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Os sambas de 2022 - São Paulo por Bruno Malta

Os sambas de 2022 - São Paulo por Bruno Malta


INTRODUÇÃO - O próximo Carnaval previsto para fevereiro de 2022 já tem suas trilhas-sonoras. Estilos de enredo diversificados apresentam novos perfis para o gênero. Apesar do domínio de parcerias consagradas, composições buscam fugir do lugar-comum nas letras, mas flertam com a morosidade melódica onde tudo é pensado somente em como o componente vai cantar. Safra tem resultado surpreendente com várias escolas optando por novas fórmulas e consegue resultado superior ao dos últimos anos, mas segue aquém do esperado.

Para entendermos o resultado da safra de São Paulo é preciso voltar no tempo. Na última década, o Carnaval do Anhembi sofreu com enredos de profundidade paupérrima ou inexistente e com a proliferação de fórmulas prontas para a composição de uma trilha-sonora. Se nos anos 90, muitos refrães possuíam construções da linha “arrasta-povo” com “sacode”, “balança”, “arrebenta”, “delira”, os anos 2000 trouxeram uma nova roupagem com “escola do meu coração”, “voz da emoção”, “é a razão da minha vida” com os sambas seguindo o padrão do desfile sublinhando superficialmente os pontos visuais da escola e um refrão na linha da exaltação que conquiste o coração do componente. Assim sendo, muitas safras se tornaram esquecíveis. Todas as obras pareciam iguais. Ao passo que no Rio de Janeiro, espelho e referência desde sempre para os sambistas paulistanos, existiu uma intensa troca de perfis.

Se por lá, a linha adotada em São Paulo vinha desde o fim dos anos 90 e teve seu auge na década de 2000, a partir dos anos 2010, a geração de compositores formada por André Diniz, Cláudio Russo, Lequinho, Luiz Carlos Máximo e outros, buscou entregar o algo a mais que o gênero pede. Antes de tudo é preciso ressaltar que o samba de enredo é épico, precisa ter um ponto além que cative e que, acima de tudo, prolifere a mensagem para o posterior. A obviedade não é parte disso e nem nunca foi sinônimo desse tipo de música. Com essa mudança, trilhas históricas voltaram a surgir após uma década de poucas obras memoráveis. Nesse cenário, é possível destacar composições como “O Brasil de Todos Os Deuses” (Imperatriz 2010), “Bahia: E o povo na rua cantando é feito uma reza, um ritual…” (Portela 2012), “Você semba lá… Que eu sambo cá — O canto livre de Angola” (Vila Isabel 2012), “É o amor… Que mexe com a minha cabeça e me deixa assim… Do sonho de um caipira nascem os filhos do Brasil” (Imperatriz 2016), “Monstro é aquele que não sabe amar: Os filhos abandonados da pátria que os pariu” (Beija-Flor 2018) e o antológico “História para ninar gente grande” (Mangueira 2019).

Mas e São Paulo? Onde fica nisso tudo? Muitos vão argumentar que a cidade teve bons sambas e, de fato, teve. “A Música Venceu” (Vai-Vai 2011), “Ojuobá — No Céu, os Olhos do Rei… Na Terra, a Morada dos Milagres… No Coração, Um Obá Muito Amado!” (Mocidade Alegre 2012), “Minha missão. O canto do povo. João Nogueira” (Águia de Ouro 2013), “Simplesmente Elis. A Fábula de uma Voz na Transversal do Tempo” (Vai-Vai 2015)… temos exemplos de grandes obras que deixam pontos positivos para o gênero. Mas vamos pensar: Qual foi a maior comunicação popular entre um samba e a arquibancada nos últimos 10 anos no Anhembi? Muitos vão mencionar Vai-Vai 2015 e outros tantos vão citar Gaviões da Fiel 2019 (reedição de “A Saliva do Santo e o Veneno da Serpente”, original de 1994). Não irá fugir desses dois. E se formos analisar os dois de forma aprofundada, vamos entender o que pode explicar o que acontece por aqui. Vai-Vai 2015 é um belo samba desde as eliminatórias, com grandes sacadas na construção de sua letra, mas que criou sua “síncope” e seu ganhou seu tom de “épico” na introdução de uma música de Milton Nascimento no CD oficial. Da introdução da consagrada “Maria Maria” emendando no “lareilarei”, a obra saiu de um bom samba como tantos outros para o “épico”. Ganhou seu “charme”, sua saída para história. 

E o Gaviões? O Gaviões em todos os últimos anos viu seus sambas morrerem no setor B. Exceto um. O samba de 2019 que era uma reedição. Mais do que um samba qualquer, a obra é, de fato, um hino de arquibancada, sendo cantado nos estádios pelo Brasil todo. Composto por Grego e Magal para o Carnaval de 1994, a construção é totalmente diferente do que estamos acostumadas. Recheada de refrães que se emendam um no outro, a trilha é pesada, forte, densa e recheada de “síncopes”, de “tons épicos”. Da cabeça ao fim, você não consegue definir qual é o trecho que o tira mais da cadeira. Você sente. E música é isso. É sensação, antes de tudo. Por tudo isso exposto, já seria possível explicar os motivos que levam a CDs fraquíssimos ano após ano. Enredos ruins, fórmulas prontas e falta de ideias que façam o samba ganhar momentos de epopeia. Mas some a tudo isso que já mencionei, o fato de que o critério de julgamento é ruim. E, sem dúvida, ele é.

Observem: São quatro sub-quesitos; Fidelidade, adequação, riqueza poética e divisão melódica. Com uma variação de notas entre 9,0 e 10,0 e com três itens que falam somente de questões relacionadas a letra, mas somente um que explora a riqueza poética da mesma, as obras ficam com possibilidade real, perante o perfil do julgamento adotado pela Liga, de perderem, no máximo, 0,5, sendo três décimos de melodia e dois décimos de riqueza poética. Adequação e fidelidade são itens que poderiam causar perda de pontos se fossem seguidas à risca, já que há vários exemplos de versos que se tornam desconexos com os enredos e os projetos de desfile de cada escola como observamos nos últimos anos, mas quantos deles são, de fato, punidos? Nenhum. O máximo é sempre riqueza poética e divisão melódica e quase sempre com justificativas como “muita letra pra pouca melodia” que não agregam em nada para apontar alguma falha efetiva. Pronto. Está concluída a somatória que reflete o produto de baixíssima qualidade que ouvimos nos desfiles do Anhembi.

Critérios de julgamento — 2020

Fidelidade 
-  Um trecho do samba (0,1) 
- Dois ou mais trechos do samba (0,2)

Adequação
 - Um trecho do samba (0,1)
- Dois trechos do samba (0,2)
- Três ou mais trechos do samba (0,3)

Riqueza Poética
-  Um trecho do samba (0,1)
- Dois ou mais trechos do samba (0,2)

Divisão Melódica 
-  Um trecho do samba (0,1)
- Dois trechos do samba (0,2)
- Três ou mais trechos do samba (0,3)

Observação: Visando engrandecer sua apresentação, a Escola de Samba poderá adotar erros propositais de português, ainda que graves, como liberdade de linguagem ou licença poética. Essas eventualidades deverão estar diretamente relacionadas com o enredo proposto pela Escola de Samba. É importante frisar o que está em julgamento é a canção, não o seu cantor. As características dos intérpretes da Escola de Samba não deverão ser levadas em consideração, restringindo-se o jurado à análise nos pontos descritos acima.

O julgador não deverá levar em consideração para atribuir as notas:
a) Cacofonia
b) Quadrante dentro da estrofe, a rima não deverá obedecer a uma ordem. Exemplo: termino da frase 1 com termino da frase 3 e termino da frase dois com termino da frase quatro.
c) A inclusão de qualquer tipo de merchandising (explícito) em sambas de enredo
d) A eventual pane no carro de som e/ou sistema de sonorização da passarela.
e) A veracidade dos fatos narrados na letra. O jurado deverá respeitar o universo criado pelo Enredo desenvolvido pela a Escola de Samba, pois ela é quem define o que é verdade e o que é mentira dentro do tema proposto.
f) Gostos ou opiniões pessoais quanto à tonalidade ou forma de execução da música. Deverá respeitar as características melódicas de cada obra, avaliando dentro da proposta trazida para o desfile.
g) Qualquer gravação anterior que tenha ouvido do samba de enredo apresentado. O julgamento deve ser feito exclusivamente com base naquilo que é apresentado no dia do desfile e executado pelos componentes da Escola de Samba.
h) Questões inerentes a quaisquer outros quesitos, restringindo-se aos pontos apresentados neste Manual.

Observação: A gravação do CD é apenas uma gravação publicitária, o Samba de Enredo poderá sofrer alterações na letra ou na melodia até a data da entrega da pasta dos jurados na LIGA.

Fidelidade: A letra do samba de enredo tem que estar dentro da proposta de enredo da Escola de Samba. Em hipótese alguma a letra pode contradizer o Enredo. A letra do samba não tem obrigação de citar cada uma das alas e carros alegóricos, nem de seguir a ordem proposta pela montagem de desfile.

Riqueza Poética: A adaptação da letra do samba de enredo à melodia com perfeito entrosamento do fraseado melódico e seus versos, levando em conta as variações tonais, modais e melódicas.

Divisão Melódica: A letra do samba de enredo deverá estar dentro da métrica melódica proposta pelo samba, mantendo as características de um samba de enredo (Acentuações melódicas e figuras rítmicas binárias e quaternárias).

Adequação: Observar se os principais pontos do enredo fazem parte da letra do samba.

Recomendações importantes ao preencher a cédula de julgamento: Seja claro no apontamento das falhas, indicando: Descrição clara da ocorrência e ponto de avaliação ferido. Trechos do samba em que identificou o problema ou, caso seja uma ocorrência de adequação, pontos importantes da sinopse que não foram abordados.

Nesse cenário, as obras se tornaram previsíveis e um tanto quadradas. Há desenhos melódicas que se repetem ano após ano. Escutem atentamente o trecho “guardiões da terra prometida” no samba da Império de Casa Verde de 2020. Parem e pensem: Quantas vezes aquela célula melódica já foi usada em São Paulo? Incontáveis. E o “meu coração é comunidade” do samba do Águia de Ouro do mesmo CD? Quantas vezes já vimos versos com esse perfil? Inúmeras. Incontáveis. Há uma eterna sensação de que todas as composições são iguais e é, de certo modo, uma verdade. Parcerias consagradas em São Paulo disputam em praticamente todas as escolas e criam fórmulas que são reutilizadas nos mais variados enredos dos perfis mais distintos. Vemos saídas usadas em temas afros em homenagens, de homenagens em CEP, de CEP em afro. É como se um restaurante tivesse um cardápio curto para muitas pessoas. Em algum momento, o mesmo prato vai acabar saindo para duas pessoas de gostos e estilos diferentes. Uma delas, ficará satisfeito. A outra, nem tanto. É o que acontece no samba-enredo na Terra da Garoa.

Com isso, a eterna sensação de que “temos a pior safra de samba-enredo da história” é recorrente ano após ano. Em 2020, particularmente, penso que chegamos ao fundo do poço. Quantos sambas serão lembrados desse Carnaval? 1? 2? Não passará de três. Um conjunto de catorze obras que não conseguiu entregar nem cinco que flertam com o mínimo de qualidade para o gênero é o máximo de ruindade estabelecido nessas bandas. É algo que se tornou esquecível ou inesquecível de tão ruim, ficando ao gosto do freguês, a melhor definição. 2022 renovou a esperança. Uma belíssima leva de enredos surgiu e a chegada de compositores consagrados no Rio de Janeiro trouxe uma faísca de renovação dos vencedores. O que vimos é que, novamente, o desfecho flerta com a obviedade. Os nomes e os conceitos, de certo modo, mudaram. A tentativa de sair do lugar-comum criou resultados que fogem do tradicional das agremiações, principalmente em escolas tradicionais como Mocidade Alegre, Gaviões da Fiel e Rosas de Ouro. Dessa maneira, surgiram parcerias jovens vindas do Rio, mistura de compositores das duas cidades e até adaptações de sambas de meio de ano. Nada disso impediu que terminássemos as escolhas com a sensação: Poderia ser melhor. E é disso que trataremos falando escola por escola, das temáticas e de como os sambas exploraram cada uma delas.

