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Os sambas de 2023 por Carlos Fonseca

Os sambas de 2023 por Carlos Fonseca

As avaliações e notas referidas apresentam critérios distintos dos utilizados pelo júri oficial, em nada relacionados aos referidos desempenhos que as obras virão a ter no desfile

A GRAVAÇÃO - As críticas a gravação do CD de 2022 fizeram as peças se mexer. Neste ano, a produção do álbum ficou a cargo de Alceu Maia, função que o experiente cavaquinista já exercera (em contexto bem diferente de hoje) nos discos de 1998 e 1999, quando dividiu o posto com o saudoso Laíla e Mário Jorge Bruno - que voltou a auxiliar os trabalhos de produção depois de captaniá-los. A diferença do trabalho feito para 2023 em relação ao disco do carnaval passado é, de longe, perceptível: um som mais equalizado, mais caprichado, introduções curtas e bateria tendo todo o destaque, fazendo algumas poucas convenções na segunda passada. Outra alteração notável é o intérprete revezando o canto com o coral em alguns momentos, expediente que certamente teve a patente de Leonardo Bessa, que também integrou a equipe de produção e já executou o recurso em discos da antiga Série A na década passada. Talvez se aumentassem um pouquinho (um pouquinho só) o som das cordas, ajustassem um pouco mais os graves e dessem mais destaques aos detalhes harmônicos, aí sim, ficaria aquela gravação perfeita. 

Se em 2022 tinha safra de mais e gravação de menos, pra 2023 a lógica se inverte. Se o produto final é satisfatório, os sambas nem tanto. A safra do Grupo Especial em 2023 é inferior em relação ao carnaval passado, mas não chega a ser catastrófica como se pintava nos prognósticos iniciais. Num cenário que é predominado por obras que são de razoáveis para boas, Mangueira, Império Serrano, Viradouro e Tuiuti se sobressaem e, até com alguma folga, são os melhores sambas da temporada. Nos demais, em alguns casos específicos, parece que ficou a sensação de que o resultado é bom mas podia ser melhor. Fica no ar: a inspiração poética que sobrou em 2022 ficou pelo caminho nos desfiles de abril passado e a tal zona de conforto na estrutura dos sambas predomina ou nós estamos exigentes demais? - NOTA DA GRAVAÇÃO: 9.7

1 - GRANDE RIO - "Xerém é o seu quintal".

O ano era 2007 quando a tricolor cantou sua Duque de Caxias com estes versos: “E com Zeca Pagodinho, deixo a vida me levar / Eu me chamo Grande Rio e qualquer dia chego lá”. Pois é, 15 anos se passaram e o verso tornou-se profético: em 2022 a Grande Rio chegou lá (afinal, Exu venceu!) e no carnaval que defenderá um título pela primeira vez terá Zeca Pagodinho como homenageado do enredo. A obra cartão-de-visitas do disco e que embala a primeira faixa 1 da história da escola caxiense é bem correta, funcional pro enredo e tem como grande trunfo o refrão central “Ê, que bela quitanda, quitandinha de erê / Seu balancê! / Tem quitandinha de erê”, que é envolvente e certamente vai pegar fácil no desfile. A letra descreve bem a proposta de coloca-lo como um cronista da vida dos subúrbios cariocas (o começo “Ô Zeca, tu tá morando ondé? / Saí com meu povo a te procurar” é um barato), ainda que não fuja de citações a suas principais canções – caso do já citado refrão do quitandinha, do bis principal, “Quem tem um santo poderoso que é Ogum? Eu tenho”, “Assim vou vadiar até no gurufim”. Faço ressalvas a gravação que podia ser mais caprichada pois deixou de destacar alguns naipes da bateria – Zeca participa da faixa (acompanhado dos conhecidos acordes de realejo de Rildo Hora) cantando a introdução e fazendo intervenções em meio a categórica atuação de Evandro Malandro. É um samba bom, mas fica bem abaixo em comparação aos dois anteriores. - NOTA: 9.8

2 - BEIJA-FLOR - "Ô abram alas ao cordão dos excluídos".

