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Coluna do Mestre

Edição nº 56 - 27/08/2014

Alô alô Velho Guerreiro, o Aviãozinho vai subir! - Entre as trocentas reprises do Canal Viva do "Cassino do Chacrinha", naturalmente o programa que mais gosto de assistir é o referente ao Carnaval de 1988, a derradeira folia do Velho Guerreiro, que partiria em junho daquele mesmo ano. Um expediente comum do saudoso apresentador era a maciça divulgação das escolas de samba às vésperas dos desfiles no colorido cenário da atração. O último bloco era dedicado ao show de uma agremiação, que invadia o palco e tomava por inteiro o espetáculo. Acompanhados por casais e passistas, bateria e o puxador cantavam várias passadas do samba-enredo ao vivo. Na edição exibida pelo Viva, a convidada é a Portela, que esquenta com "Adelaide, a Pomba da Paz", obra do ano anterior, para depois emendar "Lenda Carioca, os Sonhos do Vice-Rei", o samba da Águia na época, permanecendo por 13 minutos no palco e encerrando o programa.

Ao longo da atração, as agremiações se apresentavam com o casal de mestre-sala e porta-bandeira, mais o intérprete oficial entoando o samba em playback. Intercaladas pelos artistas que desfilavam os hits do momento, as escolas eram chamadas por Chacrinha: "E agora meus amigos vamos receberrrrrrr Unidos DA (sic) Cabuçu, puxador Jota Leão, mestre-sala Zerinho, porta-bandeira Néia... Unidos do Cabuçu". O puxador defende o samba reproduzido integralmente do LP. As duas passadas são inteiramente executadas. O cantor aparece bem nas tomadas, assim como o pavilhão girado pela porta-bandeira. Mas o foco principal é a plateia do "Cassino do Chacrinha", nitidamente formada por mulheres e crianças das classes C, D e E, atreladas a cartazes pitorescos como "Deixa o homem trabalhar, o Sarney quer acertar".

As moças sambam e pulam alegremente. Impressiona como elas têm os sambas na ponta da língua. Dois momentos são arrebatadores. Um magricelo Quinho adentra o palco para cantar "Aquarilha do Brasil", da União da Ilha. Entoado a plenos pulmões pela plateia, a produção do programa chega, por alguns momentos, a tirar o áudio da faixa no LP apenas para ouvir a mulherada soltar: "A gaitinha tocando, ÉÉÉÉÉ GOOOOOL, a galera vibrando, MENGOOOOO". Arrepiante! Logo depois, surge o saudoso Ney Vianna com "Beijim Beijim, Bye Bye Brasil". Considerado um dos mais limitados sambas da Mocidade. Pouco importa pra plateia, que canta verso a verso em unissono com o intérprete, morto no ano seguinte.

O conhecimento do público com os sambas-enredo em 1988 se justifica pela boa divulgação que as obras tinham na época, aliada à ótima vendagem, que ultrapassaria o milhão de cópias um ano depois. As obras eram intensamente executadas, não só pelo Chacrinha, como também pelas vinhetas carnavalescas da ocasião, que chegavam a mostrar passadas completas nos intervalos. O rádio também fazia a sua parte. Não se tinha mais o expediente de "N" gravações do samba-enredo do momento por diversos artistas, não contando a do LP oficial, ato bastante comum nos anos 70 e que propagava ainda mais a obra na boca do povo. Mesmo assim, no fim dos 80, o público ainda sabia cantar e muito.

Que houve um desinteresse no gênero a partir da segunda metade dos 90, que se agravaria nos anos 2000 até chegar aos dias atuais, todos estão a par. Bem como estão cientes da queda de qualidade dos sambas, devido ao gigantismo das escolas, que motivou a pasteurização, culminando numa semelhança melódica, poética e estrutural a fim de se adequarem ao andamento da bateria, além é claro das famigeradas firmas de compositores e as injustas escolhas de acordo com o poderio financeiro da parceria concorrente. Não é novidade pra ninguém! E ainda me inventam de colocar Jorge Perlingeiro falando nas introduções das faixas, pra não citar as pavorosas explanações dos carnavalescos também no começo das mesmas. 