1 - ÁGUIA DE OURO - Atual campeão do Carnaval de São Paulo, o Águia de Ouro apresenta o enredo “Afoxé de Oxalá — No ‘Cortejo de Bàbá’ Um Canto de Luz em Tempos de Trevas” que conta uma história forte, densa e conectada no momento em que vivemos. É como se o desfile servisse como um manifesto contra a intolerância religiosa em tempos difíceis, especialmente para as vertentes das religiões afro-brasileiras. A proposta é construída através da música “Afoxé de Oxalá” de Luiz Antônio Simas e conclama um cortejo (afoxé) para o orixá da paz (Oxalá). Nessa passagem, o amor e a esperança por dias melhores são fundamentais.

A junção de duas composições no concurso interno resultou numa obra assinada por vinte e um compositores. São eles: Dominguinhos do Estácio, Jorginho Moreira, João Perigo, Lico Monteiro, Leandro Thomaz, Telmo Augusto, Jefferson Oliveira, Jota Pê, Lanza RafaBerê, Araken Kaoma, Solano Laranjo, Serginho Rocco, Rosali Ahumada Carvalho, Lequinho, Junior Fionda, Claudio Russo, Rafael Tinguinha, Gustavinho Oliveira, Waldir Corrêa, Orlando Ambrósio e Wiverson Machado. O resultado dessa união rompe alguns paradigmas na cidade em termos de defesa da temática, mesmo que ainda não seja exatamente perfeito perante o critério técnico.

O início da primeira começa com “Bateu forte, opaxorô e a terra tremeu // o mundo se modificou // clêmencia e paz aos filhos teus // clamavam sete yaôs”. Para contextualizar, o enredo começa com a chegada de Oxalá na terra. Ele bateu forte com seu cajado e sentenciou: “Se clamam por misericórdia e paz, somente há um caminho a seguir: Ouçam a voz da energia ancestral emanada no ritual das Águas de Oxalá e conhecerão um intenso canto de luz”. É nesse contexto que a história é desenvolvida. Sete yaôs seguem os caminhos propostos pelo grande Babalorixá em busca de clemência e paz para a terra. O problema é o que vem depois. “Levando o canto de axé…axé // cabeça feita na fé // Meu pai nos dê proteção na escuridão…a tua luz // a luz”. O canto que traz a energia vital, a busca incessante pela fé, o pedido pela proteção…mas quem faz tudo isso? Os iaôs, certo? Mas eles já não pediam a clemência e a paz no início? Redundante, certamente (-0,1 fid.).

Para a sequência, o samba engata com “O horizonte veste branco // Para amenizar a dor // Lavar o engano que sofreu o Criador // O Criador”. Aqui o samba tem um grave erro. Por qual motivo o horizonte veste branco? Qual foi o engano que o criador sofreu? Por mais que com a sinopse, as duas coisas fiquem tão óbvias —  branco é a cor da paz, quem veste branco, serve como representação da paz e o engano sofrido pelo criador se refere ao fato de Orixá ser preso, por engano, durante sete anos — , sem as informações adicionais, quem apenas lê o samba, não consegue ter essa exata noção, prejudicando a adequação. (-0,1 adeq.)

O refrão central começa com “Na gira do ilê, no toque do alabê” que busca estabelecer os ensinamentos de Oxalá. É como se o terreiro fosse preparado com os tocadores para a convocação de Oxalufã e Oxaguiã, orixás com os fundamentos principais da filosofia do babalorixá-chave.

Para explicar quem são: o primeiro é um velho sábio que criou o universo e todas as coisas que existem nele. Já o segundo é um jovem guerreiro que defende o respeito a todas as diferenças. Eles se complementam. Um luta para que todos tenham o mesmo ideal, o mesmo caminho, já o outro prega o respeito, mesmo que exista diferenças nesse “modo de seguir”. A elaboração traduz isso bem com Oxalufã sendo complementado como Bàbá (pai) e Oxaguiã como luta e guerra.

O problema é que melodicamente, na estrutura da métrica, o verso que faz a referência ao segundo — “Oxaguiã é luta e guerra” —  ficou mal encaixado sem espaço para respiro, o que prejudica a unidade e o canto (-0,1 div.mel). Por fim, a finalização do trecho reforça como a “dupla” é fundamental para o universo, já que regem todos os elementos. A construção é interessante já que não ficou no evitável formato lista criando o enlace no “Ar que espalha o fogo // Chuva que molha a terra”.

O início da segunda era — originalmente — um refrão central de um dos sambas vencedores. O problema é que ele ficou, ligeiramente, redundante. Observem: Lembra que o refrão central já apresenta os orixás Oxalufã e Oxaguiã? Então, nesse momento, eles são “novamente” representados. Com a expressão “Awurê” (boa sorte ou bênção), uma saudação a dupla de orixá é a orientação. No primeiro trecho é em formato de respeito com “benção” ao mais velho e mais sábio. Já na segundo é um “boa sorte” ao jovem guerreiro que não pode perder de vista que ser intolerante afeta a paz do coração. Por mais importantes que sejam, a repetição poderia ser evitada, pois prejudica a adequação ao tema. (-0,1 adeq.)

Na terceira estrofe, o samba parte para o fim da epopeia. É como se após a contextualização histórica da parte dos orixás e dos pontos chaves do tema, o momento passasse a ser de, literalmente, agradecer. O enredo, inclusive, é bem claro nisso. Logo no início da sinopse, há um trecho que diz que é hora de pedir, mas também de agradecer e nisso, a ideia dos compositores é muito boa. Na construção temática, esse trecho é representado na expressão de “Regozijo a Oxalá” quando o orixá da paz orgulhoso do que construiu convoca o xirê de seus iaôs para decretar o fim dos tempos sombrios.

A realização é de qualidade nos versos “No sopro da vida, o meu despertar // Luz que atravessa o Orum // A força no clamor dos orixás // Na gratidão de cada filho seu // Pompéia pede paz!” que também prepara adequadamente para o refrão principal. Os versos “Epa Babá… Xeu Epa Babá // Vai ter xirê até o dia clarear” evocam uma saudação ao pai e ainda reforça a ideia da “festa” que é complementado de maneira sublime pelo “Nesse afoxé, Águia de Ouro lava a alma nas águas de Oxalá” que faz uma referência ao fato do Águia (a escola, a comunidade e etc) lavar “sua alma” nesse cortejo. É como se a agremiação, após o desfile mergulhar nas águas de Oxalá, estivesse pronta para propagar os ideais do orixá em nome do fim da intolerância e da esperança de dias melhores.

Ao fim da audição, observando a obra com mais cuidado, algo me chamou a atenção — infelizmente — no sentido negativo. As inúmeras repetições de expressão ou de palavras de mesmo sentido. Só na primeira parte e refrão central, são quatro “Clamavam // Clemência, Axé//Axé, Luz//Luz e Criador//Criador”. Além disso, no início da segunda, em quatro versos, a palavra Awurê aparece cinco vezes. Por mais que seja uma saudação, causa um esgotamento. Somado ao fato exposto anteriormente, é impossível não perceber certa pobreza na construção. É como se tudo andasse em círculos. (-0,1 riq. poé)

Feita a explanação, penso que a trilha rompe alguns paradigmas. Com um desenvolvimento ousado e ainda com alguns percalços a serem superados pela junção, existem vários caminhos para interpretações sobre o que cada verso significa. É impossível, apenas lendo a obra, o enredo ser compreendido em sua totalidade. Isso, com certeza, rompe um padrão na cidade que se acostumou a ter, nos últimos anos. Quase todas as composições que passaram no Anhembi tiveram o cuidado de ter tudo destrinchado em letras que meramente seguem os caminhos estabelecidos pelo texto explanação do tema. Nesse caso específico, isso muda.

Mesmo assim, creio que faltou mais cuidado na contextualização. A composição, certamente, poderia ter sido mais trabalhada para que os elementos fosse apresentados com clareza, evitando, desse modo, dúvidas sobre quem são os participantes do tema e, acima de tudo, para evitando redundância ou repetição de citações. É evidente que não é preciso ser copia e cola de sinopse, isso é um dos problemas do gênero na Terra da Garoa. Só que especialmente, numa temática com essa vertente, é necessário que se faça algumas concessões em nome do entendimento. De todo modo, é um belíssimo samba que tende a crescer na avenida, especialmente, se for bem trabalhado pelo conjunto da excelente ala musical e da bateria comandada por Mestre Juca.

Nota: 9,5

Falhas: 

⦁    Fidelidade: -0,1

⦁    Riqueza Poética: -0,1

⦁    Divisão Melódica: -0,1

⦁    Adequação: -0,2

2 - MANCHA VERDE - A Mancha Verde no próximo desfile traz para a avenida o enredo “Planeta Água”. Baseado na música homônima de Guilherme Arantes, a temática teve um texto de sinopse curtíssimo que apenas sublinhou os momentos chave (Os orixás Oxum, Iemanjá e Oxumaré e os pontos principais do que será apresentado que envolvem a seca no sertão, os rios, os mares e a preservação da água). Com isso, os sambas concorrentes, entre eles, o escolhido, conseguiram interpretar de diversas formas sem cair ou beber (já pedindo perdão pelo trocadilho) demais da fonte da inspiração musical. A obra foge do padrão clássico do 10–4–10–4 e traz três refrães, sendo dois em sequência na parte final e tem os autores Márcio André Filho, Marcelo Lepiane, Lico Monteiro, Rafael Ribeiro, Richard Valença, João Perigo, Solano Mota, Leandro Thomaz, Telmo JB, Lanza Muniz Moraes e Rosali Carvalho, uma parceria que é bastante desconhecida no público paulistano da folia e conseguiu sua primeira vitória de destaque por essas bandas.

Feita a introdução, é hora de falarmos propriamente do samba. Na primeira parte, aparece o principal destaque melódico. Normalmente, a maioria das parcerias começa a estrofe com versos menos densos para dar fôlego para o canto. Não é o que acontece por aqui. Repetindo o efeito “É Pedra Preta” em Grande Rio 2020, a composição traz um desenho caprichado para sustentar o bonitooh, mãe, eu vejo a vida refletir a vida em teu espelho”. Mesmo que este verso tenha sublinhado que esse “mãe” se refere a orixá Oxum, ele poderia ter sido mais bem elaborado, facilitando a interpretação e evitando ambiguidades como Mãe Natureza ou até o próprio mar (-0,1 adeq.).

A partir daí, a letra é bem pensada, mas segue, efetivamente, um padrão onde o eu-lírico é severamente comprometido. Por vezes, é difícil demais entender (e até aceitar!) quem narra o enredo — mesmo que isso seja futuramente revelado no refrão principal. De toda forma, destaco alguns versos que trazem saídas melódicas fora do habitual em São Paulo comoEu pedi que o céu levasse esperança pro sertãoque tem várias mudanças de tom — o verso começa para baixo, mas sobe na entonação a partir de esperança — que dão fôlego para a obra, mesmo que pareça difícil de se interpretar em primeiras audições. No entanto, a construção acaba fazendo mudanças muito bruscas em momentos da história. Na mesma estrofe, saímos do sertão e da viola diretamente para sereia e canto de fé. Não há contextualização. São apenas elementos do enredo que foram citados sem se conectarem entre si, de que forma uma lista (-0,1 adeq.)

No refrão central, a obra tem uma saída que considero interessante, mesmo que dê espaço para a crítica. A duplicidade do “Iemanjá! Iê! Iemanjá!” é válida para reforçar o “chamado” para a orixá e complementa bem o verso anterior da primeira, mas a repetição do desenho melódico é desnecessária já que o efeito do bis do verso em si já serviria como mensagem, o que acaba desvalorizando a unidade (-0,1 div.mel). Na segunda estrofe, a composição parte para mostrar outras vertentes da água (a chuva, o choro, as nuvens, os moinhos e etc.) e consegue de forma satisfatória, sem cair no efeito lista, visto anteriormente. Apesar disso, o verso “vejo o mundo em outras cores” se torna jogado no contexto já que não conversa com o anterior “Nem todo choro é saudade” e nem com o seguinte “Lágrimas que encharcam esse chão” que abre o novo trecho da explanação. Fica isolado ali, sem sentido. (-0,1 fid.).

