Hiram da
Costa Araújo nasceu em 28 de setembro de 1929, foi médico-cirurgião e há mais de 40
anos trabalhava em pesquisas relacionadas à história do
carnaval carioca. Na década de 60, Hiram foi convidado
pelo farmacêutico Amaury Jório, seu sócio de
profissão, para ser membro da Imperatriz Leopoldinense,
já que Amaury era um dos fundadores da escola. Lá,
ambos fundaram em 1967, juntamente com Ilmar de Carvalho
e Fernando Gabeira, o Departamento Cultural e de Carnaval
da Imperatriz Leopoldinense, o primeiro departamento
cultural já criado numa escola de samba, organizando de
forma coletiva os carnavais da agremiação. E foi
justamente nesta fase que a Imperatriz começou a se
estabilizar no primeiro grupo, sempre mordiscando
colocações agradáveis. Hiram ficou na escola de Ramos
até 1969. Em 1970, o colega Amaury Jório, que também
era o então presidente da AESCRJ (Associação das
Escolas de Samba do Rio de Janeiro) o convida para criar
o chamado “Departamento Cultural da Entidade
Representativa das Escolas de Samba”. Foi diretor
dessa entidade até 1972.
Vendo
o belo trabalho do Hiram para com seus departamentos
culturais no carnaval, a Portela decidiu apostar nele
para realização do desfile de 1972. Pela primeira vez,
a agremiação investia nesse tipo de entidade para
preparar um carnaval. A escola havia sido campeã à
apenas dois anos antes, com Lendas e Mistérios da
Amazônia e estava na crista da onda do mundo do
samba. O enredo se chamava Terra da vida, hoje
muito conhecido como Ilu Ayê, graças ao
inesquecível samba de Cabana e Norival Reis. Tratava-se
de tema afro, exaltando a cultura e as tradições
negras. Foi um enredo proposto por ninguém menos que
Candeia, um dos maiores sambistas da história, que
confeccionou o desfile de 72 junto com Hiram. Outra
pessoa que ajudou nos preparativos do carnaval foi o
cartunista Lan, portelense há muitos anos. Porém Hiram,
talvez por egocentrismo ou arrogância, fez com que todos
acreditassem que o carnaval seria somente dele, como
todas as idéias saíssem apenas de sua mente. Colocou
Candeia apenas um colaborador e não como carnavalesco,
do mesmo modo que o próprio Hiram era. Isso começou a
irritar não só Candeia, como também outros integrantes
da Portela. Era o início de uma crise.
Mas
nada tiraria o brilho de Ilu Ayê e a Portela
havia mostrado a todos antes do carnaval que havia vindo
para brigar seriamente pelo título. E como já era de se
esperar, o desfile foi extremamente positivo. O
candomblé e todo misticismo africano entravam na avenida
com uma garra invejosa, tendo uma comunicação imensa
com o público, já que o samba era bastante popular.
Hiram e Candeia investiram muito em fantasias rústicas,
como a palha e a ráfia, dois materiais que tinham uma
relação grande com o enredo. Efeito fez lembrar o
futuro Kizomba, a festa da raça, pois unia uma
seqüência de materiais primitivos em fantasias e
alegorias com um acabamento linear, adaptado ao estilo de
desfile, que acabou proporcionando muita aceitação do
público e dos críticos. Foi mais um carnaval
fantástico da Portela! A escola de Oswaldo Cruz acabou
ficando num justo 3º lugar, perdendo para os quase
imbatíveis desfiles da Mangueira e do Império Serrano,
que foi o campeão.
Em
1973, Hiram fez o enredo da Portela baseado no poema
“Vou-me embora pra Pasárgada”, de Manoel
Bandeira, que era uma homenagem ao aniversário de 50
anos da Portela. O desfile fazia diversas alusões ao
universo das crianças, trazendo primeiramente diversas
alegorias que lembravam muito um parque de diversões,
rodeado de sonhos infantis. Também houve várias
representações de comemoração do cinqüentenário da
escola, incluindo um carro com 50 velas. O carnavalesco
usou e abusou de vários adereços de mãos, o que aos
poucos viriam a ser uma das principais características
de seus desfiles. Mesmo debaixo de chuva, a Portela teve
uma bonita passagem, emocionando a todos. O grande
problema de 1973 foi um famigerado colapso que a bateria
teve no meio de seu desfile na avenida. Ela havia perdido
toda sintonia com o samba do estreante David Corrêa,
comprometendo seriamente a escola no quesito harmonia.