É aquele (na maioria das vezes) bom e velho estilo de samba que a Beija-Flor já se acostumou a apresentar: melodias pesadas com letras bem descritivas e pontos muito fortes. A obra que exalta o bicentenário da Independência da Bahia como a real independência do Brasil, desmitificando o 7 de setembro fincado pela história oficial, é firme, questionadora, no começo coloca o dedo na ferida em versos como “A revolução começa agora / Onde o povo fez história / E a escola não contou / Marco dos heróis e heroínas / Das batalhas genuínas / Do desquite do invasor”, “Desfila o chumbo da autocracia / A demagogia em setembro a marchar”, “Ordem é o mito do descaso / Que desconheço desde os tempos de Cabral” e no final exalta os “excluídos” pedindo que estes estejam a frente do poder: “Pela mátria soberana, eis o povo no poder / São Marias e Joanas, os Brasis que eu quero ter / Deixa Nilópolis cantar! / Pela nossa independência, por cultura popular“. O melhor momento da obra, porém, é o ótimo refrão central: “Êh! Vim cobrar igualdade, quero liberdade de expressão / É a luta pela vida, é a vida pelo irmão / Baixada em ato de rebelião!”. Na faixa, Neguinho da Beija-Flor divide a interpretação com a cantora Ludmilla, rendendo uma interessante parceria, mas ainda quero entender o andamento bem acelerado... Por fim, tal como no carnaval passado, um verso resume a sintonia perfeita entre escola e tema: “Além dos carnavais, o samba é que me faz / Subversivo Beija-Flor das multidões”. - NOTA: 9.9

3 - VIRADOURO - "Eu sou a santa que o povo aclamou".

A escola de Niterói tem em mãos um grande samba para narrar a história de Rosa Maria Egipcíaca, primeira negra a escrever um livro no Brasil. Se não tem aquela dolência sugerida para um encerramento de carnaval, a melodia toda valente dá a obra uma força muito grande. A grande sacada foi a construção da letra, iniciada pela introdução de um narrador ("Rosa Maria, menina flor / Rainha do espelho mar / Na pele do tambor") com a personagem passando a contar sua história na sequência, (a partir do "Distante me encontro das origens"), fechando com um pequeno diálogo no falso refrão “Eis a flor do seu altar, sua fé em cada gesto / O amor em cada olhas dos filhos meus”, terminado de duas formas -“Sou Rosa Maria, imagem de Deus” na primeira, “Imagem de Deus, sou eu” na segunda. Destaques ao ótimo refrão "É vento na saia da preta courá / Na ginga do Acotundá... / É ventania", mais balanceado, e para o trecho "Senti a alma daqueles, os mais oprimidos / Venci heresia na fé dos divinos / A mais bela rosa aos pés do Senhor" na segunda estrofe. As intervenções da Furacão Vermelho e Branco (com um andamento bem mais lento para o que acostumamos a ouvir das baterias de Mestre Ciça) nas bossas e a ótima interpretação de Zé Paulo Sierra dão um requinte a mais a obra. Se havia alguma dúvida qualquer sobre ser um dos melhores sambas do ano, a ótima gravação (talvez uma das melhores do disco) fez questão de terminá-la por completo. - NOTA: 10

4 - VILA ISABEL - "O ano inteiro sou festeiro e sou feliz".

Mais um daqueles sambas que seguem a cartilha de ser mera trilha sonora para Paulo Barros soltar sua imaginação nos 70 minutos de avenida. A diferença é que falta muita qualidade. É uma obra limitada do início ao fim, poeticamente risível, que não foge do lugar comum, preso a uma lista de supermercado pra caber todas as citações possíveis as festas relacionadas à religiosidade, saindo um amontado de jargões como "Ver o sagrado e o profano em sintonia", "É o dom de superar / Renovando a esperança" e por aí vai. Por incrível que pareça, a produção tornou o samba audível, até agradável em certos momentos. Tinga faz mais uma atuação convencional na faixa. Em suma: é um samba bem fraco, mas que tenta arrancar a simpatia do ouvinte. - NOTA: 9.6

5 - PORTELA - "Cem anos da mais bela poesia".

Abaixo, mas bem abaixo do que se esperava pelo apelo histórico que carrega um enredo que celebra o centenário portelense. Podendo ter um samba mais carregado pelo valor emocional, a águia opta por um caminho melódico mais tradicionalista, muito do arroz-com-feijão básico. A premissa da história da escola ser contada por Paulo Benjamin de Oliveira é interessantíssima, mas careceu de um capricho bem maior. Sinceramente, acho um erro crasso limitar tantos enredos históricos da Portela em aspas, é algo que podia ser melhor explorado. A obra melhora a partir da segunda estrofe, em específico do trecho “Vivam esse sonho genuíno / De fazer valer nosso legado / Vejo um futuro mais lindo / Nas mãos de quem sabe o valor do passado” ao refrão, que pede benção ao eterno mestre Monarco e brada que “O céu de Madureira é mais bonito”. Honrado somos nós que vamos testemunhar e celebrar o centenário de uma das grandes instituições carnavalescas do país, mas faltou caprichar na trilha sonora. - NOTA: 9.7

6 - SALGUEIRO - "Vermelha, paixão salgueirense".