Um outro exemplo de verso desconexo é justamente o que antecede o segundo refrão. O verso “tantos caminhos pra um dia voltar” não direciona o que quer dizer. Percebam: “Ciclo da vida que move moinhos” fecha a ideia citada de outras vertentes da água. Ela é a vida em vários lugares. Na chuva, no choro, nas nuvens, nos moinhos e tudo mais. E aí o verso seguinte é “Tantos caminhos pra um dia voltar” que não especifica se fala dos caminhos da água ou dos caminhos do eu-lírico que, até esse verso, não se apresentou de fato. Um erro (-0,1 fid).

Falaremos dos dois refrães finais. Abrindo com “À terra, deixando um clamor pra humanidade, a nobre missão de preservar, nosso futuro, nosso lar”. Acredito que é um desejo de alerta para que o povo possa preservar a água, mas a expressão “deixando um clamor”, ao meu ver, não é a melhor solução. Para tornar a concordância correta, o ideal seria usar “deixo um clamor” que se adequaria melhor a obra, especialmente pela questão de concordância verbal já exposta, mas não é algo que creio ser passível de penalização perante o manual.

Por fim, no refrão principal, é incômodo pela a repetição da palavra água por três vezes em quatro versos. “ÁGUA de benzer, purificar // ÁGUA da fonte do rio que corre pro mar // Planeta ÁGUA, nascente da vida // Sou Mancha Verde e mato a sede na avenida”. É cansativo (-0,1 riq.poé). Mesmo com esse porém, o refrão, finalmente, apresenta o eu-lírico na escola de samba Mancha Verde que enfim surge com “Sou Mancha Verde e mato a sede na avenida” que termina a narrativa com correção. Com seus senões e suas virtudes, a composição escolhida pela alviverde tem boas intenções e é uma dos melhores da escola nos últimos anos. Só tenho restrições ao andamento imposto pelo cantor Fredy Vianna que não conseguiu, ainda, extrair todo o potencial melódico da composição, especialmente nas mudanças de tom dos versos que compõem as estrofes. A ver como ficará.

Nota: 9,4

Falhas:
 
⦁    Fidelidade: -0,2

⦁    Riqueza Poética: -0,1

⦁    Divisão Melódica: -0,1

⦁    Adequação: -0,2

3 - MOCIDADE ALEGRE -
Renascida após o grande desfile do último Carnaval, a Mocidade Alegre explora a personalidade de Clementina de Jesus num tributo que é, acima de tudo, direto. Com o enredo “Quelémentina, cadê você?”, a Morada do Samba mais do que presta homenagem, na verdade, reverencia, segundo palavras da sinopse, de joelhos a figura de uma mulher que é a cara do Brasil. Preta, favelada e popular, a voz de navalha é cantada em verso e prosa pelo texto que explana de modo competente a temática.

A questão é que os sambas que concorrem para trilha sonora da rubro-verde não conseguiram elaborar narrativas coesas com essa visão e alternaram saídas entre buscar criar associações a passagens consagradas da reverenciada ou elaborar um resumo quase biográfico da trajetória da mesma. O resultado acabou sendo o seguinte: as letras serviram apenas com conectivos desarmônico ao ponto temporal sem funcionamento, real, na missão de contar história proposta pela agremiação. A obra dos autores Márcio André, Fabiano Sorriso, China da Morada, Marquinhos, Biel, Lucas Donato, Daniel Katar, Bello e Marcelo Valência é um samba de momentos inspirados como no refrão principal, mas igualmente capaz em outros tantos flertar nas listas de momentos-chave e lembranças das músicas presentes na carreira da cantora. Portanto, fica prejudicado na descrição da figura e, no que lhe concerne, também é pouco feliz ao remeter aos sucessos, consolidando-se num meio-termo confuso e vacilante.

A construção de letra é praticamente uma apresentação da homenageada. Na cabeça começa com um “negra na alma e na cor, flor de raiz africana” exaltando a figura e sua cor, algo explorado de modo competente no enredo servindo como uma representação da raiz ancestral brasileira. O ponto é que o desabonador efeito lista já surge no verso seguinte com “batuque de jongo, folia de Reis” complementado com “orgulho de ser valenciana”. Observem: Qual é a função de “batuque de jongo, folia de reis” nesse quadrante? O que faz para encaixar e conectar o verso anterior e posterior? (-0,1 adeq.). Na sequência, a transição da roça para a cidade é feita de maneira competente no “Saiu da roça, iaiá! Foi prá cidade…”, mas melodicamente, o “pra cidade” fica vago, pois, o arremate do verso anterior “voou com a Águia altaneira” abre um novo momento melódico, o que, de fato, cria uma ruptura prejudicando o canto (-0,1 div.mel).

A partir daí, o samba é apenas uma lista de citações. Bambas, caiu no samba, de verde e rosa, Mangueira, senhora da Glória, batalhas, rosa dos palcos, voz de navalha. São oito menções que apenas servem como lista e, algumas, com redundância como verde e rosa/Mangueira e Rosa dos Palcos/Voz de Navalha que não agregam em criar imagens diferentes para a figura, explorando muito pouco do potencial do tema. (-0,1 adeq.)

No refrão central, o samba perde um dos poucos positivos que possui. A narrativa. Com “Na hora da sede, você pensa em mim (ê laiá) // Não vadeia Clementina! Eu vou vadiar!”, a composição simplesmente perde o sentido. Quem vinha narrando era alguém que declamava a carreira de Clementina e sem qualquer contextualização ou motivo aparente, isso é modificado bruscamente. Não há nenhuma justificativa para isso. (-0,1 fid.). O refrão é finalizado com “foi o tombo do navio… marinheiro só! No balanço do mar” que não agrega em qualquer ideia ou constrói alguma pertinência para a presença ali.

Na segunda estrofe, a situação piora de vez. Percebam: O samba tinha problemas de narrativa e adequação, mas até então, mantinha algum padrão refinado de letra. Contudo, o trecho é aberto com um inexplicável “Yô, yôo! Yô, yôoo!” que não pertence como conexão ao refrão de meio e nem ao resto da estrofe. Fica ali, vazio e sem qualquer criatividade tanto na poesia, quanto na melodia (-0,1 riq.poé) (-0,1 div.mel). Nos versos seguintes, a canção parte para mais associações que não se conectam “O seu cantar é uma prece // no altar do samba resplandece // “aonde Deus fez a Morada” // emana a luz do nosso senhor e o saravá de todos os orixás”. Se isolarmos o “aonde Deus fez a Morada” ele serve como conectivo para os dois momentos e isso é bom devido à execução da ideia. A questão é que ele é seguido “Filha de Zambi! Identidade, aura ancestral” que volta a exaltar a origem afro da personagem. Ou seja, não há concatenação entre os versos prejudicando, novamente, o entendimento do enredo (-0,1 adeq.). Por fim, a estrofe é finalizada com “da negritude, retrato mestiço, de fato, a voz dos escravos // ginga, capoeira, partideira…axé” que repete o efeito de menções da primeira, lembram? Negritude, mestiça, a voz dos escravos, ginga, capoeira, partideira. Seis expressões distintas em três versos. Todas sem uma única junção que seja. Uma lista (-0,1 riq.poé).

O último verso prepara o refrão principal. Com “A Mocidade se ajoelha aos seus pés”, a obra levanta o tom da melodia para a explosão do refrão principal e, finalmente, explora bem o espírito do tema. Se a ideia é coroar a Quelé na avenida, a Mocidade traz um refrão que traduz bem o espírito. Com bons versos, é o melhor momento da obra com relativa folga. “É lindo ver a mulher negra lutar // quem te vê sorrir, não há de te ver chorar!” sintetiza toda a luta de Clementina em dois versos sendo seguido pelo resumo do que a agremiação que a homenageia busca com esse tema. O “Rainha Quelé, vem ser coroada, na minha, na sua, na nossa Morada” traz uma bela associação entre a ideia e o slogan da escola do Limão. Deixando assim a impressão de que poderia ter sido assim ao longo de toda obra, já que mesmo sem uma criatividade exemplar, ele deixou seu recado com clareza e sem qualquer grave percalço.

Nesse cenário, tenho certeza que a Mocidade Alegre quando escolheu Clementina de Jesus esperava repetir o sucesso do samba-enredo “Do canto das Yabás, Renasce uma Nova Morada” que foi considerado um dos fatores para o desempenho de alto nível da exibição no Anhembi em 2020, mas entrega uma composição problemática com furos incorrigíveis e que, por vezes, traz a sensação de que faltou maior cuidado na feitura da trilha sonora.

Nota: 9,2

Falhas:

⦁    Fidelidade: -0,1

⦁    Riqueza Poética: -0,2

⦁    Divisão Melódica: -0,2

⦁    Adequação: -0,3

4 - ACADÊMICOS DO TATUAPÉ - Bicampeão entre 2017 e 2018, o Acadêmicos do Tatuapé busca recuperar o título para a Zona Leste apresentando o enredo “Preto Velho conta a saga do café num canto de fé!” que narra a trajetória do café, importante grão na história mundial, sob o viés do Preto Velho, entidade poderosa na Umbanda que tem, através da bebida, um ritual importante. O samba, fruto de uma junção polêmica de três obras do concurso interno, ganhou as assinaturas de Turko, Cláudio Russo, Valter Filho, Maradona, Silas Augusto, Rafa do Cavaco, Luis Jorge, Vitor Gabriel, Gui Cruz, Rafael Falanga, Portuga, Imperial, Luciano Rosa, Reinaldo Marques, Marçal, Willian Tadeu, Fabiano Tennor, Mike Candido, Luiz Fernando Ramos e Dominguinhos do Estácio e acabou traduzindo o enredo de modo tradicional, mas com algumas ousadias como muitas repetições de expressões, dois refrães no meio do samba colados e ideias de narrativa que se misturam.

O início da obra traz “Incorporei…velas acesas no sagrado cazuá // Incorporei…mesmo cansado, vou abrir meu Jakutá // Saravá! // Venho de longe, adorê…êê // Velas no congá…adorê…êê // Arruda e Guiné, benze filho de axé // Preto velho conta a saga do café” que, de cara, invoca Preto Velho, sua casa e seu altar para baixar no Anhembi e contar a história do café. Aqui, é como se a narrativa pegasse uma espécie de introdução ancestral antes de entrar na saga em si. Um problema desse momento é que o samba repete algumas expressões de forma literal (Incorporei, por exemplo) e de significado (Cazuá, Jakutá/Congá que na prática significam altar, casa e reduto). É como se durante sete versos, tudo gire em círculos. Num enredo tão denso e tão cheio de referências importantes tanto na história quanto na proposta, acho que não precisava de tudo isso para apenas apresentar uma narrativa (-0,1 adeq.). 

No oitavo verso, enfim, começa a viagem. Aí o samba tem um poder de síntese interessante. “Ah meu fio…vamo proseá // O café é meu irmão…fruto da mãe África // Gira mundo pelo mundo girou // Vendido, trocado, pilado na dor // Chorava a senzala, um canto negro ecoou” traduz uma viagem gigantesca pelo café no mundo. Primeiro, nascido na África, na região da Etiópia, o grão se espalhou pelo mundo. Passou pela Turquia, Inglaterra, França, Egito…foi negociado e desembarcou no Brasil. Aqui, enquanto os escravos eram chicoteados, o café era pilão pelo seu pé para servir a nobreza fazendo o choro da senzala ecoar. Esse pedaço todo do enredo ganha uma explicação detalhadíssima na sinopse e foi resumido de forma impressionante pelos compositores.

Um ponto interessante da composição é ter dois refrães centrais; O primeiro com uma espécie de cantiga — escrava para alguns e canto iorubá para outros — serve de conectivo para a história. É como se o Preto Velho tivesse dentro de uma senzala ao cantar “Tanacilê… Tanasanã // Ina inê… Tanuotã” e, desse modo, seguisse pronto para contar o que vem a seguir. Já o segundo traduz o progresso do Brasil durante a República Velha e a política do Café com Leite (São Paulo dá café e Minas Gerais dá leite e assim se alternam no alto poder nacional) de uma forma interessante. “Lerê lerê // Na labuta do cafezal // Cresce meu Brasil menino // Lerê lerê // O progresso trilhou // Reluziu ouro negro, meu sinhô”. É como se no toque da escravidão e do açoite, ali pelos cafezais do interior mineiro, o Brasil crescesse e o “progresso” acontecesse. Um progresso torto, baseado em crimes contra a negritude, mas que dava o então ouro negro. Aqui, o samba vai muito bem no poder de resumo e todo o lamento e evolução é bem traduzido, só faltou trazer como a quebra da bolsa de Nova York — importante para explicar a queda do valor do café no mundo e o fim da política brasileira da alternância de poder (-0,1 adeq.) — foi fundamental nessa saga. 

