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Editorial Sambario
Edição nº 60 - 29/03/2015

Por um maldito paralelepípedo - É um expediente um tanto arriscado se trazer para a avenida grandes clássicos do sambas-enredo, rompedores de qualquer barreira do tempo. Porque todos são julgados de igual pra igual com as demais obras, atualmente mais limitadas poética e musicalmente. Dessa forma, obras-primas são obrigadas a passar pela avaliação e, consequentemente, amargar o constrangimento de serem canetadas por pretextos geralmente distorcidos de um coerente julgamento.

A ideia da reedição de enredos adotada desde 2004 dá ao folião a chance de escutar na Sapucaí sambas inesquecíveis que encantaram gerações anteriores, mas também sintetiza o pragmatismo de escolas. Com o tempo, a maioria das agremiações que optavam pela repetição de temas passou a ser quem tinha a intenção apenas de permanecer de grupo, apelando para obras conhecidas até de outras escolas. As simples reedições caíram em desuso em 2015, de maneira a apenas o Arranco ser a única de todas as chaves na temporada a repetir um antigo enredo, na Intendente pelo Grupo B.

Porém, a Viradouro fez algo que nenhuma escola tinha proporcionado na história do Carnaval: uma adaptação de duas canções de "meio de ano" do saudoso Luiz Carlos da Vila, "Por um Dia de Graça" e "Nas Veias do Brasil". O presidente Gusttavo Clarão realizou uma espécie de fusão das músicas para servir como samba-enredo. A obra levou notas 10 de três dos quatro jurados do quesito, sendo o samba o único gabaritado pela vermelho-e-branco na apuração. Aliás, foram as solitárias notas máximas conquistadas pela escola de Niterói, que acabou rebaixada.

No entanto, o quarto julgador descontou um décimo em letra, pontuando a linda obra em 9,9. Clayton Fábio Oliveira justificou da seguinte forma (reproduzida acima): A letra da primeira estrofe tem frases poucos caprichadas, as rimas "além-mar", "espalhar", "a terra e o mar", "veio juntar" são redundantes, isso se repete também em "Pra ser muito mais Brasil", "ôô Brasil". O coro final "ôôô... Brasil" não se afina com a qualidade da melodia. Digno de um duplo twist carpado do grande Luiz Carlos da Vila no túmulo.

A nota de Clayton foi justamente descartada, mas não deixa de ser constrangedor tão lindas músicas passarem por este crivo, que termina por motivar avaliações estapafúrdias. Luiz Carlos da Vila jamais imaginou que "Nas Veias do Brasil" (que forma a maioria dos versos do samba da Viradouro, com
quatro linhas de "Por um Dia de Graça" complementando) se tornaria samba-enredo anos mais tarde, pois o sambista compôs a música para Beth Carvalho nos anos 80 alheio ao detalhe de que suas frases eram "pouco caprichadas". Tanto que, nos comentários dos sambas de 2015, me recusei a dar nota à Viradouro por não considerar a canção um samba de enredo. A impressão dada é que o jurado aproveitou da desculpa das rimas terminadas em "ar" para encontrar um motivo qualquer para descontar a escola. Muitos outros sambas que passaram pela Sapucaí que ninguém lembra mais também perderam pontos com justificativa semelhante.

Embora o resultado final tenha agradado, a forte e emocionante obra cantada pela Viradouro não foi suficiente para mantê-la no Grupo Especial. Mas não duvido que o expediente aberto por Gusttavo Clarão gere outras experiências um tanto esdrúxulas. Vamos supor que alguma escola invente de utilizar o clássico "Vai Passar", de Chico Buarque e Francis Hime, para servir de trilha sonora ao seu desfile. Aí no meio das notas, aparece um 9,9 ou até mesmo um 9,8. As justificativas para a caneta poderiam vir da seguinte forma: A inserção da palavra "paralelepípedo" é inadequada e destoa do restante da poesia. Ou também: excesso de rimas terminadas em "ar" em "passar", "popular", "arrepiar", "lembrar", "Bulevar" (sic), "olhar", "cantar" e "clarear". E por que não o seguinte? Repetição desnecessária da palavra "carnaval" depois do verso "uma ofegante epidemia".

