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Editorial Sambario
   
Edição nº 79 - 14/02/2021

OS ANOS SEM JULGAMENTO NO CARNAVAL CARIOCA

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2021 é o primeiro ano desde o longínquo 1932 a não ter apresentações das escolas de samba no Carnaval Carioca. Entretanto, a partir do referido pioneiro desfile há quase um século, promovido pelo jornal Mundo Sportivo na Praça Onze por intermédio de Mário Filho, será a terceira vez em 89 carnavais que não teremos uma campeã. Nos anos de 1938 e 1952, o espetáculo até aconteceu, no entanto o mau tempo no Rio de Janeiro impediu o julgamento.

O polêmico delegado Dulcídio Gonçalves (FOTO: As Escolas de Samba do Rio de Janeiro - Sérgio Cabral)

No período carnavalesco de 1938, a Avenida Presidente Vargas já estava em construção, o que levou o desfile daquela temporada a ser transferido para o Campo de Santana a pedido do delegado Dulcídio Gonçalves, o mesmo que quatro anos antes se recusara a renovar a licença da Vai Como Pode, sugerindo a Paulo Benjamin de Oliveira o nome de Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela para a agremiação (com a denominação GRES sendo adotada por todas posteriormente).

Aos poucos, a lendária Praça Onze, já inadequada para o delegado Dulcídio, ia encolhendo em prol da modernização da então capital federal. Naquele ano, estavam proibidos carros alegóricos ou carretas, além de vetos a temas internacionais, influência do projeto nacionalista de Getúlio Vargas (os enredos estrangeiros só seriam permitidos em 1997). Os quesitos em julgamento eram samba, harmonia, bandeira, enredo, indumentária, comissão de frente (pela primeira vez valeria pontos), fantasia do mestre-sala e da porta-bandeira, e iluminação do préstito.

Apesar da apresentação de 1938 ser a primeira do Estado Novo (instalado três meses antes), a Portela desafiou a ditadura e trouxe o enredo "Democracia no Samba", cuja maior novidade foi um abre-alas espelhado.
Numa espécie de contraponto, a Azul e Branco do Salgueiro, que se fundiria com a Depois eu Digo em 1953 pra formar o Acadêmicos do Salgueiro, veio com um tema inspirado na ufanista campanha nacional da aviação "Dêem Asas ao Brasil", idealizada no governo Vargas por Assis Chateubriand e o então ministro da Guerra, Joaquim Pedro Salgado Filho (que daria nome ao aeroporto de Porto Alegre).

A escola
foi uma das primeiras a cantar uma música com características de samba-enredo para embalar o desfile. Naquele tempo, não era comum um único samba-enredo servir de trilha: várias canções sem relação com o enredo eram entoadas durante a apresentação, como sambas de terreiro, além de partidos com versos de improviso (que só seriam proibidos nas apresentações em 1946). O samba da Azul e Branco do Salgueiro "Asas para o Brasil", de autoria de Antenor Gargalhada (Cidadão Samba de 1938), reforçava o slogan, além de enaltecer o Pai da Aviação ("Viemos apresentar / artes que alguém não viu / mocidade sã / céu de anil / dai asas ao Brasil / tenho orgulho desta terra / berço de Santos Dumont / nasceu e criou / viveu e morreu / Santos Dumont / Pai da Aviação").



Já a Estação Primeira de Mangueira realizou um tributo aos poetas brasileiros, com a possibilidade do samba "Homenagem" de Carlos Cachaça, outro pioneiro do gênero samba-enredo, ter embalado esta apresentação: "Recorda Castro Alves, Olavo Bilac e Gonçalves Dias / e outros imortais que glorificaram nossa poesia". A dúvida histórica existe porque o próprio Cachaça relatou que este samba já tinha desfilado cinco anos antes, em 1933, para o tema "Uma segunda-feira no Bonfim da Ribeira", com o saudoso compositor reforçando a citação a Castro Alves ter relação com a Bahia.