Na segunda estrofe, a obra vai pra arte, a poesia e, claro, pro cafézinho do fim de tarde. Esse trecho ganha mais um ótimo momento em termos de ideia e poder de apanhado. “Eita cheiro bom… o vento leva // Essa mironga do amanhã o que será? // Inspira arte… poesia // Emoldurando a cultura popular”. A tradução é quase intuitiva. O cheiro do café se espalha e mostra que o amanhã inspirou a arte (Portinari e Bach) e poesia (Roberto Carlos) se tornando ainda mais parte da cultura popular seja por essa via ou até pelo dia-a-dia com frases simples como “aceita um café?” cultuadas por todos Brasil afora. 

No final, Preto Velho começa a dizer um “até logo” evocando Iemanjá e Oxalá rumo a Aruanda. Nos versos “Aruanda… Aruanda… // Eu vou me embora… vou nos braços de Yemanjá // Mas deixo a paz e a esperança // Eu vou me embora… vou nos braços de Yemanjá // Adeus meu fio… Oxalá mandou chamar” que fecha a ideia com uma espécie de retorno a ancestralidade da narrativa para seu ponto de partida. É bacana e bem feito, mas acho que simboliza um pouco como o samba alterna momentos. Trechos gigantescos do enredo ganharam agilidade e ideias amarradas dentro de um conceito curto. Outros exigem muitas repetições de palavras e conceitos. Não há equilíbrio na proposta poética, afetando a construção. (-0,1 adeq.).

Chegando no refrão principal — alvo de polêmica por reutilizar um trecho de samba que já tinha sido derrotado em fase anterior do concurso — existe três problemas que eu considero graves. Bem graves. Primeiro que a virada melódica do fim da segunda para o refrão principal não foi bem alinhada. Fica uma espécie de vazio que não dá respiro e causa estranheza (-0,1 div.mel). Segundo que o samba inteiro é narrado pelo Preto Velho e ele “encerra” sua participação no fim da segunda entregando a narrativa para o Tatuapé. Mas isso não segue uma transição ou até uma ideia de “agora é com vocês”. Ele só dá tchau e o refrão é aberto em outro tempo. Erro imperdoável (-0,1 fid.). 

Em relação aos versos, só me incomoda, de novo, a repetição de palavras. “Saravá, saravá! Preto velho milongueiro // Saravá! É a luz desse terreiro // Adorei as almas, irmão café // Odara ê, Tatuapé” que é uma saudação que acaba sendo cansativa. Afinal, além desses seis Saravás do refrão principal (são dois bis), ainda existe mais um ali no terceiro verso da primeira estrofe. Em sete versos, Saravá aparece em três. Não dá. (-0,1 riq.poé). Quando analisamos o geral da obra, acredito que o samba é melhor do que destrinchado verso a verso. Pela força da melodia, pelo canto da agremiação em si e até pela qualidade do intérprete torna-se muito possível a sua funcionalidade no Anhembi.

Nota: 9,4

Falhas:

⦁    Fidelidade: -0,1

⦁    Riqueza Poética: -0,1

⦁    Divisão Melódica: -0,1

⦁    Adequação: -0,3


5 - VILA MARIA - A Unidos de Vila Maria traz o enredo “O Mundo Precisa de Cada Um de Nós. A Vila é Porta-voz” onde propaga que a fé e o amor são os caminhos para a superação dos problemas encontrados no mundo. Antes de tudo, é importante pontuar que essa escolha foi pensada em virtude da obra “o samba é porta-voz” composta pelo trio Dudu Nobre, Diego Nicolau e Zé Paulo Sierra que tinha como intenção inicial produzir uma reflexão sobre o momento do mundo pandêmico — através da fé e do amor — além de conscientizar as pessoas da importância de lavar as mãos.

A partir dessa música, a temática da escola foi desenvolvida apresentando os momentos da história onde a fé e o amor foram fundamentais para a reconstrução da humanidade. Originalmente, a opção era de que o samba que deu origem ao enredo seria utilizado no desfile. Com o tempo de preparação estendido e o assunto pandemia diminuindo na rotina das pessoas, optou-se por uma reconstrução da obra original mantendo o trio de autores.

Se na primeira versão, o samba invertia alguns paradigmas e tinha um perfil curto, de mensagem direta, nessa nova roupagem, apresenta mais elementos e se torna um samba mais robusto, pesado mesmo e tenta destrinchar os meandros da proposta incluindo imagens fundamentais para isso — como a do Império Romano. A divisão contextual da composição é até simples, o início é apresentação do eu-lírico, depois fé, depois amor. Parece fácil, mas no entanto, quando destrinchamos verso a verso, percebemos que alguns elementos melhoraram, mas o conjunto ainda segue devendo.

A abertura da obra traz os versos “Anjos de canduras vão descer // pra felicidade ressurgir // nova era para a humanidade // nova chance de evoluir” que tenta apresentar o eu-lírico através da própria Vila Maria. A questão é que isso se torna um tanto complexo quando os versos seguintes são “O império segregou // Roma sucumbiu // Pra civilização deixou legado // mas a intolerância resistiu”. Tudo bem que o Carnaval aceita muita coisa, mas tolerar esse avanço temporal que contradiz a narrativa é difícil. (-0,1 fid.).
 
Na reta final da estrofe, ainda aparece os versos “senhor, em sua luz divina, a fé nos guia” que mistura duas palavras de sonoridade parecida (divina/guia), o que é muito prejudicial no canto já que fica embolado, quase repetido (-0,1 riq.poé). Indo além, há uma lista de citações religiosas (Axé, Amém, Shalom, Salve Rainha) apresentada que é bastante desconexa, já que não consegue criar uma mensagem, servindo apenas como passagens que caberiam em qualquer momento, dificultando o entendimento do que se quer passar como ideia chave (-0,1 fid).

No refrão central, novamente, a utilização da repetição de um termo (agô) causa uma sensação de pouca criatividade, não somente pela escolha em si, mas por se repetir; Desse modo, acaba acontecendo a condição de andar e parar no mesmo lugar na divisão melódica. (-0,1 div.mel). Ademais, essa menção se soma a mais uma alusão complexa da questão religiosa, trazendo a conclusão de que não há uma direção, há, na verdade, uma série de menções dos mais variados tipos de crença, onde, enfatizo, nenhuma mensagem ou imagem visual é clara para discutir ou apresentar quais são as ideias sobre a fé que o enredo abordará. Desse modo, a resposta através desse caminho (fé) para a superação dos problemas da humanidade não aparece no samba.

Na segunda estrofe, como já mencionado acima, depois de apresentar a fé, é hora de contextualizar o amor. Mas tudo é muito confuso já que alguns elementos se misturam. A conexão com o refrão central e o início do novo trecho acontece com “Oh meu São Lázaro nos perdoai!” se unindo a “E abra os caminhos desta gente destemida // Felizes cantam que o bom da vida é viver”. Só que isso é arrebentado pelo “Agradecer a Mãe Senhora, Nossa Padroeira // às benções que virão para a vida inteira”. Perceba que São Lazaro perdoa e abre os caminho da gente que feliz canta o bom da vida, mas depois de tudo agradecem a Nossa Senhora pelas benções que vivem pela vida inteira. É mal encaixado, é mal resolvido e ainda é pedante pelas repetições de palavras vida/viver e de elementos religiosos São Lázaro/Mãe Senhora/Padroeira. (-0,1 riq. poé). O trecho ainda tem um problema de adequação já que precisa de duas palavras para se referir ao mesmo personagem e de repetições de vida para falar do mesmo caminho (-0,1 adeq.).

Na reta final, o samba tenta fechar a mensagem com “Vamos vencer! A nossa união // O dom de partilhar // revelam na cadência // Que a cura pra dor // é o amor” Só que apesar de parecer bem amarrado, na verdade, é só uma dupla citação de “A nossa união, o dom de partilhar”. São frases de mesmo efeito que acabam repetidas pela falta de capacidade de explorar o tema de outros modos. Note que se você elimina uma das duas, o efeito é o mesmo “A nossa união revela na cadência que a cura pra dor é o amor” ou “O dom de partilhar revela na cadência que a cura pra dor é o amor”. As duas unidas é uma demonstração de como não havia mais caminhos para serem explorados e o mesmo efeito foi necessário (-0,1 adeq.).

Quando chegamos no refrão principal, a obra tenta ganhar um fôlego de maior animação com “Quero te abraçar // bem mais que antes // Matar a saudade // Viver esse amor” mas o efeito é o contrário. Novamente o “bem mais que antes” é um verso que se “jogado fora” não faria diferença dentro da mensagem proposta, mesmo considerando a intensidade (-0,1 adeq.). Além disso, o viver esse amor torna tudo muito dúbio. De qual amor se fala? Do fraternal ou do amor que reconstrói a humanidade? É tudo muito confuso. Melodicamente, há uma ruptura para o encaixe dos versos “Se o mundo precisa de cada um de nós // a vila é porta-voz” que estavam presentes no refrão original. Apesar de bem resolvido na história (A Vila, como porta-voz, quer matar a saudade, viver esse amor ao mundo que precisa dela) não é bem trabalhado na melodia (-0,1 div.mel).

Em termos gerais, mesmo com as mudanças, a sensação é de que o samba pode até ser mais preciso na história proposta, mas ele escancara problemas de narrativa e de como o argumento elaborado não sustenta uma história de um tema com quatro setores.

Nota: 9,1

Falhas:

⦁    Fidelidade: -0,2

⦁    Riqueza Poética: -0,2

⦁    Divisão Melódica: -0,2

⦁    Adequação: -0,3

6 - DRAGÕES DA REAL - A Dragões da Real é a única das catorze escolas do Grupo Especial de São Paulo que mudou de enredo durante a paralisação da pandemia da Covid-19. Inicialmente, o tema era baseado na música “O dia em que a terra parou” de Raul Seixas que buscava dialogar com as lições que o mundo tiraria do isolamento social imposto pelo vírus. Teve disputa, samba vencedor, mas desfile, não rolou.

O passar dos meses trouxe a sensação de que o enredo perdia o sentido, fazendo com que a Tricolor resolvesse modificar o tema e apostar numa, muita aguardada, homenagem a Adoniran Barbosa. Para não ser injusta com os compositores da disputa de samba-enredo anterior, a agremiação optou por encomendar a trilha-sonora que embalará o próximo desfile aos mesmos vencedores. De autoria de Thiago SP, Léo do Cavaco, Renne Campos, Marcelo Adnet, Darlan Alves, Rodrigo Atração, Alemão do Pandeiro, Wanderley Monteiro, Paulo Senna, André Carvalho e Tigrão, a nova composição é superior ao samba do enredo anterior e cumpre o papel de traduzir o que é proposto.

Particularmente, a obra me chama atenção por dois pontos que são um mérito e um demérito do enredo. Primeiro, a qualidade. A ideia de trazer Adoniran Barbosa “de volta” é uma coisa muito legal. Até pelo fato de que a pista do Anhembi leva seu nome, numa das maiores reverências que esse artista recebeu. Portanto, nada mais justo que a apresentação o transporte para o “seu local”. O demérito não é bem um demérito, mas algo que me incomoda. Ao longo da construção do enredo, se fala muito de suas obras, de como foi importante para abrir o caminho do samba em São Paulo e até resvala de como ele foi fundamental na narrativa histórica da evolução da capital paulistana, mas pouco da figura. O homem João Rubinato, o seu amor pelo Corinthians e até o refino de seu humor são deixados de lado. Num recorte de tanto cuidado quanto o desse enredo, as falhas ou os problemas desse tipo — como o leitor preferir — chamam atenção.