Horrível. Os compositores tentaram arrancar leite da pedreira e salvar um enredo de desenvolvimento muito complicado, mas o soneto conseguiu ficar pior que a encomenda. É um samba quilométrico que fala, fala, fala... e não fala nada, uma junção de melodia animadinha e quase reta, remetendo a tão famosa busca pelo Ita perdido (lembra?), com uma letra cheia de colcha de retalhos e jargões soltos em trechos como "Basta! De violência e opressão! / Chega de intolerância!", "Guerra, fome e mazelas, nunca mais", "Da escuridão, raiou o dia", "A vida em perfeita harmonia", entre outros. Pois afinal, do que se trata o enredo? É Joãosinho Trinta? É o Éden? São as mazelas sociais? É tudo no mesmo balaio? Pra piorar, Emerson Dias faz de tudo, mas parece que briga com o samba - o melhor momento dele na faixa certamente foi a homenagem à Quinho, que por questões de saúde não poderá desfilar no próximo carnaval. Outra vez, o Torrão Amado apresenta um samba que será facilmente esquecido após a quarta-feira de cinzas. Tem dia... ou melhor, tem ano que nem mesmo a competente ala de compositores da Academia consegue salvar um estrago do tamanho da Rua Silva Teles... - NOTA: 9.4

7 - MANGUEIRA - "Quando o verde encontra o rosa toda preta é rainha".

A africanidade através dos movimentos carnavalescos da Bahia resulta num samba excepcional, com cara, corpo e pegada de Mangueira, carregado da ancestralidade que o tema pedia. É uma melodia envolvente, que em algumas nuances remete ao toque o axé. Particularmente sou admirador nato dessa letra, certamente uma das melhores dessa temporada, com ótimos refrães e repleta de versos fortes como “Sou eu, Mangueira, a flecha da evolução”, “Áfricas que recriei / Resistir é lei, arte é rebeldia”, “Com ganzás e xequerês fundei o meu país / Pelo som dos atabaques canta meu país”, “Meu cabelo black, negão, coroa de preto / Não foi em vão a luta de Katendê / Sonho badauê, revolução didá”, entre outros. Destaque ainda a um agogô sobressaindo na bateria em toda a faixa e a parceria entre Marquinho Art'Samba e o prata da casa e estreante Dowglas Diniz, apesar de que a produção do álbum tenha misturado demais suas vozes - a dupla ganha a companhia de Margareth Menezes, em participação especial na faixa a exemplo do que fizera na versão das eliminatórias. O melhor samba da temporada dentre os que estão no pelotão da frente - e candidatíssimo ao Estandarte - faz o samba ir morar "onde o Rio é mais baiano" e ter altas expectativas para o encerramento do desfile de domingo. - NOTA: 10

8 - MOCIDADE - "Quem foi que fez? Foi Deus do barro".

A produção do CD deu a dolência que parecia faltar ao hino verde e branco, que ficou tão bom de ouvir (ou ainda melhor até) em relação a versão das eliminatórias. A letra é bem construída, narra bem a história dos artesãos do Alto do Moura buscando soluções poéticas como no trecho “A lida pra viver, da lama renascer / Marias e Josés no céu que moram pés, raiz! / Fiel retrato desse meu país”. Gosto muito da cabeça das duas estrofes “Senhor que fez da arte mundaréu / Em suas mãos Padre Miguel” e, principalmente, “Molha Pedro minha terra / Chão de estrelas de João / Traz Antônio minha amada / Padim Cícero Romão / Alumia o teu povo em procissão!”. Os refrães são bem regulares, além do mais que, para enredos que tratam de artesanato, claro que não poderia faltar os trocadilhos “Amassa” (de amassar) e “A massa” (de multidão). Nino do Milênio, estreante nas bandas de Padre Miguel, faz uma interpretação segura. A chama do braseiro mantém acesa o bom nível de obras da discografia recente da estrela-guia. - NOTA: 9.9

9 - UNIDOS DA TIJUCA - "Pau Brasil, barril dobrado".

Longe de ser brilhante como o Waranã, mas apresenta bem a história da Baía de Todos os Santos. É um samba corretinho, de melodia bem balanceada, alternando tons baixos e altos, que não cai em qualquer momento apesar da longa segunda estrofe e de algumas pequenas esticadas em versos pra caber na métrica – como “Pra louvar meu Santo Antônio / Pra louvar meu pai Xangô” e “Ó paí, ó! É carnaval”, por exemplo. A letra não tem tantos momentos de destaque, é mais descritiva e recorre a alguns recursos já conhecidos para enredos dessa linha – o maior exemplo é o refrão principal. Curto muito o refrão central (“Ilu Ayê, toca o sino da igrejinha / Ilu Ayê, atabaques e agogôs”) e o trecho “Bota dendê e um "cadinho" de pimenta / Que a marujada vem provar o vatapá / É no mercado, na Lapinha ou na Ribeira / Se tem samba e capoeira / Camafeu também está” na segunda estrofe. Wantuir e Wic Tavares (dona de quase todos os prêmios de revelação do carnaval passado) se destacam ditando o equilíbrio perfeito a faixa tijucana, interpretando uma passada cada. Faltou um “cadinho” de pimenta pra estar no primeiro pelotão, mas é um samba bom de ouvir e cantar. - NOTA: 9.8

10 - IMPERATRIZ - "Eis o destino do valente Lampião".