Ainda assim, a Portela ficou em 4º lugar.
Para
1974, Hiram bolou uma homenagem a Pixinguinha, grande
músico brasileiro que havia falecido pouco tempo antes.
Porém novamente a sensação de crise mostra as suas
garras. O presidente Carlinhos Maracanã chamou a dupla Jair
Amorim e Evaldo Gouveia para fazer o samba da Portela e
não era de se esperar que os dois ganhassem. Isso foi
motivo de revolta! Acontece que, além de estarem
quebrando uma tradição de que era proibida a vinda de
compositores de fora da escola, ambos eram consagrados
nomes do bolero, mas nunca sequer haviam feito um
samba-enredo na vida. Isso deixou a Portela completamente
dividida. Quase ninguém mais queria obedecer a uma
diretoria que esnobava os membros mais tradicionais e só
trazia conturbações ao mundo do samba.
A
Portela havia preparado um desfile imenso, de padrões
quase atuais, pois a escola tinha cerca de 4.000
componentes. Além disso, Hiram preparou um desfile
moderno e exuberante, afastado completamente dos
primeiros desfiles de escola de samba, nos anos 30. O seu
departamento cultural investiu muito no uso de cores
fortes e reluzentes, em especial o dourado. Esse foi um
dos melhores desfiles dos anos 70 e uma das passagens
mais bonitas da história da Portela. Um dos momentos
mais impactantes de 1974 foi uma belíssima alegoria,
rodeada de dourado, com uma rosa desabrochando com o
busto de Pixinguinha dentro. Tudo resultando num
acabamento genialmente feito, de um extremo bom gosto, o
que agradou em muito o público na avenida. Foi sem
dúvida um dos melhores desfiles do ano! No resultado
oficial, a Portela foi vice, perdendo só para o
Salgueiro de Joãosinho Trinta.
Em
1975, a Portela veio com uma garra fantástica, empolgada
com a boa colocação do ano anterior. Hiram decidiu
fazer um enredo baseado na clássica história de “Macunaíma”
de Mário de Andrade. A escola já tinha confiança no
estilo de seu carnavalesco, com seus departamentos
culturais. A Portela fez um desfile multicolorido, com
algumas variações abusivas de prata e azul. E essas
colorações deram um charme especial nos seus já
característicos adereços de mãos, sempre presentes em
vários de seus desfiles. Alguns dos momentos mais
marcantes daquele desfile foi o colorido abre-alas com a
tradicionalíssima águia e o carro com o Gigante
Piaimã, tendo Clóvis Bornay como destaque. Foi um
desfile divertido, tendo uma comunicação imensa com o
público, aliado ao animadíssimo samba de David Corrêa.
Para melhorar ainda mais, a bateria não teve problemas,
ao contrário dos anos anteriores. Estranhamente, a
escola de Oswaldo Cruz ficou apenas no 5º lugar, mesmo
apontado por muitos como campeã, pois aquela foi com
certeza uma das passagens mais inesquecíveis da
história da Portela.
Mesmo
com a seqüência de bons desfiles que a Portela andava
fazendo, crise mostrava-se ainda forte e o estilo de
carnavais do Hiram continuava sendo vítima de críticas.
A Portela estava sendo modernizada, assemelhando-se cada
vez mais com os carnavais luxuosos de Joãosinho Trinta.