Feita a ressalva e sem mais delongas, o samba. A trilha começa justamente conclamando a presença de Adoniran e relembrando sua presença como nome da pista do Anhembi. Com “acorde, foi dizendo o cavaquinho // uma “prova de carinho” // “tá” gravada nesse chão” o samba faz referência clara ao sambódromo e pede a presença do homenageado. A partir daí, começa um verdadeiro passeio por seus sucessos e por tudo que ele proporcionou para São Paulo e ao gênero que o consagrou. “Desperto no romper da madrugada // abraçando a batucada // saudade vou cantar // botei torresmo no verso, na contramão, o amor // Fiz da miséria poema, “se alembra” disso Doutor?” transmitem o início da trajetória do artista.

O sonho de ser famoso encontra no samba e na batucada um meio possível para a realização, mas sempre através das coisas populares e da contramão do imposto até então — a narrativa em segunda pessoa. Adoniran sempre fora inventivo e buscava, com suas músicas, uma outra categoria de linguagem, conseguindo aproveitar-se também da exclusão social dos sambistas. Em letra, a obra vai bem. Melodicamente, não tanto. Com um tom mais dolente, a audição se torna arrastada. Os finais de versos não ajudam com “madru-ga-da // “batu-ca-da”, “can-tar” // “a-mor” // “dou-tor” próximos e com tom de lamento (-0,1 div. mel). Isso também acontece nos últimos versos “As amizade” deu samba e numa cena cruel // saudosa maloca virou arranha-céu” com “Aaaaaa-s” e “arraaaaaanha” esticados para caber na melodia.

No refrão de meio, surge o melhor momento. Com boas referências a dois dos grandes sucessos da trajetória do compositor (Tiro ao Álvaro e Iracema), aparece a virtude de conseguir traduzir bem o progresso tão da Selva de Pedra em poucas palavras. O trecho “Vi o progresso chegar, sem dó nem educação e a vida é dura, mas a rima é sempre boa” é o de melhor síntese de toda a composição. Você sente um resumo rápido e direto do proposto. O problema é a obviedade de “em cada “canto” dessa terra da garoa”. Além de ser desnecessário faz com que o samba perca em riqueza poética (-0,1 riq. poé). Na segunda estrofe, há a continuação da narrativa através das canções; “E além disso, tem outra coisa, meu bem // às onze parte meu trem nos trilhos da inspiração”, a referência é óbvia e cristalina ao grande sucesso “Trem das Onze” imortalizado pelo grupo Demônios da Garoa.

Até então, apesar de alguns problemas aqui e acolá, a narrativa era correta. Mas na tentativa — do enredo, reforço — de ligar Adoniran ao samba paulistano das escolas de samba, a coisa complica bem. Com “Rumo à Esperança, onde nasce o Carnaval // berço das nossas tradições”, o elo entre o homenageado e o início da festa das escolas de samba é feito. O Esperança citada é a Vila Esperança, palco, lá atrás, da folia. Mas, na sequência, surge o “Dragões, amanheço em teus braços eternizando nossos laços” que ARREBENTA essa ideia. Afinal, com todo respeito do mundo a escola e a homenagem prestada, relembrar os primórdios da festa e na sequência citar que uma agremiação nascida em 2000 “eterniza os laços” é forçar muito a barra. (-0,1 fid.) O final do trecho traz “Adeus, Escola! Eu vou me embora // mas meu nome vai ficar // feito uma brasa que jamais se apagará” que relembra, novamente, eterna presença de Adoniran na vida dos desfiles das escolas de samba através da pista do sambódromo. Só que por mais que seja, de fato, relevante, penso que duas citações na mesma obra, demonstra como alguns pontos do enredo poderiam ter sido melhor explorados pela ótima turma de compositores ajudando no entendimento da temática. (-0,1 adeq.)

Quando chega o refrão principal, o samba, mais uma vez, cresce. Com o excelente “Dá licença de contar” no raiar dessa manhã // que essa gente feliz é Adoniran”, o samba traz referências do homenageado o conectando na própria escola sem ficar forçado como na segunda estrofe. O derradeiro trecho com “Na passarela, o povo diz no pé // nóis vai sambando até quando Deus quiser” é correto, apesar de um leve problema de melodia, onde fica corrida para o encaixe da letra na célula. Um clássico erro de muita letra para pouca melodia (-0,1 div.mel).

É evidente que quando analisamos o todo, a sensação é de que o resultado poderia ser mais emblemático ou classudo, no entanto, definitivamente, não é uma trilha que fica aquém do que uma escola como a Dragões, favorita ao título, espera apresentar. É uma obra boa, melhor que o histórico recente da agremiação e serve bem ao proposto, mesmo que esteja longe de encantar.

Nota: 9,5

Falhas:

⦁    Adequação: -0,1

⦁    Fidelidade: -0,1

⦁    Riqueza Poética: -0,1

⦁    Divisão Melódica: -0,2

7 - ROSAS DE OURO - O Rosas de Ouro, sob novo comando na condução plástica, aproveita do recente desejo insano por uma cura para falar sobre o assunto de duas formas distintas que estão unidas na mesma temática de título Sanitatem. A azul e rosa traz a cura através da fé em rituais— como surgiram, quais são, quem exerce e até sobre quem vende falsas promessas — e do ponto de vista da ciência — através da medicina e de seus avanços com destaque especial para os médicos. Por fim, também mostra que para o sambista, o samba é mesmo um artificio salvador na luta contra os dissabores do dia-a-dia. O cenário formado pelo tema é de uma densidade em grande escala e muitos elementos a serem citados, tornando ainda mais complexo o trabalho do compositor.

Nesse sentido, a obra escolhida pela agremiação dos autores Godoi, Luciano Godoi, Diego Nicolau, André Ricardo, Marcelo Adnet, Douglas Chocolate, Jacopetti, Cacá Mascarenhas, Liso, Antonio Júnior, Hudson Luiz e Andréia Araújo optou por uma construção focando no lado místico da narrativa apresentada. É como se entre as três principais vertentes do tema, a escolha tem sido por uma só, até para dar uma cara “única” para a defesa do enredo mesmo que isso transmita menos criatividade — ou até espaço reduzido — nos outros setores da proposta.

Quando destrinchamos a composição entre letra e melodia, percebemos claramente a proposta de “pesar” o samba. Isso é feito mais nos desenhos melódicos que na letra em si até para causar o efeito “ritual” para quem escuta. E apesar dessa decisão, os pontos primordiais da narrativa são respeitados, mesmo sem a mesma inventividade e riqueza poética em todos os versos. Por conta disso e considerando o contexto idealizado, o resultado, no geral, é bom, mesmo que crie um cenário peculiar. Antes de entrarmos propriamente no balanço, é preciso entender o que propõe a sinopse do enredo.

A premissa criada no texto-base é de uma história onde uma pessoa conversa com Deus e durante esse diálogo, sublinha pontos históricos dos rituais e também envolve umbilicalmente fé e ciência, sem nunca esquecer, claro, que Deus, o outro ponto da comunicação, é a principal referência.

Já no samba em si, a primeira estrofe conclama Obaluaê, orixá que na Umbanda é considerado como senhor da cura e médico dos pobres, sempre sendo invocado quando alguém está doente. Os primeiros versos são “A bênção, meu velho // meu velho, Obaluaê // No seu Xaxará, a cura // Na palha, o seu poder” que abrem a construção pedindo por essa entidade. Feito o pedido pela entidade, é hora de “se vestir de Roseira”, convocar ancestrais e conclamar rituais. Com isso, surge o melhor momento da obra. O quadrante “Couro do tambor, coração xamã // água do rio, purificação // é fogo que o tempo não apaga // Atabaque firma o ponto, rezadeira benze a alma” é muito bem amarrado na melodia e você sente a força dos desenhos, especialmente no último que por ser tão pesado ganhou um bis preparando a chegada do refrão central.

No refrão central, o fragmento é bem realizado e continua a ideia da apresentação dos rituais e de seus executores. Com “Dança Pajé… é Magia da Floresta // Deixa Girar… O povo de Aruanda // Amém, pro Santo Louvar” temos três versos continuando a construção proposta e mantendo a perspicaz solução de apresentar cada vertente religiosa sem citá-la diretamente. O problema é que o “Canta Roseira, deixa a fé te guiar” é extremamente jogado ali. É evidente que o samba, no enredo, é considerado um ritual de cura, mas não agrega na narrativa já que a impressão sentida é de apenas um “upgrade” para alinhar o enredo no carinho da comunidade, faltando um encaixe mais coerente com o conceito. (-0,1 fid.).

A segunda estrofe começa com aquele perfil que a sinopse apresenta. Lembra que eu mencionei que a construção da história é de uma conversa de uma pessoa com Deus? Pois bem, agora isso começa a aparecer em evidência. “Apago a luz e acendo vela pra saudar // dobro os joelhos e me curvo para o pai // pai de tantas faces e caminhos // em tuas mãos, entrego o meu destino”. Isso é bonito e bem feito, apesar da repetição do “pai” no verso 2 e 3 que causa o efeito do “meu velho” da primeira estrofe (-0,1 riq.poé).

O ponto é que a nova formatação ARREBENTA com a ideia de criar um samba pesado voltado pro ritual. Em momento algum, Deus foi citado na primeira estrofe + refrão central e aí vira o protagonista na segunda estrofe. Um erro de explanação. (-0,1 fid.).

Prosseguindo, a letra reforça o protagonismo da figura da divindade com “Deus onipotente, onipresente, salvador // faço minhas preces ao senhor //Que a ciência seja a fonte do saber // A medicina, esperança pra salvar” que amarra bem tudo isso, mesmo que não traga nenhuma associação de imagem nova, apenas liste — com competência! — seu efeito na temática. Só que aí vem o momento mais complicado do enredo no samba. Buscando a “síncope”, o “épico”, o samba abandona tudo e apenas berra o “O povo cantando em oração // a alma e o brilho no olhar // entenda que o samba também tem o dom de curar” que embora bem elaborado cria uma espécie de “novo momento” na apresentação temática. Não é errado, mas confunde quem quer entender o enredo apenas pela letra do samba.

Encerrando, no refrão principal, há uma celebração com “Vem celebrar, é festa no terreiro // tem identidade, meu batuque curandeiro” que consegue construir uma associação interessante entre a ideia de reforçar um “ritual” e aderir a Roseira nisso, já que o “tem identidade” relacionado ao batuque, faz referência a bateria da agremiação que se chama Bateria Com Identidade.

Antes de prosseguir, parêntese: Fico pensando que a obra toda poderia ter seguido esse caminho e o resultado, possivelmente, seria muito melhor. Fecho parêntese.

Mas aí vem o inacreditável “Saudades de te abraçar” que simplesmente não entra em nada. Não vem conversando com o que vem sendo contado e nem agrega nos versos finais “Rosas, a mais linda flor // num gesto de amor” conceito que simplifica a ideia da apresentação desse tema como um gesto de amor da escola para o samba. O “saudades de te abraçar” fica absolutamente sem sentido ali. Não tem necessidade dele existir. É incompreensível (-0,1 adeq.). De todo modo, a obra é um bom samba, talvez melhor do que o enredo poderia oferecer, especialmente por sua divisão peculiar. O que me faz crer, inclusive, que é uma música melhor como samba em si do que samba de enredo. Até por conta do fato de mesmo com pequenos percalços já mencionados, é envolvente e cativa por ter versos emocionantes, gerando uma expectativa positiva para seu resultado na avenida. Muito, é claro, por contar com o experiente intérprete Royce do Cavaco e a tradicional comunidade empolgada da Freguesia do Ó.

Nota: 9,6

Falhas:
 
⦁    Fidelidade: -0,2

⦁    Riqueza Poética: -0,1

⦁    Adequação: -0,1

8 - TOM MAIOR - Se mostrando bastante versátil, a Tom Maior apresenta um enredo diferente do histórico recente. Com muito conteúdo, a ideia é trazer luz a uma história clássica através de abordagem peculiar e brasileira. Com o tema “O pequeno príncipe do sertão”, a agremiação traz para a avenida uma releitura do best-seller da literatura na visão cordelista de Josué Limeira. Tudo isso por si só já traz um frescor ao tema e somado a maneira como respeita o preceito original é o principal ponto de destaque. A magia e os ensinamentos da estrutura original não são, em momento algum, esquecidos pela adaptação ou mesmo pelo enredo.

