Coluna da Denise
NOTA ZERO NO QUESITO HARMONIA
10 de agosto de 2008, nº 10, ano I
Nos últimos meses o mundo do samba anda bastante agitado. E
por incrível que pareça não se concentrou nas
escolhas dos enredos das escolas do Grupo Especial, das sinopses
divulgadas, da apresentação dos sambas-enredos, das
promessas de políticos, tampouco alguma operação
sob encomenda para apontar possíveis manipulações
de resultados e desvios de finalidade.
As escolas do Grupo Especial, filiadas à Liga Independente das
Escolas de Samba - Liesa, sempre tão em voga na mídia,
deixaram temporariamente a condição de favoritas dos
bastidores do carnaval, para abrirem alas para as escolas do Segundo
Grupo.
Após o sorteio da ordem dos desfiles para o carnaval dos Grupos
de Acesso da Associação das Escolas de Samba da Cidade do
Rio de Janeiro – AESCRJ rumores davam conta que algo estava para
acontecer.
E eis que sete das filiadas – Acadêmicos da Rocinha,
Acadêmicos de Santa Cruz, Caprichosos de Pilares, Estácio
de Sá, Inocentes de Belford Roxo, Renascer de Jacarepaguá
e União da Ilha do Governador - resolveram romper com a AESCRJ e
criar uma nova entidade para administrar o Segundo Grupo das Escolas de
Samba do Rio de Janeiro.
Já vimos esse filme antes. No passado, a história nos
conta que até 1948, todas as escolas de samba cariocas
existentes desfilavam em um só grupo. Devido a um
desentendimento entre as escolas gerado, segundo se especula, pelos
sete títulos consecutivos da Portela e pela
fundação do Império Serrano, 25 escolas romperam
com a Federação das Escolas de Samba, a entidade que
administrava o carnaval, e passaram a integrar o desfile da
União Geral das Escolas de Samba do Brasil.
Assim, em 1949, dois desfiles principais foram para as ruas. Um
oficial, que era subvencionado pela Prefeitura do Rio, e tinha como
principal escola o Império Serrano e o outro, com as dissidentes
Portela e Mangueira. Há ainda registro de que haveria uma
terceira entidade a administrar desfiles das escolas de samba naquele
ano.
Essa divisão no mundo do samba durou pouco e logo as escolas
voltariam a congregar uma única entidade. Trinta e poucos anos
mais tarde, Portela, Mangueira, Salgueiro, Império Serrano,
Beija-Flor, Vila Isabel, União da Ilha, Mocidade Independente,
Imperatriz Leopoldinense e Caprichosos de Pilares, as grandes escolas
da década de 80, rebelaram-se contra a AESCRJ e fundaram a LIESA
em 1985.
É notório, para quem acompanha o carnaval carioca, que a
Liesa conseguiu pouco a pouco organizar os desfiles, deixando para
trás atrasos e invasão de pistas na desorganizada
administração da Riotur, o que lhe credenciou assumir
para si a responsabilidade do carnaval e com isso os desfiles e as
escolas filiadas realmente ganharam força e autonomia.
É certo que muita coisa também se perdeu, o samba se
comercializou, houve a elitização do desfile, mas esse
é um outro lado da moeda da ruptura da estrutura do modelo
tutelado pelo Estado, que, para alguns, mostrava-se arcaica e
deficitária.
Como toda atitude revolucionária, conquistas e perdas convivem,
nem sempre de forma equilibrada, e, hoje, com a atual estrutura do
Grupo de Elite administrado pela Liesa, nós, amantes do carnaval
carioca, sentimos que algo precisa ser repensado para que o carnaval
das grandes escolas esteja mais próximo de suas origens e do
povo humilde que o ajudou a construir.
Na década de 90, com o afastamento judicial de alguns
personagens da administração das escolas de samba, o
Grupo de Elite passou a procurar outro modelo de parceria para
co-existir junto com o estatal. Houve quem duvidasse se as escolas
conseguiriam sobreviver sem a ajuda de seus patronos. A história
mostrou que sim. A partir daí, o carnaval carioca passou a
conviver com enredos caça-níqueis.
Após 1985, a AESCRJ continuou a ditar as regras para as escolas
dos demais grupos, mas nunca, de fato, com o crescente número de
escolas filiadas, poderia, em tão curto espaço de tempo,
dar a visibilidade ao carnaval carioca que a Liesa se propôs.
O que se notou, durante todo esse tempo, foi o distanciamento cada vez
maior das escolas filiadas à Liesa, em termos de estrutura, das
escolas associadas à AESCRJ.