No entanto, acredito que falte apenas vontade para os grandes veículos de comunicação divulgarem o samba-enredo como antes, mesmo com o nível inferior aos tempos de outrora. Tendo em vista o que é atualmente propagado pelas massas, quem são atualmente os queridinhos das gravadoras, percebe-se que o samba-enredo atual, ainda que anos-luz de obras-primas de décadas atrás, segue como um dos melhores gêneros que produzimos. Recentemente, tivemos belíssimas obras que, se registradas em outros tempos, seriam candidatas a antologias para os próximos decênios.

Com menos de 30 segundos de vinhetas da Rede Globo, que há muito trabalha no Carnaval com as coxas, é impossível notar a beleza de um "Madureira sobe o Pelô, tem capoeira, na batida do tambor, samba ioiô...", cantado pela Portela em 2012. Uma obra magistral, que pouco ou nada deve aos sambas passados. Os dois últimos sambas portelenses também seriam potenciais hits dos mais tocados nas rádios. O que dizer do "Festa no arraiá, é pra lá de bom", que promoveu um sacode há muito não visto por um samba na Sapucaí? Mesmo sendo de monstros sagrados do samba como Martinho da Vila e Arlindo Cruz, também passou batido pelas grandes emissoras, apesar de algumas charangas de torcida executarem timidamente a obra. "Oxum, Iemanjá, Iansã, Oxóssi Caçador...". Por que não o sambaço salgueirense ao invés dos "Lepo Lepos" da vida?

Um exemplo mais recente de divulgação incansável ocorreu com um samba tachado de trash, um dos piores da ótima safra de 2001, mas até hoje lembrado por muitos. "Olha que glória, que beleza de destino, pra esse menino Deus reservou...". O pré-Carnaval ao som da obra da Tradição sobre Silvio Santos está fresquinha na memória dos leigos da folia, devido à sua veiculação em todos os intervalos do SBT. Um samba limitado obteve tal êxito única e exclusivamente pela reprodução incessante de uma emissora, ainda que por segundas intenções, já que o artista homenageado era seu dono. 

Se ainda tivéssemos Chacrinha com a gente, ele estaria propagando pra todos seus telespectadores a beleza de um "A Imperatriz é um mar de fiéis...", o retirando do injusto limbo do esquecimento. Ah TV Manchete, que falta faz o seu botequim, o célebre "Esquentando os Tamborins"... Uma pena termos de amargar míseros segundos de vinhetas inúteis, mais os sambas reproduzidos de má vontade nas atrações globais, como o "Caldeirão do Huck", que promove anualmente o concurso da rainha do Carnaval, mas dedica ao samba-enredo apenas o encerramento, com o canto sendo iniciado já com os caracteres dos créditos finais do programa em plena exibição. O "Esquenta" e seus 40 mil cortes, mais a péssima edição e o excesso de funks nem digo nada... Silvio Santos poderia virar enredo mais vezes, só pro SBT não parar de executar o samba a fim do gênero voltar pra boca do povo.

Poderíamos fazer o seguinte exercício mental: levar os sambas atuais para aquela distante tarde de sábado de fevereiro de 1988. Chacrinha chamaria com pompa Tinga para defender o hino tijucano futuramente campeão. Esqueça o paradoxo contextual das distintas épocas e se esforce para imaginar as meninas dos anos 80 gritando a plenos pulmões, após receber o bacalhau do Russo: "Impressionante a ousadia, a Internet ultrapassou a energia". Ou enquanto focam merchans da Loteria Federal visando o GP do Brasil de 88 ou um cartaz com os dizeres "Pelourinho, todo mundo tem que preservar", do nada desponta um Luizinho Andanças tendo o áudio de seu playback desligado para que a mulherada vocifere: "Música me leva, o meu destino é a alegria desse mar, vou pra Lisboa eu vou na boa...". Tereziiiiinhaaaaa, uhuuu!

Assista ao Cassino do Chacrinha especial do Carnaval-88.



Vinheta do SBT que executava a passada completa do samba-enredo da Tradição sobre Silvio Santos.