Você embarca no conceito do livro francês, mas se transporta na realidade do sertão nordestino onde o folclore e as tradições são o pano de fundo dos “ensinamentos doces” e as “perguntas profundas” que envolvem o relato. O samba que embalará esse desfile traz uma melodia quase pueril e uma letra que desenvolve uma construção descritiva dos cenários, mesmo que de forma confusa no modo de contar. De autoria de Jairo Roizen, Morganti, Sukata, Valêncio, Nelson Valentim, Tubino, Jadson Fraga, Luan, Alexandre Gordão, Beto Savanna, Claudinho, Meiners e Victor Alves, a composição segue o padrão imposto pela parceria em seu perfil de compor. O respeito aos pontos-chaves do enredo são primordiais mesmo que isso traga uma morosidade e a sensação de “poderia ser melhor”.

Na visão do enredo, o “pequeno príncipe” surge num “galego miúdo” no Nordeste brasileiro, ao longo da obra, ele vai deixando sua marca com a visão infantil sobre a vida adulta, como é, de fato, o intuito do desenvolvimento original. Em termos de construção narrativa, confesso que vejo algumas situações problemáticas. A primeira delas é a opção por contar esse tema através do olhar do caminhoneiro. É como se entre “protagonistas”, existisse alguma predileção prévia para um e não para outro, o que não me parece exatamente adequado.

A partir dessa opção, na primeira estrofe, o samba se inicia com “Um dia na luz do agreste // sem lenço e documento eu parti”. A questão é que isso não é bem desenvolvido na narrativa. Em determinados momentos, o ouvinte fica na dúvida sobre quem está contando a história. Como a premissa segue o preceito original, isso confunde quem escuta. Por exemplo, a oração “dos versos de um bandoleiro” além de não continuar o que vem sendo contado anteriormente também não transfere o cenário da saga ao que vem a seguir (-0,1 fid.) que é o “di repente, um minino estava ali”. Por trazer a sensação de uma mudança narrativa nesses versos, a audição fica comprometida.

A sequência, no entanto, é interessante com “na seca do sertão a proteger a flor // quiçá seu coração” que traz uma conectiva muito boa na união de flor e coração na mesma oração. O problema é que “no céu se avoou // a doce inspiração nas asas de um sonhador” não conversa com o que vem antes e nem com o que vem a seguir. Quem voou? Quem ou qual é a doce inspiração? Quem é o sonhador? (-0,1 adeq.). O trecho é finalizado com uma definição sobre o menino que diz “e ainda mostrou que gente tão crescida não entende dessa vida e a verdade do amor” que sintetiza a desconexão dos versos anteriores com o restante já apresentado.

No refrão central e na segunda estrofe, seguem os problemas no que se refere ao que está sendo contado e como está sendo feito isso. No primeiros, os dois primeiros versos parecem ser o menino falando “esse mundo de mistérios // não me faz compreender // que tem rico de dinheiro que é tão pobre de valor”, já na segunda parte “Se o mundo te apequena nunca deixe de sonhar // na pureza de um olhar vi um sábio contador” parece ser o alguém respondendo. O problema é que isso não é deixado de uma forma clara, direta, que faça quem está escutando ou lendo a letra entender isso, de forma efetiva. Ou seja, a ideia de trazer um olhar em primeira pessoa narrando a saga não é bem-sucedida.

Além disso, esse trecho é todo finalizado em r, o que, com o passar das audições, fica cansativo já que, ainda no trecho anterior, já tinham versos com finalizações em r. Em dez versos, são sete que terminam assim: FloR, sonhadoR, amoR, CompreendeR, valoR, sonhaR, contadoR. (-0,1 riq.poé). Abrindo a segunda parte, o samba tem dois versos que não prosseguem o desenvolvido. “Deixa a dor “vaguear”, vagueia, “Óia a terra a girar” não conseguem se traduzir e estão deslocados (-0,1 adeq.) já que não seguem o que vinha sendo contado e nem com o que vem a seguir pois o “vê que o mundo é feito borboleta” abre o trecho dos “ensinamentos doces” feitos pelo menino e aí que surge o melhor momento do samba. A partir do “Fica a lição! Onde há poesia plante o seu torrão // não esqueça de molhar sua raiz, seguindo os caminhos de um final feliz”, a obra traz uma linda célula melódica e uma construção que resume o enredo em apenas três linhas. É uma pena que o “guarde todo amor dentro do peito // ainda é tempo de esperança, nosso futuro está no sorriso da criança” não dê prosseguimento melódico nessa subida de tom e ainda cause um “buraco” melódico entre “esperança” e “nosso futuro” onde a métrica não ficou encaixada (-0,1 div.mel)

No refrão principal, a obra consegue outro grande momento melódico, com a construção de desenhos que são alegres e remetem a uma celebração e servem perfeitamente de pano de fundo para o retorno do príncipe, mas esse momento não é exatamente bem retratado na letra. Os dois primeiros versos “Um chamego é bom demais // coração sabe de cor, o planeta da alegria é onde canta a Tom Maior” são confusos. O segundo consegue inserir bem a agremiação no contexto do tema, mas não consegue complementar a ideia do que é passado no verso anterior. O que o coração sabe de cor? E por mais que um chamego seja bom, o que ele faz nesse instante da temática e no que ele agrega segue um mistério. (-0,1 fid). Por fim, os versos finais demonstram todo o problema de letra da obra. “O menino avisou pro meu povo arretado // que o príncipe voltou pra regar o chão rachado”. O caminhoneiro foi avisado pelo menino que ele voltou e será o príncipe? Bastante confuso, não? (-0,1 adeq.).

Ao fim da audição, a obra da Tom Maior pode até cativar defensores por seu “estilo melódico” puro e que remete a infância, mas não consegue esconder os problemas narrativos que possui. Há muitas mudanças entre contextos que não conseguem se sustentar por muito tempo e, inclusive, se fazer, de fato, entender. Mesmo assim, é positivo destacar que o espírito da temática e a correção em respeitar o que está dentro da proposta foi conseguido mesmo que abrindo mão da coesão e da coerência em nome disso.

Nota: 9,3

Falhas: 

⦁    Fidelidade: -0,2

⦁    Riqueza Poética: -0,1

⦁    Divisão Melódica: -0,1

⦁    Adequação: -0,3


9 - IMPÉRIO DE CASA VERDE - Mistério e desconfiança cercaram a Império de Casa Verde desde o fim do último Carnaval. Tão logo surgiu a notícia de que existia a possibilidade de um enredo que homenagearia Carlinhos Maia, brotaram comentários negativos que já idealizaram um enredo e samba trágico que prejudicaria a agremiação. Com o passar do tempo, muita coisa mudou, mas a expectativa seguia sendo grande e, de certo modo, negativa. Nesse cenário, é difícil, acredite, fazer uma análise exatamente distante do que o resultado da trilha sonora do Tigre traz. No entanto, é seguro dizer que, primeiro, é um samba que está longe de corresponder o cenário de caos estipulado inicialmente. Assinado por um grupo de estrelas da composição, a obra de André Diniz, Cláudio Russo, Darlan Alves, Diego Nicolau, Fabiano Sorriso, Marcelo Casa Nossa e Samir Trindade cumpre o seu papel e tem tudo para trazer um fim de noite que, mesmo longe de brilhantismo, diverte.

Uma coisa que importante citar antes de analisar verso a verso, é que o enredo não é, exatamente, o Carlinhos Maia. E por incrível que possa parecer, é um problema por isso também. Com uma história extremamente longa — contar a comunicação num enredo sem um recorte bem feito é complexo —, o tema fica sem uma conexão bem amarrada. Mesmo com o artista sendo uma espécie de personagem fio condutor, fica difícil de digerir que o homem da pedra evoluiu para chegarmos ao mundo moderno na rede social do influenciador. Posto isso e feita a explicação, vamos ao samba.

Como já dito, o enredo começa lá atrás com a comunicação não verbal e a organização do homem primitivo com o domínio do fogo e a transformação do couro em tambor. Tudo isso é traduzido pelo samba na primeira estrofe que explora, exageradamente, esse pedaço do tema. Todavia, os primeiros versos são meio deslocados disso. O início com “Vá buscar o meu amor ou um amigo pra contar a boa nova, um alerto do perigo na mensagem que encontrei” não consegue a conexão adequada se tornando um tanto deslocado do restante da composição. (-0,1 fid.).

A tentativa de contar o enredo do começo é mais bem sucedida depois com “Dos meus ancestrais // lágrimas no tempo, fogo nos rituais // e segui por esse fio // pelo som que se propala” que já constrói, de fato, a história. Porém, esse trecho tem um pequeno problema melódico. “Por esse fio”. “Pelo som”. Tudo muito próximo, tudo muito colado causa sensação de atropelo, dificultando o canto (-0,1 div. mel). A sequência ainda ganha versos insólitos como “pois ardia o pavio, este é meu lugar de fala // o couro esticado por tantas gerações, sinais de fumaça me levam por aí // meu Deus, que saudade, tempo que não vivi” que apesar de bem encaixados melodicamente pela construção de alto nível das células não conseguem encantar poeticamente (-0,1 riq. poé).

O refrão começa com “Ergui minha perdição, tentei encostar no céu // em busca da salvação, vi torres de Babel” que faz menção ao trecho do enredo da verbalização. Esse pedaço é complementado com “Pra se entender, sigo o olhar // mil pergaminhos e caminhos a trilhar”. Tudo isso é bem construído melodicamente, se não fosse a incômoda sensação de repetição. Apesar do balanço, com o passar das audições fica evidente o problema com tantas palavras de mesmo final sonoro muito próximas “perdição/salvação”, “céu/Babel”, “entender/olhar/trilhar”, “pergaminhos/caminhos”. (-0,1 div.mel). A segunda estrofe tenta resumir a evolução da comunicação em poucos versos e não é exatamente feliz. Com “vento, mensageiro das ilusões // sereno, deslizando nos papéis // são asas seduzindo corações // palavras conduziam os fiéis” muitos trechos do tema como a evolução da verbalização são resumidos sem a devida explicação. Tudo isso torna a mensagem de difícil entendimento, já que não há aprofundamento do assunto tratado (-0,1 adeq.).

Na chegada ao trecho mais “moderno” da proposta, tudo fica ainda mais difícil. “O ar que trouxe a lua pra você, ô flor // que faz a vida renascer no alô // grafia linhas geniais, vias digitais” simplesmente não faz nenhuma menção mais explícita da parte da telecomunicação em rádio e televisão. No máximo, no máximo mesmo, cita superficialmente a parte do telefone com o alô. É tudo muito confuso e mal amarrado (-0,1 adeq.). Nos últimos versos da segunda estrofe, surge a revelação do narrador e o tema no século XXI. Com “abro a janela da grande viagem // o mundo na palma da mão // Vila Primavera, influência maior // se avexe não” o samba já se encaminha para revelar seu fio condutor. Afinal, a Vila Primavera citada faz referência ao maior sucesso do grande homenageado, transformado, inclusive, em programa de TV pelo canal a cabo Multishow, mas é no refrão principal que ele realmente aparece.

No “Sou eu, sim, a voz da Casa Verde // vou assim, balançando a rede”, Carlinhos assume seu papel, de fato, narrativo. Mas perceba como tudo é muito frágil. Na proposta, o influenciador é um narrador que se mistura com a história da comunicação. Não dá, só pela letra, para entender quem é quem ao longo da trilha. (-0,1 fid.). O samba é encerrado com os bons versos “A cara do Brasil, um povo vencedor // orgulhoso donde vim, imperiano eu sou” que concluem a composição com correção. No conjunto, é um resultado mais problemático por conta da estrutura temática adotada do que pela qualidade dos compositores já que a trilha, mesmo com as ressalvas apresentadas, é gostosa de ouvir e detém uma sensação de conforto para ouvinte. É como se tudo fosse embalado numa caixa bonita e que traz uma sensação de felicidade mesmo que o presente dentro dela não seja o mais refinado do mundo.

Nota: 9,3

Falhas:

⦁    Fidelidade: -0,2

⦁    Riqueza Poética: -0,1

⦁    Divisão Melódica: -0,2

⦁    Adequação: -0,2


10 - BARROCA ZONA SUL - Para o próximo Carnaval, o Barroca Zona Sul apresenta o belo enredo “A evolução está na sua fé…Saravá, seu Zé!” que aborda a entidade Zé Pelintra onde o foco foge dos clichês do misticismo da figura e embarca numa quase biografia sobre quem foi a pessoa e como ela virou santidade para os devotos da Umbanda. A trilha sonora do desfile completa a trilogia de encomendas para a parceria de Sukata, Thiago Morganti, Thiago Meiners, Marcos Thiago, Jairo Roizen, Luan, Pixulé e Emerson Franco. A parceria, sempre competente, consegue sair do seu lugar-comum e entrega uma composição que é forte, mas tem balanço e, acima de tudo, transmite a mensagem com a especificidade que ela se propõe: Descrever sem esquecer da devoção.