Em 1995, dez anos após a criação da Liesa, houve a
tentativa de se criar uma nova entidade para administrar as escolas o
segundo grupo. A nova entidade, chamada de Liga Independente das
Escolas do Grupo de Acesso (LIESGA), organizou somente o desfile
daquele ano.
O que se viu, no entanto, foi um inchaço no grupo e a
promoção de escolas sem terem percorrido as etapas
necessárias para chegarem ao segundo grupo. A grande beneficiada
foi mesmo a Unidos do Porto da Pedra, de São Gonçalo,
que, convidada, ascendeu à Liesa e, após alguns
percalços, vem se mantendo na elite do carnaval.
A administração dos grupos de acesso voltou a AESCRJ em
1996, mas, com o crescimento vertiginoso das escolas filiadas à
Liesa, e, sem os recursos e mídia necessários para as
escolas associadas, passamos a conviver com duas realidades cada vez
mais distintas.
Com as escolas da Liesa ditando as regras do carnaval carioca,
evoluindo para um carnaval competitivo e, por conseqüência,
cada vez mais grandioso em todos os aspectos, inclusive, financeiro, o
distanciamento cada vez maior das escolas filiadas à
Associação foi inevitável.
E isso foi sentido na avenida, com carência de público,
muitos desfiles maravilhosos produzidos sem recursos pelas escolas do
segundo grupo só não foram totalmente desprezados devido
a cobertura isolada das emissoras de televisão – CNT e
Manchete - que levaram e registraram o espetáculo por ela
produzidos.
O certo é que com a falência da Manchete, a Rede
Bandeirantes até tentou entrar no circuito, mas a hegemonia e
exclusividade da Rede Globo não permitiu que nenhuma emissora ou
mídia se interessasse pelo desfile dessas escolas, ao ponto de,
na entrada do novo milênio, o grupo ficar sem transmissão
televisiva, ao menos local, dos desfiles.
As mudanças no regulamento ditadas pela Liesa com a
conivência da Prefeitura do Rio (exclusão das escolas da
Associação dos desfiles das campeãs,
ascensão de apenas uma escola do Grupo de Acesso A,
redução do número de escolas do Grupo Especial,
construção da Cidade do Samba que somente abrigou as
escolas da Liesa), já eram o prenúncio de que algo
haveria de ser feito para que a AESCRJ não fosse engolida na
atual década.
A transmissão dos desfiles do segundo grupo voltou a acontecer.
Isso é fato. Mesmo que de uma forma precária, a CNT, por
meio de Jorge Perlingeiro Produções, sentiu que a
expulsão de escolas especiais da Liesa - Vila Isabel,
Império Serrano, Estácio de Sá, União da
Ilha, São Clemente e Caprichosos de Pilares – o segundo
grupo poderia se tornar atrativo.
Aliás, essa questão de ter um terceiro dia de grande
“espetáculo”, foi um desafio que a AESCRJ passou a
ter de conviver. De concreto mesmo, o crescimento do Grupo A
está muito mais ligado à qualidade das escolas que por
lá passaram a desfilar, com seu prestigioso histórico no
carnaval, do que uma infra-estrutura mais digna que essas escolas
merecem.
A criação de uma nova entidade para administrar o Grupo
de Acesso A parecia inevitável. Não que a AESCRJ
não tivesse e têm a capacidade de administrá-lo e
de procurar caminhos para lhe dar a visibilidade que merece. Mesmo
diante de todas as crises, a AESCRJ volta e meia negociava a
produção de CDs, o televisionamento, ou seja, procurava
dar visibilidade às escolas excluídas da mídia.
O problema é que o tempo é implacável. E na atual
década onde tudo é descartável e efêmero,
jogou-se no ar a promessa de um terceiro dia de grandes desfiles no Rio
de Janeiro que passou a ser um desafio a ser perseguido.
A promessa política de construção de
condomínios para abrigar as escolas do Acesso, de melhores
verbas para a estrutura das escolas da Associação levam
tempo, e se formos nos mirar no passado, nas conquistas da Liesa,
constatamos que quanto menos se fatiar o bolo, mas rápidas
poderão as promessas saírem do papel.
Não sei quais são os verdadeiros propósitos da
Liga das Escolas de Samba do Grupo de Acesso (LESGA). Muito se especula
acerca de uma administração voltada para o financeiro,
uma espécie de Liesa “B”. É o Grupo de Acesso
A deixando de ser o carnaval do povão, papel que a Liesa
já se afastou há duas décadas.
