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Os sambas do Grupo Especial do RJ 2024 por Carlos Fonseca

Os sambas do Grupo Especial do RJ 2024 por Carlos Fonseca

As avaliações e notas referidas apresentam critérios distintos dos utilizados pelo júri oficial, em nada relacionados aos referidos desempenhos que as obras virão a ter no desfile

A GRAVAÇÃO - A boa recepção de público e crítica do álbum ao vivo na Sapucaí de 2023, lançado pouco depois dos desfiles, foi o ponto de partida para a mudança de formato do álbum oficial. Gravado pela primeira vez na Cidade das Artes, na Barra da Tijuca, o produto final bebe do sucesso do trabalho anterior, ao trazer uma sonoridade que se aproxima dos áudios oficiais da avenida, com todos os músicos tocando juntos, sem aquelas violas ou cavacolões fazendo harmonias a todo instante ou efeitos de percussão aos montes, como era comum em discos passados – algo que foi possível pela ideia de liberar as escolas para desenvolver seus próprios arranjos. Para uma primeira experiência, o resultado é aceitável e bem feito, ainda que precise de ajustes. Senti falta de graves nos áudios (um problema constante nos últimos anos) e de maior presença do som das cordas, praticamente abafados. É algo que naturalmente será modificado para os próximos anos, a se manter o formato.

Falando da safra, consegue ser inferior a de 2023. Sem contar a reedição da Vila Isabel, três obras se destacam: Salgueiro, Mocidade e Portela – curiosamente, três obras com mensagens e estilos distintos, o que é ótimo pro carnaval. Há quem atribua a queda da qualidade das obras ao fato de um mesmo grupo de compositores monopolizar a maioria das disputas. Essa é uma discussão que deixo para outro campo. Prefiro acreditar que o irregular julgamento de samba-enredo dos últimos anos acovardou as escolas, que ficaram receosas por escolhas ousadas e passaram a optar por obras mais pragmáticas que possam trazer os 40 pontos na quarta-feira de cinzas. É um caminho perigoso que, a depender da caneta dos jurados em 2024, tendente a ser sem volta. - NOTA DA GRAVAÇÃO: 9.7

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1 - IMPERATRIZ - “Apostei na coroa e no coração”.

De volta à primeira faixa após 22 anos, a Rainha de Ramos fez de uma surpreendente junção um resultado razoável, chegando bem próximo do bom. A obra que narra os testamentos da cigana Esmeralda baseado num folheto escrito há mais de 100 anos peca em soluções simples de letra e melodia, mas tem sua força nos refrães: um mais assertivo “O destino é traçado na palma da mão / E a vida se equilibra em cada linha / Andarilho, sonhador / Na corda-bamba do amor / Encontrei minha rainha / (Ô Imperatriz)” (que particularmente gosto muito) e outro mais empolgante “Vai clarear, olha o povo cantando na rua / A Imperatriz desfila com a sorte virada pra lua”, que pode explodir no encerramento do primeiro dia de desfiles. Outro trecho interessante é o começo da segunda “Olhei o céu no infinito da constelação / A noite, o véu, eu vi os astros na imensidão”. Pitty de Menezes (numa atuação mais solta) e Mestre Lolo (com a competência rítmica de sempre) mostram, mais uma vez, o entrosamento que deu resultado em 2023 e que pretendem repetir no domingo de carnaval. Basta só a Esmeralda dar uma forcinha. - NOTA: 9.7 

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2 - VIRADOURO - “É o ninho da serpente, jamais tente afrontar”.

