uma bateria cercada por uma escola de samba.
Era a Mocidade Independente de Padre Miguel, cujos ritmistas eram
regidos pelo Mestre André, que os comandava com uma batuta de
maestro. As notas recebidas no quesito pela Mocidade sempre eram
dez, graças às envolventes paradinhas e às mudanças de
andamento, que levavam o público nas arquibancadas ao delírio.
Com o investimento do bicheiro Castor de Andrade, a escola
passaria, a partir de 1974, a brigar pelo título. A Mocidade,
por sinal, também caprichou no samba-enredo com o excelente Festa
do Divino, cantado na avenida pelo estreante na escola Ney
Vianna (que se identificaria como nunca com a agremiação de
Padre Miguel) e pela consagrada Elza Soares. A Em Cima da Hora
novamente desfilaria com um lindo samba: A Festa dos Deuses
Afro-Brasileiros.
Também em 1974, a Portela causou polêmica ao ignorar a sua ala
de compositores a fim de incumbir à dupla Jair Amorim e Evaldo
Gouveia, consagrados autores de boleros, a missão de compor o
samba portelense para o enredo O Mundo Melhor de Pixinguinha.
Apesar da briga interna na escola, o que provocaria
conseqüências graves anos mais tarde, Jair e Evaldo presenteou
os bambas com o extraordinário e popular Pizidim. O Salgueiro,
porém, voltaria a vencer o carnaval com o tema O Rei da
França na Ilha da Assombração. Convém não esquecer
também do Grupo de Acesso de 74, onde desfilaram dois sambas de
pura beleza: Lendas e Festas das Yabás (União da Ilha,
regravado por Elza Soares) e Essa Nega Fulô (Tupy de
Brás de Pina). O bicampeonato salgueirense viria com O
Segredo das Minas do Rei Salomão, consagrando
definitivamente o então novato carnavalesco Joãosinho Trinta.
Três sambas de enredo se destacaram em 1975: Macunaíma
(Portela), Nos Confins de Vila Monte (União da Ilha) e A
Festa do Círio de Nazaré (Unidos de São Carlos, reeditado
pela Viradouro em 2004), dono do talvez mais emocionante refrão
de todos os tempos: Oh, Virgem
Santa Naquela época, uma obscura
escola de Nilópolis, município a 27 quilômetros da capital,
chamava a atenção por apresentar enredos que exaltavam o regime
militar. A Beija-Flor, que na época oscilava entre o Primeiro e
o Segundo Grupo, desfilou por três anos consecutivos com temas
como Educação para o Desenvolvimento (1973), Brasil
Ano 2000 (1974) e O Grande Decênio (1975), que
celebrava os dez anos do regime militar iniciado em 1964, cujo
samba-enredo trazia versos inusitados como estes: Lembrando PIS
e PASEP Em 1976, a Beija-Flor, graças
ao bicheiro Anísio Abrahão David, resolveu investir pesado a
fim de conquistar seu primeiro campeonato. Vieram, do bicampeão
Salgueiro, Joãosinho Trinta e o diretor de harmonia Laíla. O
enredo Sonhar com Rei dá Leão, que contava a história
do jogo do bicho, teve seu samba composto e puxado pelo estreante
Luís Antônio Feliciano Marcondes. Por esse nome, ninguém
conhece. Mas todos assimilarão sua identidade a seu popular
apelido: Neguinho da Beija-Flor. O intérprete novato chamou a
atenção por convidar o público a cantar o samba, através da
introdução do grito de guerra na avenida com o marcante
"Olha a Beija-Flor aí, gente!". Com um luxo nunca
visto antes nos desfiles das escolas de samba, a Beija-Flor
sobrou nas apresentações e conquistou seu primeiro campeonato.
A safra de sambas-enredo de 1976
é extraordinária. Destacam-se o popularíssimo No Reino da
Mãe de Ouro (Mangueira), Mãe Menininha do Gantois
(Mocidade), A Lenda das Sereias - Rainha do Mar
(Império Serrano, reeditado pela Inocentes de Belford Roxo em
2006, cuja regravação de Marisa Monte fez muito sucesso), Arte
Negra na Legendária Bahia (Unidos de São Carlos, reeditada
pela hoje Estácio em 2005) e Mar Baiano em Noite de Gala (Unidos
de Lucas, reeditado de forma espetacular pela escola em 2005).