Na narrativa imposta pela letra, o samba transcreve a vida do malandro em terceira pessoa, como se tivesse clamando pela sua chegada. O início parte com um “axé, quando a noite alumia // vou seguir a caminhada carregando a tua guia” que praticamente impõe um desejo de seguir os passos da vida do homenageado. A partir daí, a obra se qualifica para exaltar a trajetória com uma ótima sequência com “louvação se inicia” e o pedido de “proteção” para a entidade Exu a seguir. Devidamente protegido, é hora de partir para mostrar quem foi a figura. A narrativa, passa então, a mergulhar na vida do José Pereira que sem ainda ser a “entidade”, é transcrito com as dificuldades que encontrou.

A vida no sertão pernambucano é contada com os versos “a seca castigava sua terra // nessa vida severina via buscar a liberdade”. No momento seguinte, o início da transformação com José vivendo sozinho no meio do porto da capital de Pernambuco. Lá, o menino se transforma em homem, ganha ares de lenda e se muda para o Rio de Janeiro. No samba, essa transição é feita com clareza nos versos “partiu e abraçou novo terreiro // vestiu a malandragem lá no Rio de Janeiro” onde a melodia sobe de tom para ganhar desenhos mais festivos que remetem a pontos de umbanda, relembrando a boemia que se torna a vida dele nessa fase.

O refrão central é repetido, mas tem um falso bis proposital. A partir dele, o José vira o Zé Pilintra e demonstra toda sua magia. A boêmia na madrugada, o rei do carteado e da encruzilhada, o sapato bicolor, as paixões que deixa pelo caminho, tudo isso é mencionado de forma direta, quase em formato de lista — Zé Pilintra, Zé Pilintra, boêmio da madrugada // É o rei do carteado e também da encruzilhada // Zé Pilintra, Zé Pilintra do sapato bicolor // Juramento de malandro é fugir do desamor — , mas se conectando muito bem na construção. As células da melodia são desenhadas com variações de tom com uma repetição que envolve e traz todo o ar do gingado da malandragem, mas que no verso final prepara já a descida para o início da estrofe a seguir. É excelente!

Na segunda estrofe, a história se propõe a mostrar o legado. Se a entidade já existia, é hora de saber o que ela construiu. Sem cair em clichês, traz dois momentos distintos. O primeiro mais religioso aparece nos quatro primeiros versos com “acende o candeeiro // as almas da umbanda iluminam o congá // nas setes linhas, a responsabilidade // a fé reflete a paz de Oxaláque mostram o que a entidade virou na Umbanda, onde é cultuado em rituais opostos; O primeiro o apresenta como um Exu junto do próprio e de pomba-gira. O segundo, lhe traz como malandro junto de caboclos e preto-velhos para tirar energias negativas, como “pede” Oxalá. A seguir, três versos lembram do lado social da figura que era conhecida como “advogado dos pobres”. Nesse sentido, aparece “tu és o grito das favelas entre becos e vielas // a voz do povo sofredor”, falando de sua postura. No fim, a estrofe fecha com o famoso ditado “Quem me protege não dorme” e o exalta com um forte “meu redentor” que faz associação dele a famosa figura do Cristo Redentor, símbolo da cidade que o abrigou.

Para finalizar uma narrativa com começo, meio e fim, o refrão principal conclama a chegada do homenageado “ao desfile”. Com os versos “quando o couro do tambor, arrepia // abre a gira para saudar meu protetor // incorpora na avenida, a Barroca é quem te chama” a ideia se fecha com a chegada de Zé Pelintra. Percebam: O início abre pedindo licença, depois apresenta a trajetória do José, a transformação em Zé, o legado religioso e social e fecha o trazendo para “incorporar” na avenida, afinal é preciso “respeitar quem veio vencer demanda”, como diz a própria composição. Um espetáculo. Uma proposta que brilha de ponta a ponta e desenha com toda competência os momentos da trajetória, inclusive com células que permeiam cada momento com clareza. Trazendo, inclusive, em determinados momentos, tons relativos ao samba de roda, tão amado pelo homenageado.

Nesse cenário, é seguro dizer que das três encomendas (2019 — Okê Arô, 2020 — Benguela… A Barroca clama a ti, Tereza! e 2021 — A evolução está na sua fé…Saravá, seu Zé!) foi nessa que a parceria foi mais feliz. A palavra equilíbrio é a mais adequada para definir essa trilha. Com pertinência na construção e sem esquecer das ousadias tão essenciais no gênero, o grupo que a compôs construiu um samba praticamente perfeito. Praticamente justamente por um detalhe. O nome Zé Pilintra é repetido quatro vezes com a repetição do central e mais duas vezes no principal. São seis vezes. Isso multiplicado pelo número de passadas na avenida cansa com o passar do tempo e atrapalha a riqueza poética da obra (-0,1 riq.poé). De todo modo, servindo bem ao canto no desfile — como os últimos — e também, sem dúvida alguma, buscando a fuga dos clichês e dos desenhos melódicos previsíveis — algo que tinha virado constante nos últimos dois sambas da agremiação que, mesmo com qualidade, não geravam empatia ao ouvinte — a composição da verde-e-rosa é a mais completa da temporada.

Nota: 9,9

Falhas:

⦁    Riqueza Poética: -0,1

11 - GAVIÕES DA FIEL - Com um enredo crítico político-social intitulado como “Basta!”, os Gaviões da Fiel prometem trazer uma mensagem forte e antenada no que acontece no Brasil e no mundo. Para entender a escolha, é preciso relembrar a veia histórica da agremiação. Muito além do Carnaval, a instituição é bastante ativa em protestos que tocam o “dedo na ferida”. Em maio do ano passado, inclusive, esteve presente nas manifestações que lutaram pela democracia. Além de outros protestos políticos em momentos diferentes da história como quando mencionou o famoso caso da merenda que envolvia o promotor Fernando Capez, inimigo de longa data das organizadas em São Paulo. Por fim, essa temática recupera a imagem da escola de samba em si. Ao longo da sua trajetória carnavalesca, a alvinegra levou para a passarela do samba, mensagens que tinham o conceito crítico; As mais chamativas aconteceram nos carnavais de 1992, 1996, 1997 e, principalmente, em 2002 quando se sagrou campeã com Xeque-Mate.

O samba apresentado é fruto de uma junção de duas obras que venceram o concurso interno. O resultado conta com vinte e dois poetas, — Luciano Costa, Felipe Yaw, Marcelo Adnet, Fadico, Júnior Fionda, Lequinho, Fábio Palácio (Mentirinha), Leonel Querino, Altemir Magrão, Marcelo Valente, Sandro Lima, Rodrigo Dias, Grandão, Sukata, Jairo Roizen, Thiago Morganti, Guinê, Xérem, Claudio Gladiador, Ribeirinho, Claudinho e Thiago Meiners — e é certamente uma composição que minimizou os problemas oriundos da disputa e ainda deu uma cara mais forte ao enredo, mesmo que escorregue em alguns trechos.

O início é interessante já que parte da premissa de colocar a narrativa no lamento do negro, mostrando o primeiro dissabor principal do enredo: O racismo. Os versos “Sou eu, um filho dessa pátria-mãe hostil // Herdeiro da senzala Brasil // Refém da maculada inquisição” são uma boa abertura, mesmo com certa redundância com pátria-mãe e Brasil. A partir daí, a sequência “O pai de mais um João e de mais um Miguel // Na mira da cega justiça // Que enxerga o negro como réu” inicia uma excelente associação entre o tema e os fatos da vida cotidiana.

Antes de tudo é importante abrir um parêntese para explicar quem são João e Miguel e o que a morte de ambos significa: O João citado faz menção a João Pedro, garoto negro, morto em São Gonçalo em maio de 2020. O jovem de 14 anos foi assassinado durante uma operação policial no Complexo do Salgueiro, tomando, inclusive, entre os tiros de que foi alvo, um pelas costas, segundo laudo cadavérico da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Um caso claro de brutalidade policial contra um negro. Já Miguel era filho de uma empregada doméstica que sem condições de cumprir isolamento social, precisou levá-lo para o trabalho. A partir disso, através de um pedido da empregadora, a mãe do garoto foi passear com os cachorros da casa e deixou o filho aos cuidados da chefe. Em seguida, surge uma imagem da criança conversando com a patroa no elevador. A mulher, então, aperta um botão e a porta se fecha. O elevador para no 7º andar, mas o menino só desce no 9º. Minutos depois, o jovem escalou uma grade, na área dos aparelhos de ar-condicionado, que fica na parte comum do andar, fora do ambiente do apartamento, e caiu, falecendo em seguida. Para muitos especialistas da área de história, a morte do jovem era um exemplo claro da herança escravista. Fecha o parêntese.

Na sequência, a estrofe traz um novo “sou eu” que representa uma troca de narrativa. “Sou eu, o clamor da favela, o canto da aldeia, a fome do gueto”. São três citações de elementos distintos que não conseguem indicar o caminho do samba a partir dali. É tão notório que há uma série de menções quase que jogadas para complementar. Mandela e o Novo Soweto representam o clamor da favela e a luta do negro, Cacique Raoni representa o “canto da aldeia” e o guerreiro gavião seria a fome do gueto. Por mais que tudo se complemente, não dá para dizer que fica exatamente simples de se entender e há uma redundância evidente (-0,1 fid.). No refrão central, a composição chega no primeiro grave percalço. Os versos “essa terra é de quem tem mais // conquistada através da dor” fazem referência aos poderosos que detém o poder, o problema é que não há conversa com o restante do refrão “As migalhas que você me oferece // Só aumentam minha força // Pra mostrar o meu valor”. As migalhas são oferecidas a quem? Aos índios? Aos negros? Aos dois? Desse modo, não fica claro já que a segunda transição narrativa não é bem feita, deixando margem para dubiedade de interpretações (-0,1 fid.)

A segunda estrofe é aberta com “meu lugar de fala, a voz destemida // cabeça erguida por nossos direitos” que dá mais uma interpretação, já que a expressão “meu lugar de fala” é cabível de utilização por vários movimentos sociais. E, ademais, os versos seguintes também não conseguem traduzir exatamente quem está narrando esse trecho. Pode ser o negro, o índio ou até um torcedor organizado, por exemplo. Só que os erros meio que param por aí. A sequência do samba é praticamente quase incontestável. Tudo é muito bem amarrado, contextualizado e, sobretudo, pertinente ao que está sendo desenvolvido. A composição passa a falar claramente do fascismo, um perigo alarmante na sociedade atual. Para isso, utiliza “Quando o fascismo do asfalto é opressor a militância por respeito”.

Ou seja, é tocado, literalmente, o dedo na ferida. Aí saí de baixo. O fascismo para a agremiação é representado pela polícia que oprime qualquer manifestação democrática, como uma greve de professores ou…um protesto de torcida organizada. Tudo a ver com a história da Fiel Torcida. E é muito por apresentar o cenário que surge outro momento onde o dedo quase escorrega de tanto tocar na ferida. No verso “O ventre das mazelas sociais ante ao preconceito vai se libertar”, a expressão do desvio moral de caráter fica latente, sem que os Gaviões abram mão de denunciar. 

A composição deixa de ser um simples samba de enredo e vira grito de protesto, integralmente. Observem: Se os negros e as mulheres são os mais atingidos pelo preconceito, a escola diz que vidas negras importam e que não vão calar o grito da mulher. Perfeito. Mais perfeito ainda é que os versos seguintes simplesmente conclamam o Brasil ao combate através da agremiação. Com “Meu gavião! Chegou o dia da revolução // Onde a democracia desse meu Brasil // Faça o amor cantar mais alto que o fuzil”, a Torcida Que Samba demonstra que a democracia é a saída para o fim da intolerância contra os negros, as mulheres, as minorias em geral e, claro, para o fim do fascismo. Pronto. Tudo categórico.