Um samba valente (e melodicamente desafiador) para o enredo, mas que apresenta as mesmas características do “Ensaboa” (2020, dos mesmos autores), tanto em virtude quanto em problema. O “porém”, no entanto, não tira as qualidades da obra. A primeira estrofe num todo é descritiva, faz uma introdução correta, mas sem tantos versos de destaque. O samba vai melhorando na virada do “Já sangrou um oceano pro seu rito incorporar” para o refrão central “Ergue a casa de Bogum, atabaque na Bahia” (que destaca a chegada do culto a Dangbé ao Brasil, através de terreiros em solo baiano) até chegar a segunda estrofe, mais poética – destaque a belíssima sequência “Vai serpenteando feito rio ao mar / Arco-íris que no céu vai clarear / Ayi! Que seu veneno seja meu poder / Bessen que corta o amanhecer / Sagrado Gume-Kujo”, facilmente o melhor momento da obra (e que tem uma ótima convenção da Furacão Vermelho e Branco na segunda passada), que prepara para o falso bis “Ê alafiou! Ê alafiá!” e o refrão principal. De volta à escola, Wander Pires conseguiu maravilhosamente bem cumprir seus dois grandes desafios – a responsabilidade de substituir Zé Paulo Sierra no microfone da escola e apagar de vez a nada saudosa passagem por Niterói em 2010. Não que precisasse provar nada a ninguém, afinal ele completará 30 anos de avenida em 2024, mas foi o que melhor aproveitou o novo formato do álbum. Talvez seja a sua melhor gravação na carreira. - NOTA: 9.8 


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3 - VILA ISABEL - “Gbalá é resgatar, salvar”.

Uma das maiores canetadas de Martinho da Vila volta à Sapucaí 31 anos depois. Só ele mesmo, em meados de 1992, para simplificar em obra-prima um enredo que a leigos olhos parece (atenção no “parece”) um tanto complexo – basta lembrarmos da explicação de Oswaldo Jardim ao “Debate Globeleza” à época, está disponível na internet. Em tempos onde as melodias quadradas predominam, ouvir a quebra no “E a inocência entrou no templo da criação / Lá os guias protetores do planeta” vai ser uma beleza. Claro que a gravação podia ter ficado à altura da obra (até a participação do seu Zé Ferreira, que foi mais tímida), particularmente tomei um susto na primeira audição quando entrou a terceira passada, mas... o que dizer de versos como “Conheceram os valores do trabalho e do amor / E a importância da justiça / Sete águas transformaram em sete cores / Que a beleza é a missão de todo artista”? Mais nada. - NOTA: 10 

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4 - BEIJA-FLOR - “Escola de respeito que coroa Benedito”.

Para uma linha de enredo que a Deusa da Passarela historicamente domina tão bem o resultado decepciona, ainda que seja um estilo de composição diferente do que a azul e branco vinha apresentando nos últimos anos. A história dos carnavais de Maceió sob a visão de Rás Gonguila é narrada da maneira mais gelada e convencional possível: usa aquela construção clássica de letra (o famoso 10-4-10-4), coloca um refrão pra inflamar o componente... e só! Além do mais, há problemas na mudança de narrativa da terceira para a primeira pessoa e a transição do refrão central pra segunda (“Gira-mundo feito pião que "gonguila" do jeito”) é melodicamente esquisita. Nem a boa interpretação do Neguinho e o espetáculo dado pela bateria na faixa salvam. Talvez seja o pior samba da escola desde o Boni (2014). Uma pena. - NOTA: 9.5

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5 - MANGUEIRA - “Um Brasil em tom marrom que herdei de Alcione”.

É um bom samba e a gravação num todo o melhorou bem, embora ache que Marrom merecesse algo ainda melhor. Tudo bem, a sensação talvez seja pelo enredo não ser exatamente biográfico e focar nas raízes da artista, no Maranhão, como fica claro no início da primeira estrofe “...Que a voz do amanhã já bradou no Maranhão / Tambor de Mina, Encantados a girar / O divino no altar, a filha de toda fé / Sob as bênçãos de Maria, batizada Nazareth”, que é seguido por uma virada melódica bem interessante em “Quis o destino quando o tempo foi maestro / Soprar a vida aos pés do velho cajueiro / Guardar no peito a saudade de mainha / Do reisado a ladainha, São Luís o seu terreiro”. A segunda estrofe começa com o controverso “Vai mostrar porque o samba é primo do jazz” (cantado jáz, numa forma de abrasileirar a pronúncia), mas termina com o melhor momento da obra: “Mangueira, de Neuma e Zica / Dos versos de Hélio que honraram meu nome” – cantado pela Marrom na abertura da faixa. Outro destaque ao refrão principal “Meu palácio tem rainha e não é uma qualquer / Arreda homem que aí vem mulher” que num outro estilo de gravação teria aquele tom bem pagodeado, do jeito que Alcione gosta. - NOTA: 9.8 

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6 - GRANDE RIO - “No meu destino a eternidade”.