Mas nenhum outro samba é superior ao esplendoroso Os
Sertões. Sempre presente na lista dos melhores sambas de
todos os tempos, a obra-prima da Em Cima da Hora, composta por
Edeor de Paula, destaca-se não só pela primorosa letra como
também pela triste e inspirada melodia. O comentarista do
SAMBARIO, João Marcos, dá uma definição direta para Os
Sertões: "O samba mais perfeito da história do
carnaval carioca". Apesar da beleza inquestionável do
samba-enredo, a Em Cima da Hora realizou um desfile infeliz e
acabou rebaixada de grupo. Reza a lenda que, por mais incrível
que possa parecer, o samba não rendeu na avenida. Eis sua letra
na íntegra: Marcado pela
própria natureza
A Beija-Flor reinaria absoluta
nos dois carnavais seguintes, levando os títulos de 1977 e 1978
com os enredos Vovó e o Rei da Saturnália na Corte
Egipciana e A Criação do Mundo na Tradição Nagô.
Enquanto isso, a União da Ilha do Governador começava, com a
sua clássica fórmula do bom, bonito e barato, a cativar o
público com seus desfiles e sambas alegres. Desde 1975 no Grupo
Especial, venceu o Estandarte de Ouro em 77 com o belíssimo Domingo
e, no ano seguinte, cantou O Amanhã, que se tornaria
uma das canções mais conhecidas da música popular brasileira
graças a uma regravação da cantora Simone (sendo reeditado
pela Boi da Ilha em 2006). Dá perfeitamente para acompanhar a
letra cantarolando: A cigana leu
o meu destino A partir do álbum de 1978, o
formato da gravação da bateria nos discos de sambas-enredo
seria o que predomina até hoje: com os tamborins em destaque.
Até o disco de 1977, a bateria possuía um som bem mais distante
e inexpressivo, onde se destacavam apenas os pandeiros, surdos
(de forma discretíssima) e, é claro, os agogôs - tocados de
uma maneira bem tradicional. O cavaco e a cuíca, obviamente,
sempre estiveram presentes. O LP de 78 inaugurava no disco o
balanço da bateria de escola de samba que hoje todos conhecem.
Este mesmo ano marcou a estréia da Avenida Marquês de Sapucaí
como palco dos desfiles. Os cariocas sonhavam, desde o início da
década, com um lugar definitivo para a realização do
espetáculo, não suportando mais a trabalheira provocada pelo
monte e desmonte das arquibancadas de madeira, o que perturbou
por vários meses em todos os anos a vida no Centro do Rio. Mais
alguns sambas que se destacaram no fim da década de 70: Brasil,
Berço dos Imigrantes (Império Serrano-1977), De
Yorubá à Luz, a Aurora dos Deuses (Salgueiro-1978),
Incrível, Fantástico, Extraordinário (Portela-1979) e O
Que Será? (União da Ilha-1979). O mestre Ismael Silva
falecia em 14 de março de 1978. A Mocidade, em 1979, quebrou a
hegemonia da Beija-Flor ao vencer pela primeira vez o carnaval
com o enredo O Descobrimento do Brasil.
Também era tradição os desfiles das escolas de Niterói. As
duas principais agremiações da cidade, Acadêmicos do Cubango e
Unidos do Viradouro, travavam envolventes disputas pelo título.
Os sambas-enredo, principalmente da Cubango, eram formidáveis.
Compositores como Flavinho Machado, Heraldo Faria e João Belém
fizeram obras-primas de letras e melodias primorosas que só
estão vindo à tona graças aos sites de internet, em função
da dificuldade em encontrar, nos balaios, os discos dos sambas de
Niterói. Afoxé (1979), Esse Nosso Mundo Mágico (1980)
e Fruto do Amor Proibido (1981) são sambas que qualquer
compositor gostaria de compor. Feliz foi a Cubango, que desfilou
com tais obras. As duas escolas passariam a desfilar no Rio de
Janeiro anos mais tarde, com a Viradouro tornando-se mais bem
sucedida e a Cubango se mantendo no Segundo Grupo.