Segundo os próprios integrantes da escola, ela havia
sido apenas um atrativo para inglês ver. Um desfile
agigantado e frio não tem coexistência com os padrões
tradicionalíssimos de uma escola de samba como a
Portela. Hiram achava que o melhor jeito de fazer um
grande desfile era trazendo inúmeras inovações para a
escola e assim, tornar-la uma agremiação imbatível,
pois teria força suficiente para enfrentar qualquer tipo
de complicação. Ele ainda teve a sorte de contar com o
apoio do presidente Carlinhos Maracanã, que defendia sua
tese. Só que quase ninguém tinha a mesma visão que os
dois. A Portela ficava cada vez mais dividida e só para
apimentar ainda mais a situação, o eterno Natal da
Portela vem a falecer, o que viria a desequilibrar por
completo o sentimento de louvação dos membros mais
tradicionais da escola. Esses motivos levaram
Cadeia e um outro grande grupo de sambistas a fundar a Grêmio
Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo. A
Quilombo foi criada apenas com a intenção de valorizar
as verdadeiras tradições da cultura negra e do carnaval
carioca. Era uma escola comunitária, feita toda por
membros da própria agremiação, que lembraria em muitos
os velhos tempos do carnaval, voltando às raízes do
samba. A Quilombo estava também longe dos desfiles
oficiais, pois não competiria com as demais escolas de
samba.
Mesmo
com tanta confusão, o carnaval de 1976 estava chagando e
a Portela tinha que se preparar. A diretoria dessa vez
preparou um desfile de contingente menor, pois o excesso
de desfilantes andava atrapalhando a escola. Seria algo
mais técnico, ensaiado constantemente para tudo dar
certo na hora H. O carnavalesco, que contou com a ajuda
de Maurício de Assis, desenvolveu o enredo O Homem do
Pacoval, contando as histórias e mistérios da Ilha
de Marajó. O desfile foi aberto pela tradicional águia
trazendo uma imagem do falecido Natal. Talvez
influenciado pela crise do ano anterior, Hiram fez um
desfile baseado mais na garra do componente do que no
luxo ou na exuberância. Ainda sim, foi um desfile
bem-acabado, com uma seqüência de fantasias e alegorias
muito bonitas, narrando o enredo com coerência. Foi um
momento forte daquele ano, pois a Portela mostrou que
ainda sabia fazer um desfile emocionante e tradicional,
digno de campeonato. Infelizmente, mesmo com os
investimentos técnicos, a agremiação fez um desfile um
tanto atravessado, com problemas de desorganização. A
Portela acabou ficando em 4º lugar, num ano em que a
Beija-Flor sagrou-se campeã com um desfile
revolucionário. Mesmo não obtendo um resultado
excelente, a Portela acabou faturando o Estandarte de
Ouro de melhor escola.
Em
1977, Hiram decidiu falar da Festa da aclamação, que
foi um belíssimo festejo feito no Rio de Janeiro em 1818
comemorando a aclamação de Dom João como rei de
Portugal. Era um enredo bem interessante e o samba
animado proporcionava chances aos portelenses de brigarem
por uma boa colocação. Ao contrário do ano anterior,
Hiram preparou um carnaval altamente luxuoso, exuberante,
lembrando muito os carnavais de Joãosinho Trinta. Talvez
passasse pela mente dele que essa era a única
alternativa de deter a ferocidade da Beija-Flor, que
viria a conseguir o bicampeonato neste mesmo ano. A
Portela desfile majestosamente, com vários momentos de
forte impacto. A diretoria também havia contratado
recentemente as carnavalescas Rosa Magalhães e Lícia
Lacerda para ajudar o carnavalesco na confecção do
desfile. Elas utilizaram muito as obras de Debret como
base nos desenhos de inúmeros figurinos. Foi um desfile
muito bonito, porém havia faltado também algo presente
no desfile de 76 e que seria decisivo na apuração do
carnaval de 1977: animação. O componente estava sem a
mesma garra de sempre, talvez por ficar impactado com a
beleza do desfile. A Portela acabou faturando o 2º
lugar, perdendo apenas por um ponto da Beija-Flor, o que
prova que mesmo assim o resultado foi positivo.
Para
1978, Hiram decidiu criar o enredo Mulher à
brasileira, que seria uma singela homenagem as
mulheres de nosso país. Novamente, a diretoria sofreu
inúmeras críticas de seus sambistas mais tradicionais.