A impressão que fica é de que o desenvolvimento do enredo, tido como complexo, atrapalhou o desenvolvimento musical, pois a inclusão de termos relativos ao tema sobre as onças no imaginário Tupinambá dificulta muito a métrica e (principalmente) a melodia. Aliás, a melodia toda em menor faz com que a obra tenha uns tons graves bem estranhos em alguns momentos – talvez por isso fiquei com a impressão de que o ótimo Evandro não tenha encaixado com o samba, ao menos na gravação. Além disso, o samba peca na repetição de soluções melódicas (um exemplo: “Tudo acaba em fogaréu / E depois transborda em mar / A terceira humanidade Cuaraci vem clarear”) e em rimas de sílaba alta “nas garras da sua ira / Enfrentou Maíra”, “Seus herdeiros vivem essa guerra, povoando a terra”). O único momento de destaque é o efeito falso-refrão do “Kiô! Kiô, kiô, kiô, kiera” na segunda estrofe. - NOTA: 9.7 

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7 - SALGUEIRO - “Pois a chance que nos resta é um Brasil-cocar”.

Precisou um tema pertinente, atual, e um enredo bem amarrado no desenvolvimento para o Salgueiro voltar a ter um grande samba-enredo. Que flechada certeira no alvo! Sem dúvida, a mensagem mais clara e correta possível para a defesa do povo Yanomami. Trechos como “Eu aprendi português, a língua do opressor / Pra te provar que meu penar também é sua dor / Falar de amor enquanto a mata chora, / É luta sem Flecha, da boca pra fora!” e o refrão “Ya Temi Xo Ya! Ae ea!” são fortes, mas a segunda estrofe “Você diz lembrar do povo yanomami em 19 de abril / Mas não sabe o meu nome / E sorriu da minha fome quando o medo me partiu / Você quer me ouvir cantar Yanomami / Pra postar no seu perfil / Entre aspas e negrito / O meu choro, o meu grito: nem a pau, Brasil” é um soco no estômago bem dado contra os discursos hipócritas. Que a escola consiga trabalhar bem no desfile, para que não acabe sendo um reboot do “Salgueiro Vermelho” (2003) – badalado no pré-carnaval, mas que não correspondeu a expectativa na Sapucaí. Um justo destaque para Emerson Dias, que, além da correta interpretação, teve a oportunidade, no grito de guerra, de fazer uma última homenagem em vida ao Quinho. Musicalmente falando, a Academia do Samba renasceu. E como renasceu! - NOTA: 10

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8 - PARAÍSO DO TUIUTI - “O dragão de João e Aldir”.

Para um senhor enredo sobre o “Dragão do Mar” João Cândido, um dos grandes personagens da história brasileira, esperava muito mais. A utilização de versos de “O mestre-sala dos mares”, clássico de João Bosco e Aldir Blanc, parecem que serviram apenas para preencher linhas e sublinhar o enredo. Ao menos, a azul e amarelo nos brinda com uma segunda estrofe fabulosa: “Meu nego... A esquadra foi rendida / E toda gente comovida / Veio ao porto em saudação / Ah! nego... A anistia fez o flerte / Mas o Palácio do Catete / Preferiu a traição” – talvez seja uma das melhores sequências de versos da temporada. Voltando a atuar no Grupo Especial após 10 anos, Pixulé interpreta o samba com uma bravura tão grande quanto a do homenageado. Que ele possa (e torcemos pra isso) ter novas chances na elite nos próximos anos, ele merece muito. - NOTA: 9.7

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9 - UNIDOS DA TIJUCA - “Que o fado vira samba e o samba vira fado”.