As 35 escolas inscritas que formavam o grupo único enfrentaram o temporal do domingo de Carnaval, 27 de fevereiro de 1938, e se apresentaram no Campo de Santana. Porém, dois dos três jurados nomeados pela prefeitura e pela União das Escolas de Samba (UES, a então liga vigente, que se tornaria UGES - União Geral das Escolas de Samba - no ano seguinte) não compareceram: Lourival Pereira e Mário Domingues. O único julgador presente, Domingo Robim, deixou uma declaração por escrito. "Designado pela Diretoria de Turismo para fazer parte da comissão julgadora das escolas de samba, compareci às 21h35, devido à dificuldade de transporte. Não tendo encontrado nenhum dos membros da referida comissão e tendo esperado 30 minutos, faço a presente declaração para salvaguarda das minhas responsabilidades". O jornal A Pátria não perdoou: "que falta de atenção!".

Racha origina diversas ligas

Passada a década de 40 marcada pela Segunda Guerra Mundial e o samba-enredo consolidado na segunda metade daquele decênio, as escolas de samba do Rio de Janeiro chegaram aos anos 50 rachadas.
Como retaliação à aproximação de comunistas com a União Geral das Escolas de Samba (daí o apelido União Geral das Escolas Soviéticas)surgiu em janeiro de 1947 a Federação Brasileira das Escolas de Samba (FBES) por iniciativa da direita, no intuito de esvaziar a UGES. Com a subvenção sendo paga apenas a quem fosse filiada à nova liga, a Federação incorpora todas as escolas, organizando o Carnaval de 1948, vencido pelo Império Serrano em sua estreia, interrompendo uma sequência de sete títulos consecutivos da Portela.


Mano Décio da Viola em sua casa com um cartaz de Tiradentes, enredo de 1949 com que o Império conquistou o bicampeonato do desfile da Federação Brasileira das Escolas de Samba, oficializado pela prefeitura. Mano Décio é um dos autores do samba (FOTO: Twitter O Rio Antigo)

Inconformadas com um suposto favorecimento à nova escola da Serrinha, devido à influência do jornalista Irênio Delgado (simpatizante imperiano e eleito presidente da FBES), Mangueira e Portela ressuscitam a UGES (agora União Geral das Escolas de Samba do Brasil). Por três anos (de 1949 a 51), ocorrem desfiles simultâneos de ligas diferentes. O oficial da Federação (que contava com o dinheiro público), o não-oficial da UGESB e o de uma terceira liga criada em 1950: a União Cívica de Escolas de Samba (UCES). Esta também foi oficializada pela prefeitura, para onde Portela e Mangueira teriam a garantia de subvenção, sem precisarem se filiar à Federação do desafeto Irênio Delgado, onde o Império seguiu enfileirando conquistas (tetra de 1948 a 51).

Ou seja, em 1950 ocorreram desfiles das escolas de samba por três ligas diferentes, sendo duas subvencionadas. A oficialização da UGESB em 1951 atrai todas as escolas da UCES, que deixa de existir (ainda daria lugar à Confederação das Escolas de Samba - CES). A Mangueira vence os desfiles de 1949 e 50 e a Portela festeja o de 1951. Na esvaziada UGESB não-oficial de 1950, ocorre um empate no primeiro lugar entre Unidos da Capela e Prazer da Serrinha.

Com a saída de Irênio Delgado da presidência da FBES, para o Carnaval de 1952 é planejada a unificação das ligas. O problema é o grande número de escolas, que implicaria na falta de dinheiro para pagá-las, além de não haver tempo para todas desfilarem numa mesma noite. A solução é a criação de um segundo grupo, para onde iriam as agremiações menores que não teriam direito à subvenção, com a apresentação acontecendo na Praça Onze. A escola campeã participaria do desfile principal no ano seguinte. Já as 24 maiores mediriam forças na Avenida Presidente Vargas, no trecho entre a Rio Branco e a Uruguaiana. Pela primeira vez depois do Carnaval de 1948, Império Serrano, Portela e Mangueira iriam para o tira-teima, com UGESB, FBES e a pequena CES (com apenas oito filiadas) organizando em conjunto.

O Departamento de Turismo da prefeitura determinou que, para os desfiles de 1952, as escolas do Grupo 1 teriam que se apresentar com o contingente mínimo de 300 componentes e as do Grupo 2 não poderia ser menos do que 100. Na ocasião, o que separava o público dos desfilantes era uma corda, o que facilitava a invasão da pista por parte da plateia, se confundindo com os integrantes das agremiações. "A solução encontrada foi a instalação de um tablado de madeira com 60 metros de comprimento, 20 de largura e um metro de altura, além de uma pequena arquibancada (também de madeira), destinada aos turistas e aos convidados, um palanque para as autoridades e outro para a comissão julgadora", conta Sérgio Cabral em seu clássico livro "As Escolas de Samba do Rio de Janeiro". Uma exigência começava naquele ano:
todas as alas teriam que estar fantasiadas.