Para a população carioca não sei se é um
ganho ter o segundo grupo mais próximo do modelo da Liesa. Mas
quem sabe a função da AESCRJ seja mesmo fazer um carnaval
para o povão.
Acredito que rupturas drásticas, sem conversa, sem acordos
amigáveis, sem respeitabilidade, não são o melhor
caminho para se abrir portas lá na frente. Ao mesmo tempo, sem
revolução não há quebra de paradigmas...
Não há avanço, não há conquistas.
Até o momento da escrita desta coluna, nada de concreto ainda
nos foi revelado em relação à LESGA:
patrocínio, recurso, regulamentos, televisionamento,
mídia, gravadora etc. O que surpreendeu positivamente o
público foi o convite da Liesa para que as escolas do Segundo
Grupo pudessem ensaiar na Sapucaí.
Essa promessa de terceiro dia forte do carnaval carioca não me
convence. Afinal, o segundo grupo sempre será o segundo grupo,
sempre estará em segundo plano. Seu crescimento não
é inversamente proporcional ao afastamento das camadas populares
que hoje lhe prestigiam, pois é lógico que não
pode haver duas Ligas disputando o mesmo espaço, os mesmos
contratos, os mesmos patrocinadores.
Seria tão mais lógico a Liesa criar o terceiro dia de
desfiles do Grupo Especial. O terceiro dia forte, na minha
concepção, só com o aumento do número de
escolas da Liesa. Se a Liesa voltar a ter dezoito escolas no grupo, com
a volta de Estácio, Ilha, Caprichosos e São Clemente,
esvaziam-se qualquer tentativa de sucesso da LESGA, pois, por mais que
respeitemos as demais filiadas, é lógico que o sucesso do
Acesso A está na participação de escolas
consagradas durante os anos pelo público.
E aí eu me pergunto. Se com o tempo, essas escolas citadas
subirem e permanecerem no Grupo Especial. O que será da LESGA?
Será que haveria a mesma motivação e interesse
para a sua continuidade? Será que sua criação foi
motivada pelo fato de hoje fazerem parte daquele grupo escolas que
estão acostumadas a um outro tipo de estrutura e tratamento?
Não podemos nos esquecer que duas fundadoras da LESGA
também são fundadoras da Liesa.
Eu entendo o lado das escolas do Grupo de Acesso A. Aquelas que foram
especiais, estão assistindo (não de camarote) o seu
distanciamento quilométrico do grupo ao qual pertenceram e se
algo não for modificado, elas dificilmente poderão um dia
voltar a ter a representatividade que um dia tiveram no mundo do samba.
Mas então por que se criar uma nova entidade? Será que
realmente se essas escolas, unidas com as demais escolas do Grupo B, C,
D e E, pressionassem o Poder Público para que a Liesa voltasse a
abrir as portas de sua gestão para uma inserção de
um maior número de escolas, com dezoito escolas (seis a cada
dia), para a criação do terceiro dia de desfiles do Grupo
Especial, não surtiria os efeitos desejados pelas escolas
fundadoras da LESGA?
Quais os novos desafios da Liesa? Falta-lhe a coragem que teve em 1985
ao romper com estruturas, custe o que custar, inclusive a
transmissão dos desfiles pela Rede Globo? Será que a Rede
Globo boicotaria o carnaval carioca, como no passado, se houvesse a
criação do terceiro dia de desfile? Por que não
abrir as negociações com a Record ou com outras
emissoras? Será que não está na hora de a Liesa
sair do acomodado desfile padronizado e das parcerias que nada
acrescentam de novo ao espetáculo?
Enquanto a Liesa e a Prefeitura preferem ignorar a realidade que lhe
rodeia, a LESGA tenta dar uma incrementada nos desfiles do segundo
grupo. Até temo que o tempo seja muito curto para que a nova
entidade, se sair do papel, possa mesmo ter condições de
administrar o desfile de 2009.
Só espero que os homens não se embatam e se unam para que
o carnaval do Segundo Grupo não passe em branco em 2009. Pois,
se considerarmos o tempo do pouco do que já foi conquistado (TV,
CDs, público, mídia) é temerário
arriscar-se sem uma estrutura digna e auto-sustentável.
Seria tão mais fácil, para todos, haver harmonia entre
Liesa, Prefeitura e AESCRJ. O público consumidor do carnaval
carioca agradeceria se as entidades se unissem em prol do carnaval
carioca.
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