A principal delas foi a escolha do samba-enredo, feito
mais uma vez pela polêmica dupla Jair Amorim e Evaldo
Gouveia. Acontece que ele era horroroso, até hoje
considerado o pior da história da Portela. A escola de
Oswaldo Cruz estava mais dividida ainda e o Hiram achava
que o único jeito de unir-la novamente era conquistando
um campeonato, o que estava, há bastante tempo, difícil
de conseguir. Praticamente, não tinha nenhum jeito dela
voltar a brilhar com tanta conturbação. Mesmo assim,
ela tinha que prosseguir como podia, pois o carnaval de
78 se aproximava. E por incrível que pareça, o samba
fraco acabou se tornando popular e ajudou a empolgar o
público da Sapucaí. Ele era cantado afoitamente por
todos que assistiam à escola e acabou funcionando.
Hiram, pela primeira vez em seis anos como carnavalesco,
limitou-se a apenas fazer o enredo. Todas as fantasias e
alegorias foram criadas pelas figurinistas Rosa
Magalhães e Lícia Lacerda. A Portela acabou felizmente
fazendo um desfile quente, bem competitivo. Alguns dos
melhores momentos daquele ano foram a excelente
performance das baianas e a bela águia portelense,
rodeada de passistas. Foi uma passagem bonita e
empolgante, que acabou sendo muito aplaudida pelo
público. Na apuração, a escola acabou ficando apenas
no 5º lugar. Logo após aquele carnaval, Hiram Araújo
deixa a Portela, sendo substituído pelo brilhante
Viriato Ferreira.
Mesmo
com sua saída da Portela, Hiram continuou dentro do meio
carnavalesco. Em 1984, assume na Riotur o cargo de
Coordenador de Jurados, criando assim o primeiro curso
para formação de jurados de escolas de samba da
história. Hiram ocupou esse posto até 1986. Logo
depois, o então presidente da Liesa e o patrono da
Beija-Flor, Anísio Abraão David, o convida para ser
coordenador de jurados da Liga, lançando o atual método
de julgamento usado pelos jurados dos carnavais atuais.
De lá para cá, pouca coisa desse método foi alterada.
Em 1994, Hiram criou uma série de cursos
profissionalizantes na UERJ baseados no estudo do
carnaval carioca. No mesmo ano, ele funda na Liesa o
“Conselho Consultivo de Estudiosos do Carnaval”.
Em 1996, vira produtor da transmissão de carnaval da TV
Globo. No ano seguinte, assume o cargo de assessor
cultural da Liesa, posto que ocupa até hoje. Em 2006,
Hiram recebe o título de “Professor Honoris Causa”,
na Universidade Estácio de Sá. Esse evento marcou a
consolidação do Instituto do Carnaval, cujo o objetivo
é formar profissionais graduados ao estudo do carnaval e
a difusão da identidade cultural do samba. Pela primeira
vez na história, o carnaval tem reconhecimento
universitário.
Querendo
ou não, Hiram Araújo foi um dos maiores responsáveis
pela modernização do carnaval, em especial, da Portela.
Hiram sempre propôs idéias de tornar os desfiles de
escolas de samba, um negócio financeiro, o que, segundo
ele, ajudaria a tornar-los mais fortes e desenvolvidos.
Ele foi o responsável por trazer inúmeras inovações
ao mundo do samba, fazendo com que o carnaval se
padronizasse a era moderna, deixando muitas tradições
de lado, na qual muitas são consideradas por ele como
“saudosismo”. Além disso, ele é um dos poucos
que ainda defendem a estrutura da Liesa no carnaval
carioca, o que ele chama de “profissionalismo”.
Por isso, Hiram Araújo sempre foi vítima de inúmeras
críticas. Mesmo assim, sempre foi notável seu belo
trabalho como carnavalesco da Portela nos anos 70 e uma das pessoas mais influentes do mundo do
samba.
Hiram de Costa Araújo faleceu em 23 de junho de 2017.
*Agradecimentos
ao colunista João Marcos por algumas das fontes de
pesquisa
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