É um bom samba, ainda que esperasse um pouco mais para o interessante enredo. Mas é inegável notar a renovada de astral que a produção do álbum deu a ele em relação as eliminatórias. Numa letra que descreve a história com correção, sem tirar nem por, o grande ápice são seus refrães, sobretudo o da cabeça “Imperatriz veio contar pra vocês / Uma história de assombrar / Tira sono mais de mês” - sem dúvida uma das melhores aberturas da temporada. O central (“E foi-se então... adeus capitão! / No estouro do pipoco / Rola o quengo do caboclo / A sete palmos desse chão”) resume a morte de Lampião de forma poeticamente criativa, enquanto os outros dois são mais balanceados - curto muito o terceiro bis “Pelos cantos do sertão... vagueia, vagueia / Tal qual barro feito a mão misturado na areia”. O grande destaque da faixa leopoldinense vai para Pitty di Menezes, finalmente ganhando sua primeira oportunidade no Grupo Especial, que foi fundamental para moldar esse novo astral da obra (com enorme ajuda da Swing da Leopoldina), mostrando porque é um intérprete diferenciado e desponta pra ser uma das grandes joias da geração recente de cantores. - NOTA: 9.8

11 - PARAÍSO DO TUIUTI - "Chama o mestre Damasceno pra entoar esta canção".

Outro ótimo samba pra discografia azul e amarela, agora para narrar a história do folclore dos búfalos da Ilha de Marajó. É uma melodia solta, gostosa de ouvir, daquelas que convidam pro reapet, aliada a uma letra que estruturalmente lembra obras recentes da escola (cujo autores são quase os mesmos) mas que conta objetivamente o enredo, com uma primeira estrofe bem descritiva e uma segunda com ótimas passagens, indo do “A mão que modela a vida”, passando pelo ótimo segundo refrão "É lá, é lá, é lá! / Canoeiro vive só morená / É lá, é lá, é lá! / Mas precisa de um xodó" e finaliza no divertido bis “Cadê o boi? O mogangueiro, o mandingueiro de Oyá”. Estreante na escola de São Cristóvão, Wander Pires faz mais aquela interpretação categórica, ajudado por uma SuperSom que se solta nas bossas na segunda passada. - NOTA: 10

12 - IMPÉRIO SERRANO - "O brado que traz justiça faz a vida recompor". 

Arlindo Cruz ganhou uma homenagem a altura de sua história, pois é um samba que cativa pela emoção que ele proporciona. E nem mesmo as inoportunas mudanças (prezando pela funcionalidade e melhor fluidez no canto) tiraram seu brilho. A concepção da letra em formato de acróstico, formando seu nome completo (Arlindo Domingos da Cruz Filho), apresenta soluções poéticas bem interessantes, como a repetição do "Dagô, Dagô" nos refrães centrais. O melhor momento da obra, porém, é a segunda estrofe, inspirada de ponta a ponta: "Deixa, o fim da tristeza ainda há de chegar / O show do artista vai continuar / Morando nos sambas que você fez pra mim / Imperiano sim! / No verso que aflora / Giram os sonhos da porta-bandeira / O amor de Orfeu melodia namora / Serrinha é teu canto pra vida inteira". Outro grande momento, dessa vez na faixa, é a batida em partido alto na virada da primeira pra segunda passada do samba - a partir da cabeça "Acorde partideiro sem igual, nascia então, um samba do seu jeito". Principal contratação da Serrinha em sua volta ao Especial, Ito Melodia (que na elite não cantava por outra escola que não fosse a União da Ilha desde o Porto da Pedra no ano 2000) faz uma interpretação segura, bem ao seu velho estilo. Em termos musicais, o Império promete emocionar na abertura dos desfiles, afinal, nada mais simbólico que um samba em homenagem ao Arlindo seja escrito por um grupo de compositores liderado por Sombrinha, seu eterno parceiro “da música” (citando a canção que juntos escreveram há 27 anos) desde Fundo de Quintal, passando pela dupla que formara nos anos 1990. - NOTA: 10

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