Em 1980, numa mágica safra de sambas, três escolas dividiram o
título: Portela (Hoje tem Marmelada?), Beija-Flor (O
Sol da Meia-Noite, uma Viagem ao País das Maravilhas) e
Imperatriz (primeiro título, com o tema O Que que a Bahia
tem). Fomos agraciados ainda, em 80, por sambas como Bom,
Bonito e Barato (União da Ilha) e o clássico Sonho de
um Sonho (Vila Isabel), outra obra-prima de Martinho da
Vila, imortalizada pelos seguintes versos: Sonhei que
estava sonhando A década de 80 chegava com o
auge da discussão sobre a construção de um local definitivo
para a realização dos desfiles. O formato do samba não seria
tão apelativo como no começo dos anos 70, mas os sambas-enredo
teriam, como característica, um estilo mais leve e
descontraído. Em 1981, a Imperatriz conquistava seu primeiro
título de maneira isolada com o enredo O Teu Cabelo não
Nega (Só Dá Lalá), uma homenagem ao compositor Lamartine
Babo. Mas o melhor samba do ano foi levado pela Portela: Das
Maravilhas do Mar, Fez-se o Esplendor de uma Noite, obra com
todo o estilo alegre do compositor David Corrêa, consagrado na
Portela e que sabia mesclar como ninguém animação com lirismo
em um samba-enredo. A obra portelense de 81 foi recentemente
regravada por Maria Bethânia.
1982 é simbolizado por dois sambas. É Hoje (União da
Ilha) é um dos clássicos mais conhecidos da nossa música e
regravado por muitos artistas, mas nada como acompanhar na voz do
legendário intérprete Aroldo Melodia (famoso pelo grito de
guerra "Canta minha Ilha! Hahai! Segura a marimba!") os
famosos versos abaixo: É hoje o dia
da alegria e a tristeza Já o samba-enredo Estandarte de
Ouro e campeão daquele ano foi levado pelo Império Serrano. Seu
título: Bumbum Paticumbum Prugurundum, inspirado na
forma onomatopéica de como Ismael Silva representava, com a
boca, o som da bateria, em entrevista concedida ao jornalista
Sérgio Cabral. Já no distante início da década de 80, as
novas mentes que comandavam o carnaval carioca eram duramente
criticadas. Ainda que elas se resumam a apenas quatro versos da
imensa letra da composição de Beto Sem Braço e Aluisio
Machado, ela marcou de maneira a citarmos como exemplo até hoje
o inconformismo de muita gente com o fato do sambista e as
pessoas da comunidade terem ficado em segundo plano para
enfatizar as alegorias luxuosas (as super-alegorias), artistas e
turistas burgueses que sequer sabem cantar o refrão do samba e,
sobretudo, o fato emergente na época, mas já evidente, de que
as escolas de samba priorizavam os ganhos financeiros, nem que
tivesse que desprezar o melhor samba cantado nas eliminatórias
ou um enredo mais rico e qualificado (por isso que hoje
proliferam os enredos patrocinados). Eram as Super Escolas de
Samba S/A, do tipo que havia afastado para sempre o mangueirense
Cartola (falecido em 1980) por aquilo parecer desfile militar
segundo suas palavras. Era a primeira crítica pública do novo
estilo das escolas de samba, imortalizada nos versos abaixo: Super escolas
de samba No disco do Grupo de Acesso de
1982, o rei do baião Luiz Gonzaga fazia uma participação
especial no samba-enredo Lua Viajante, feito pela Unidos
de Lucas em sua homenagem (e reeditado pela escola em 2006), num
dueto histórico com o falecido intérprete Abílio Martins. Por
fim, no último ano antes da inauguração da Passarela do Samba,
a Beija-Flor voltaria a ser campeã com o enredo A Grande
Constelação das Estrelas Negras. No Grupo Especial,
destaque para os sambas Mãe Baiana Mãe (Império
Serrano), A Ressurreição das Coroas (Portela), Como
Era Verde o meu Xingu (Mocidade), Verde que te quero
Rosa (Mangueira) e E Eles Verão a Deus (Unidos da
Ponte). Porém, a grande obra-prima de 1983 foi cantada no Grupo
de Acesso pela Unidos do Cabuçu. O enredo afro A Visita de
Ony de Ifé a Obá de Oyó resultou num samba-enredo
incrivelmente lindo, de melodia envolvente e emocionante. Ao meu
ver, o melhor da história dos Grupos de Acesso. TOP 20 -
SAMBAS-ENREDO 1º Heróis da Liberdade
(Império Serrano - 1969) FONTE BIBLIOGRÁFICA: |
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