Tecnicamente bem fraco, mas que o velho poder do “banho de estúdio” transformou numa farofa escutável. A linha de desenvolvimento do tema sobre as lendas populares de Portugal não ficou bem traduzida, gerando um samba que apresenta (muitos) problemas em buracos melódicos e rimas batidas como “Um samba fadado / Ao mar do outro lado” ou “...nascia Lisboa / A musa das loas”, dentre outros. Porém, é impossível não se divertir com o refrão central “Põe no balaio um punhado de magia / Das divindades que invadiam o lugar / Põe no balaio e amassa com carinho / Que do cacho eu faço vinho / Pra colheita festejar” – o ponto alto da obra. Muito perspicaz o trecho “Portugal, das glórias revelam o passado / Ao monstro que sangrou escravizados”, na segunda estrofe, que menciona o passado escravocrata e espanta suposições de que o enredo seria uma “passada de pano” ao país – a intenção é mencionada pelos próprios compositores em entrevistas. Estreante no Borel, Ito Melodia ficou bem à vontade na interpretação. Em suma, é um samba que tenta repetir o modelo do “Evoé” da Vila Isabel: fraco, mas que tenta cativar a simpatia do ouvinte. - NOTA: 9.6

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10 - PORTELA - “Teu filho venceu, mulher!”.

Quase todo ano achamos que a Portela não vai ter aquele grande samba, que vai ficar por ali no meio de tabela da safra e tudo mais. Porém, ah porém, basta Gilsinho colocar a voz e a Tabajara entrar em ação que tudo vira mágica. E dessa vez não vai ser diferente. É um samba que, admito, subestimei até a primeira audição na faixa 10 – lugar que a águia não ocupava desde o CD de 2002. Pra além da mensagem do enredo ser passada com uma maestria ímpar, a obra é de uma sensibilidade ao apresentar versos como “Sagrado feminino ensinamento / Feito Águia corta o tempo / Te encontro ao ver o mar / Inspiração a flor da pele preta / Tua voz, tinta e caneta / No azul que reina Yemanjá” e “Em cada prece, em cada sonho, nêga / Eu te sinto, nêga, seja onde for / Em cada canto, em cada sonho, nêgo / Eu te cuido, nêgo cá de onde estou”. Apenas esses versos valem o samba inteiro. Em termos musicais, a Portela deu um salto enorme para se livrar do trauma deixado pelo frustrante centenário. - NOTA: 10

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11 - MOCIDADE - “A batida mais quente, deixa o povo provar”.

É bom, bonito, cheiroso, gostoso, sensual, sacana e todos os adjetivos que você possa definir. E, não por acaso, virou o grande hit do pré-carnaval. Muito além da melodia solta, a letra ao mesmo tempo te empolga no refrão “Meu caju, meu cajueiro / Pede um cheiro que eu dou / O puro suco do fruto do meu amor” e te diverte com sacadas impagáveis como “Eu quero um lote / Saboroso e carnudo / Desses que tem conteúdo / O pecado é devorar”; “Vai Debret! Chupa essa manga” e “O mel escorre, olho claro se assanha / Se a polpa é desse jeito, imagine a castanha” – na primeira vez que ouvi, ainda nas eliminatórias, terminei às gargalhadas de tão bom e criativo que aquilo era. Ainda soa estranho ouvir Zé Paulo Sierra defender outra escola, vide a grande identificação que criou com a Viradouro em quase 10 anos, mas, para além de encaixar perfeitamente com o samba com uma interpretação brilhante, respirar os ares de Padre Miguel o reinventou. E o que dizer desse “oooooi oi oi ooooooi” da introdução? Viciante! O caju deu samba! E um samba que exala a essência divertida do carnaval. - NOTA: 10 

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12 - PORTO DA PEDRA - “Tem alambique pra beber na quarta-feira”.

Apesar da letra bem extensa e ser melodicamente denso, é um lunário muito bem contado e que você não cansa de ouvir. Coloca-se em destaque a repetição do “Quem acendeu as lamparinas deste céu?” e o refrão “Só porque eu escolhi, navegar por esse mar! / A viola perguntou para o santo do lugar: / Responda, 'meu Sinhô'! Será que é amor? / Meu povo vai passar!”, que faz um efeito pergunta-resposta maravilhoso. Gosto também do “Tanta gente esperou por esse dia / O pincel e a cantoria nunca foi ponto final”, que abre a segunda. De volta à escola após 26 anos, Wantuir dá um toque especial ao samba com uma categórica interpretação, demonstrando que apesar do longo tempo de separação, ele e a Paixão e Orgulho de São Gonçalo sempre foram feitos um para o outro. Faltava o Tigre pro lunário completar. Faltava a Porto da Pedra no desfile principal. Faltava Wantuir pra essa volta ficar completa. - NOTA: 9.9