Mas voltemos aos sambas de fato de enredo. No ano passado, a reedição de "Os Sertões" pela Em Cima da Hora resultou talvez no maior atentado sofrido por uma escola numa apuração em qualquer época. Dos quatro jurados, apenas um concedeu a nota máxima para a azul-e-branco. Celso Chagas lascou um 9,6 (descartado na pontuação final) alegando que a letra não menciona Euclides da Cunha ("Sertanejo homem forte, dizia o poeta assim") tampouco Antônio Conselheiro ("Um homem revoltado com a sorte/do mundo em que vivia/ocultou-se no Sertão/espalhando a rebeldia"). A escola de Cavalcante amargaria ainda mais duas notas 9,9. No memorável Carnaval de 1989, como não se remeter ao fatídico desconto de um ponto do jornalista João Máximo ao samba da Beija-Flor e seu Cristo Mendigo, por considerar o refrão "Leba larô, ô ô ô ô/Ebo lebará laiá laiá ô", referente a um canto africano, ofensivo à língua... portuguesa? 

Para 2016, boatos dão conta de que a Estácio de Sá, aproveitando o retorno de Chico Spinoza, reeditará o consagrado "Paulicéia Desvairada" de 1992, com o qual o carnavalesco proporcionou à vermelho-e-branco seu único título no Grupo Especial. Vale a pena o risco de manchar a história de um enredo vencedor e um samba famoso os jogando na jaula dos leões que não perdoam a escola oriunda do Acesso com sua chuva de nove ponto sete? Convém recordar 2007, quando a própria escola do Morro de São Carlos, ao abrir o Primeiro Grupo da mesma forma que fará no ano que vem, teve outro notório samba - "O Tititi do Sapoti" - massacrado pelo corpo de jurados, que canetaram a popular obra de 1987 sem dó nem piedade, como se estivessem avaliando um boi-de-abóbora qualquer. Entre outras razões, consideraram a letra fraca, de pouca beleza poética, além de perder décimos na melodia por "não ter criatividade", só adquirindo força nos refrões. O ritmo acelerado executado pela bateria Medalha de Ouro também motivou descontos. Enfim, justificativas genéricas, que poderiam caber num "positivo pra nação" ou "iogurte é leite, tem saúde e muito mais" da vida.

O decréscimo do julgamento de samba-enredo na LIESA foi evidente nesse ano em relação ao anterior. O que foi o jurado Felipe Barros descontando um décimo da Beija-Flor justamente no melhor trecho da obra nilopolitana, por considerar o excesso dos quatro últimos versos de sua segunda parte? Na visão do julgador, os versos não encontram diálogo com os elementos plásticos apresentados no desfile, prejudicando seu entendimento. A sequência mencionada é "Criança levanta a cabeça e vai embora/no mar que trouxe a dor riqueza aflora/tem uma família agora/quem beija essa flor não chora". Quer dizer então que tudo que estiver no samba tem que estar ao pé da letra representado na pista? Tipo uma alegoria de uma criança com a cabeça erguida segurando uma trouxa? Onde fica a licença poética do compositor numa hora dessas? É a típica justificativa que pode simbolizar uma queda ainda maior na qualidade dos sambas nos anos seguintes.

Quanto às experiências à la Viradouro, eu particularmente acho melhor que elas parem por aí. Sob pena de alguma agremiação resolver, por exemplo, homenagear a Portela utilizando como samba-enredo o lindo "Portela na Avenida", pra depois a obra-prima de Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro ser punida por possuir trechos entoados rapidamente, embolando o canto do componente. Alguém duvida? E se a Estácio vir de Paulicéia mesmo, o "me dê me dá, me dá me dê" apelativo e sem conexão alguma com o enredo não perde por esperar.