Mangueira se apresenta no Carnaval de 1950 com o enredo "Plano Salte - Saúde, Lavoura, Transporte e Educação", conquistando o título do desfile válido pela União Cívica das Escolas de Samba. FOTO: Avante Mangueira

Em 24 de fevereiro de 1952, a Portela desfilou com o enredo "Brasil de Ontem" e um samba de Manacéia ("Brasil já não é mais aquele / Brasil que o tempo levou / levou Brasil antigo / escravo e senhor / senhor, antigamente o sofrimento era demais / tronco e pelourinho não existem mais"). A Mangueira fez um tributo a Gonçalves Dias com obra de Cícero e Pelado ("Louvores e honra ao mérito / À memória de um poeta / De sublime inspiração / Seus poemas são tão lindos / Que faz vibrar os corações / Vamos elevar / Aos píncaros da glória / O nome de Gonçalves Dias").

Império Serrano impede o julgamento

Na hora do Império Serrano, uma chuvarada desabou na Presidente Vargas, o que fez com que quatro integrantes da comissão julgadora - Dulce Marques, Bustamante Sá, Jota Efegê e Manuel Faria - abandonassem o palanque desprovido de cobertura. Ao término do desfile, apenas um jurado permanecia no local:
o tenente Alfredo Barbosa, que acompanhou até o final o samba-enredo imperiano "Homenagem à Medicina Brasileira", de Mano Décio da Viola, Penteado e Mestre Fuleiro: "O ilustre professor / Doutor Osvaldo Cruz / Grande pesquisador / Carlos Chagas, Miguel Couto / Vultos de glórias mil / Na Medicina do Brasil / Laureano, Caiado de Castro / Miguel Couto e outros mais / Ana Néri, corajosa enfermeira / A heroína brasileira".

Na Quarta-Feira de Cinzas, os dirigentes do Império Serrano exigiam a anulação do julgamento, alegando não só a ausência dos jurados como também muitos danos nas alegorias provocados pelo temporal. O pedido foi atendido pelo Departamento de Turismo antes mesmo da abertura dos envelopes, que acabaram inutilizados. A rivalidade entre as vizinhas Portela e Império se acirrava ainda mais. Já no Grupo 2 da Praça Onze, ocorreu a apuração apesar da tempestade e a Unidos do Indaiá se sagrou campeã, obtendo o direito de se apresentar no desfile principal em 1953.

Logo após aquele Carnaval sem julgamento, ocorreu a fusão entre a Federação Brasileira das Escolas de Samba (FBES) e a União Geral das Escolas de Samba do Brasil (UGESB), nascendo assim, em 5 de março de 1952, a Associação das Escolas de Samba do Brasil (mais tarde, Associação das Escolas de Samba da Cidade do Rio de Janeiro). A AESCRJ seria a principal entidade do Carnaval Carioca até 1984, quando foi criada a LIESA (Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro). A Associação, que passou seus últimos 30 anos se dedicando à gestão dos grupos de acesso, encerrou suas atividades em 2015.

Para o primeiro Carnaval da Associação em 1953, o Departamento de Turismo providenciou para a comissão julgadora um palanque com cobertura. Voltou a chover assim como no ano anterior, mas dessa vez os jurados estavam bem abrigados e permaneceram até o fim. A Portela seria a campeã tirando nota 10 em todos os quesitos (incluindo o recém-criado de alegoria) e não poupou corneta ao Império Serrano pelo não-julgamento de 1952, cantando esse samba na concentração. "Não foi Portela / que anulou / não foi Mangueira / também não foi, não senhor / essa escola / pra vocês é um mistério / não digo o nome / deixo isso a seu critério / mais uma chance eu vou lhe dar / essa escola fica perto de Madureira / saiu representando em 52 / Ana Néri, a corajosa enfermeira / essa escola / pra vocês é um mistério / eu digo o nome / o nome dela é Império".

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BIBLIOGRAFIA

CABRAL, Sérgio - As Escolas de Samba do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1996.

COSTA, Haroldo - Salgueiro: Academia do Samba. Rio de Janeiro: Record,
1984.

Academia do Samba

Galeria do Samba

Portela

Dicionário Cravo Albim

Folha

Terra