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RESENHA SAMBARIO AULA DE HISTÓRIA REGADA A SAMBA
Gravado originalmente em outubro de “O Negro no Brasil” é uma grande
pérola então perdida inexplicavelmente. O disco, da gravadora
Som Livre, reúne doze sambas de enredo clássicos - cantados por
sambistas não tão conhecidos, mas renomados nas escolas de
samba cariocas - que remetem a história do Brasil através das
situações vividas pelo negro desde a escravidão encarada até
o grito de liberdade ecoado. Na concepção histórica, pode-se
dividir os assuntos predominantes nos sambas em três:
sofrimento, luta e libertação. A ordem das faixas é
cronológica, de acordo com o tema discutido na letra do
samba-enredo. Com riqueza harmônica, arranjos impecáveis e
cadência emocionante, o álbum abre com “Navio
Negreiro”, samba cantado pelo Salgueiro em 1957, inaugurando
a época de sofrimento dos nativos africanos retirados à força
de suas terras para serem escravizados numa terra estranha
denominada Brasil. O samba, além de exaltar as descrições
feitas por Castro Alves aos macabros navios, explica poeticamente
que “os negros amontoados e acorrentados em cativeiro /
no porão da embarcação / com a alma em farrapo de tanto mau
trato / vinham para a escravidão”. Notável a
participação do clássico Coral Som Livre, que atuou nos
programas e nas trilhas sonoras das novelas da Rede Globo nos
anos 70. E prossegue o infortúnio do negro nas duas faixas
seguintes, da Unidos da Tijuca: “Leilão de Escravos” e
“Negro na Senzala”. Sugestivamente, as melodias desses
sambas são tristes. O primeiro, cantado em 1961, é aberto pelo
refrão “quem dá mais, quem dá mais / negro é forte
rapaz” e tem como ponto forte seu estribilho central
“ôôôô / tenha pena de mim meu senhor / tenha por
favor”. Era uma época em que era possível passar a
mensagem de forma simples, didática e poética no samba-enredo.
Exemplo disso está no trecho “E na senzala / o contraste
se fazia / enquanto o negro apanhava / a mãe preta embalava / o
filho branco do senhor que adormecia”. No segundo samba,
de 1958, o negro evoca seus escassos momentos de diversão com as
lindas danças e cantorias na senzala, após trabalhar até cair
(trecho marcante da letra). Também fica clara a crítica aos
brancos opressores, donos dos engenhos de açúcar e das
plantações de algodão, no trecho “a casa grande /
requinte de grande fidalguia / mas sem o labor do negro / o
senhor nada fazia”. A fase de luta do negro se inicia na quarta faixa,
através de um samba também da Unidos da Tijuca. “Magia
Africana no Brasil e seus Mistérios”, de 1975, tem em seus
quatro primeiros versos a lembrança da escravidão. Mas o foco
da letra está na exaltação às origens do negro, repleta de
termos e saudações afro e cantada com melodia mais valente. Nos
dois sambas seguintes, é exaltada a luta de Zumbi, o grande
líder da fuga de escravos em Palmares. “Quilombo dos
Palmares” foi o enredo que resultou no primeiro título
salgueirense em 1960 e pioneiro na lembrança a Zumbi, um
personagem então obscuro que se tornaria posteriormente um dos
mais homenageados nos desfiles das escolas. A interpretação do
samba é de Dinalva, que também estampa a capa de “O Negro
no Brasil” segurando um retrato dos sambistas que participam
do disco, fotografados em frente à antiga quadra de ensaios do
Salgueiro localizada no morro. “Ganga Zumba”, cantado
pelo então bloco Canários das Laranjeiras em 1970, reforça que
Zumbi “foi um negro, foi um bravo / que o Brasil
abençoou / na senzala foi escravo / no quilombo foi senhor”.
Na sétima faixa, o extraordinário cantor Abílio
Martins abrilhanta “Valongo”, samba-enredo do Salgueiro
de 1976 que conta a chegada dos negros ao Rio de Janeiro, com o
desembarque no cais do Valongo, porto de entrada para mais de um
milhão de escravos entre 1780 e Um casal de personagens representativos da
escravidão aparece nas duas faixas seguintes. “Chico
Rei”, na minha opinião o melhor samba-enredo da história
do Salgueiro (de 1964), descreve a saga do escravo que, ao
trabalhar nas minas de Vila Rica, escondeu pó de ouro entre os
cabelos até conseguir juntar a quantia necessária para comprar
sua alforria. Noel Rosa de Oliveira, intérprete salgueirense nos
anos 60 e 70, dá vida a esta obra-prima de letra totalmente
didática, aliada a uma melodia emocionante. Em seguida, a
escrava que se torna rainha, “Chica da Silva”, também
gera outro samba-enredo fantástico para o Salgueiro (cantado em
1963). Na história, a mulata é arrematada como escrava, mas
acaba se casando com seu proprietário João Fernandes de
Oliveira. Destaque para os versos “E a mulata que era
escrava / sentiu forte transformação / trocando o gemido da
senzala / pela fidalguia do salão”. As duas últimas faixas simbolizam a liberdade do
negro. E estes dois sambas-enredo fazem parte de todas as listas
dos melhores de todos os tempos. “Sublime Pergaminho”,
da Unidos de Lucas de 1968, tem sua estrutura dividida em duas
partes. Na primeira, descreve com melodia triste o sofrimento,
inclusive reforçando que os negros eram iludidos com
quinquilharias. A partir do refrão central “E de repente
/ uma lei surgiu / que os filhos dos escravos / não seriam mais
escravos do Brasil”, a melodia passa a ser mais valente
e otimista, com a descrição da Lei dos Sexagenários (de
28/9/1885) que liberta os escravos com mais de 60 anos. Seria um
passo importante para a assinatura da Lei Áurea menos de três
anos depois. E, por fim, para fechar com chave de ouro este
álbum esplêndido, reaparece o timbre marcante de Abílio
Martins cantando “Heróis da Liberdade”, do Império
Serrano. Este samba-enredo, que particularmente considero o
melhor da história do Carnaval, foi composto para o desfile de
1969. Em plena época de anos de chumbo, com o país sob o vigor
do AI-5. O samba causou a indignação dos censores, que pediram
que a palavra “revolução” fosse trocada por
“evolução” no trecho “Já raiou a liberdade /
a liberdade já raiou / essa brisa que a juventude afaga / essa
chama que o ódio não apaga / pelo universo é a revolução /
em sua legítima razão”. O fim da faixa – e
conseqüentemente do disco – é apoteótico, com o refrão
“ôôôô, liberdade senhor” sendo entoado no
momento em que o coral canta triunfalmente: “liberdade,
liberdade”. Um momento de levar qualquer bamba às
lágrimas. “História do Brasil Através do Samba de Enredo – O Negro no Brasil” é uma autêntica aula de história regada a samba. É um registro singular do autêntico samba, que não pode faltar no acervo do aficionado pelo ritmo. Você aprende, saboreia o samba numa admirável cadência e ainda se emociona. Sem contar que o CD também pode servir para garantir boas notas na escola. Embora Noel Rosa tenha evidenciado que “ninguém aprende samba no colégio”. Mas que o samba, nesse caso, seria fundamental... isso não tem como negar. Uma exceção à regra do poetinha da Vila. |
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