Mas tem o refrão principal e é ele quem “atrapalha” um fechamento tão bonito da obra. Com os previsíveis “Escute o meu clamor… óh pátria amada // É hora da luta sair do papel // Basta é o grito que embala o povo //Eu sou Gaviões, sou a voz da fiel”, o samba não diz nada e ainda fica ainda mais redundante. Se a democracia desse Brasil fará o amor cantar mais alto que o fuzil, qual é a justificativa desse “escute o meu clamor…óh pátria amada” ou até do “basta é o grito que embala o povo”? Nenhuma. Apenas para preencher e dar sustentação. Erro de adequação (-0,1 adeq.). Mesmo assim, o resultado, como disse acima, é muito bom e traz a sensação de que a escolha do tema valeu a pena. Se a ideia da agremiação era ter um samba que servisse como um soco na cara no meio de tanta desigualdade no país, conseguiu. Desse modo, a preto-e-branca certamente terá uma composição que orgulhará todos os muitos gaviões nas ruas e avenidas da cidade.

Nota: 9,7

Falhas:

⦁    Fidelidade: -0,2

⦁    Adequação: -0,1

12 - COLORADO DO BRÁS - Homenageando Carolina de Jesus, com o enredo “Carolina, a Cinderela negra do Canindé”, o Colorado do Brás apresentou uma temática que não tem rodeios. É a vida de Carolina direto ao ponto. Posto isso, o samba escolhido é extremamente adequado ao projeto de desfile que a agremiação pretende apresentar. Composto por uma parceria conhecida e vencedora em São Paulo formada por Thiago Sukata, Turko, Maradona, Rafa do Cavaco, Thiago Meiners, Cláudio Mattos, Luan e Valêncio, a obra segue o padrão de duas estrofes e dois refrães que é conhecidíssimo no gênero. Sem grandes inovações, a composição aposta é na correção para encantar com as audições.

A primeira estrofe já abre o samba com a narrativa em primeira pessoa, construída pela própria Carolina de Jesus. Na visão dos compositores, é a homenageada quem conta sua história. O início é bonito com “Salve o povo da rua // abre caminhos pro destino abençoar”, mas que fica deslocado (-0,1 fid) pelo que vem na sequência “Sou eu, Carolina de Jesus” que me parecia mais apropriado para a abertura da obra. Posto isso, acho que o samba vai bem nesse momento, com subidas interessantes no “Bitita! Livre feito uma borboleta!” e no “Menina! Poema de asfalto a luz do luar” que é um efeito muito utilizado pela composição. Nele há respiros melódicos, não tornando a audição cansativa, mesmo que perca, em algum momento, em riqueza poética.

No refrão central, acho que a obra ganha seu melhor momento. A interpretação do momento da ida de Carolina para São Paulo ganha versos poéticos e dramáticos em uma construção bastante interessante, alternando efeitos de força e lamento. Observem: “Lá vou eu pra batalha (força) // não tinha o que comer (drama) // fiz verso e poesia (força) // retratando o meu viver (drama) // Quando cheguei a São Paulo (força) // sem rumo, nem renda (drama) // falei de justiça (força) // pra que o mundo entenda (drama)”. Ficou bem casado e, acima de tudo, bonito! Na segunda estrofe, o samba volta a utilizar do recurso mencionado acima com “Extra! A negra enriqueceu”, mas peca no problemático uso do “sou eu… a mãe preta resistência” que parece totalmente jogado para completar a estrofe. Afinal, Carolina já tinha se apresentado e de uma forma muito parecido com “A voz da pele preta a ecoar” na primeira estrofe (-0,1 adeq.).

A partir daí, a composição tem outra sequência muito bonita que reflete novamente aquele efeito força e drama que mencionei anteriormente. “Mazelas (drama) que refletem a consciência (força) // nas folhas de cadernos (drama) // a verdade se traduz (força)” que transmitem com poesia a mensagem. Por fim, faz excelentes associações com Jesus — sobrenome da homenageada (em meu sobrenome, uma prece) e um trocadilho interessante com o “Ser a” e “Será” “cinderela” que passa bem, apesar de ser melodicamente questionável, por não deixar claro o sentido (-0,1 div.mel). Por fim, os dois últimos versos fecham bem com “Vencer o preconceito… lutar é nosso direito // não duvide da bravura da mulher” que sintetizam a trajetória de Carolina, mesmo com uma rima que não é das mais inspiradas (Preconceito/Direito) o que, infelizmente, prejudica na riqueza poética. (-0,1 riq.poé). Mas o que vem a seguir é que complica bem.

O refrão principal, em partes, é extremamente desconexo com o restante da narrativa. Percebam: “Samba da favela, nega batucada // a Colorado é a voz da emoção” simplesmente não se conecta com nada do que vem anteriormente e nem com o que vem depois (-0,1 adeq.). Os últimos dois versos “Um grito de coragem pra cantar o amor // respeita a minha cor”, inclusive, conversam muito mais com os finais da estrofe, tornando o trecho citado bastante “fora de eixo” na construção. Apontados os poréns, também registro que o andamento da obra — excessivamente acelerado — pode tirar muito do peso poético da composição já que os desenhos melódicos, especialmente no refrão central e na segunda parte acompanham o “força” e “drama” citado. É um ponto a se observar.

Nota: 9,5

Falhas:

⦁    Riqueza Poética: -0,1

⦁    Divisão Melódica: -0,1

⦁    Adequação: -0,2

⦁    Fidelidade: -0,1

13 - VAI-VAI - A tentativa da maior escola da cidade para o próximo Carnaval com o enredo “Sankofa” é mais que exaltar a figura do negro, também reverenciar sua soberania na história da humanidade e, claro, falar de seus bambas e sua história. É como se a Saracura para falar do negro, precisasse também falar de si mesma. Uma espécie de resgate com auto-afirmação que fez muito bem a atual imagem, um tanto combalida, da agremiação.

Nesse sentido, a proposta, apesar de alguns momentos onde tudo parecer ser uma mistura sem o devido encaixe, acabou gerando um samba que se não é perfeito, é forte, cheio de referências interessantes e que, primeiro, ainda traz o estilo necessário para abrir o sábado. A obra assinada por Xande de Pilares, Peu, Claudio Russo, Junior Gigante, Jairo Limozini, Silas Augusto, Zé Paulo Sierra e Bruno Giannelli traz um estilo muito único de interpretar a temática desde a disputa do samba. Ao contrário de muitos outros concorrentes, a obra tentou criar correlações de cenários entre o momento ancestral do tema — se aproveitando de deixas interessantes da sinopse como a menção a malandragem de Ananse — e o Vai-Vai com sua história e seus baluartes.

O início é bem forte e traz uma correlação interessantíssima com “Voltei, porque, de fato, sempre fui especial e o povo vibra ao me ver no Carnaval, eu sou soberana”. Se a ideia do enredo é resgatar o passado para reconstruir o presente, nada melhor que começar a história com voltei. Mas aí que entra a sacada inteligente dos compositores ao longo da obra. Esse “voltei” também faz evidente menção ao próprio Vai-Vai e o retorno ao Especial. Inteligente e simples. Tudo em simultâneo. Logo depois, o samba mergulha mais na parte ancestral com o “Brilha Sankofa // reflete em meu olhar //toda a realeza africana” e “e vai…voltar ao passado para se encontrar // juntar os pedaços da velha memória // um dia apartados por todo esse mar” em sequência. A questão aqui é que, nesse momento, a correlação com a escola é deixada de lado, o que atrapalha a construção narrativa. Em adequação ao tema, tudo bem, mas a questão é que tudo fica um tanto confuso nesse trecho sem criar unidade com o que vem anteriormente e, além disso, fica ainda mais deslocado pensando no que vem a frente. (-0,1 fid.)

Os últimos três versos da estrofe fecham com “Ananse! Malandro quebrou a cabaça encantada // sabedoria axante // estampada num berço de ouro vai se revelar” que continua a ideia apresentada anteriormente, sem grandes problemas de fidelidade. Apenas a melodia do primeiro verso da tríade que acaba isolada no restante da divisão, sem qualquer categoria de conexão com o que vem antes e depois. É meio que um ponto único. (-0,1 div. mel).

Chegado o refrão de meio, o samba fica praticamente irretocável. Os versos desse trecho e da segunda estrofe são incontestáveis já que vem, em todo tempo, criando o cenário de correlações que já fora mencionado. A Saracura se torna a protagonista do seu próprio Sankofa e não há mais ressalvas. Começando pelos versos “Preta batucada, nossa arte, meu irmão // é madeira mais escura, até na palma da mão // salve a cultura no meio da rua // A tradição que resistiu a luta”. Nesse ponto, os compositores criaram a correlação da arte do esplendor da África Negra que virou adorno até nas casas e palácios reais da Ásia e da Europa com a arte do samba da Saracura. Sem ficar pedante, sem ficar forçado. Apenas relacionado os dois cenários. Demais!

Na segunda estrofe, esse caminho também é apresentado de modo similar. Durante a viagem de volta as raízes, a Sankofa do Vai-Vai encontra um Bixiga diferente daquele de antes, mas com sua essência preservada. “No alvorecer entre arranha-céus // reluz a coroa, meu troféu”, mostra que apesar de estar fincada no meio da Selva de Pedra, a casa da Saracura segue lá brilhando firme e forte e mostrando ser lá que o negro se sente importante com “onde o negro não é qualquer um // onde a raiz se fez escola”. No fim, começa a retornar o passado para recriar o futuro. Com as citações aos bambas Dona Olímpia, Seu Livinho, Henricão e Geraldo Filme, é como se a viagem encontrasse suas referências e, finalmente, estava pronto para retornar e reconstruir seu ninho. Perfeito!

O refrão principal, no entanto, apresenta menos brilho. Apesar da valentia e da perfeita conexão com a ideia do início e da segunda estrofe — repare a ideia de tornar a parte ancestral (tambor africano) e o Vai-Vai (mesmo tambor da Saracura) — do “tambor africano, de negra bravura // é o mesmo tambor da Saracura // quilombo do Samba não morre jamais // eu sou Vai-Vai”, a sensação é de que o samba poderia ter sido mais explosivo ali. Faltando uma melhor unidade na construção da letra, traz a impressão de que o melhor já tinha passado (-0,1 riq. poé). De todo modo, no conjunto, fica claro que retornando a elite, a Escola do Povo entrega uma composição inspirada e com a garra que era necessária. Um ponto adicional que me chama especial atenção é como a composição parece feita para o balançar característico das bandeirinhas da torcida da agremiação no Anhembi. Essa união promete!

Nota: 9,7

Falhas:

⦁    Fidelidade: -0,1

⦁    Riqueza Poética: -0,1

⦁    Divisão Melódica: -0,1

14 - ACADÊMICOS DO TUCURUVI - O Acadêmicos do Tucuruvi no próximo desfile apresenta o enredo “Carnavais: De lá pra cá, o que mudou? Daqui pra lá, o que será?” que apresenta uma proposta de reflexão sobre o Carnaval de São Paulo. Entre o saudosismo sobre o que passou e a crítica sobre o que acontece, o samba denota claramente os momentos do enredo e conta com competência, o que se propõe. De autoria de Diego Nicolau, Marcelo Chefia, Rodolfo Minuetto, Rodrigo Minuetto e Leonardo Bessa, a obra propositalmente não menciona o nome da escola. Servindo com uma espécie de manifesto do sambista, a letra apresenta uma figura saudosa do que aconteceu e crítico com o que acontece, mas que não esquece, no fim, que a esperança passa, acima de tudo, por si e sua fala.

O início da letra já denota claramente que a primeira estrofe apresenta o “De lá pra cá”. Nos primeiros versos existe um pedido de uma volta ao passado com os versos “tempo me leva // me faz viajar nos trilhos da saudade // onde a gente se perdeu e deixou para trás nossa simplicidade?”. O problema é que o último verso que tem intenção de pergunta não obtém resposta nos versos seguintes e melodicamente (-0,1 div.mel) não constrói entonação de pergunta, ficando vago ali nesse começo. A partir daí, o samba engrena na nostalgia. Na sequência, apresenta um “os pés no chão, levantando poeira, // os versos marcados no meu coração // eu era feliz e não sabia // fui o rei da dessa folia, coroado na ilusão” fecham a saudade da estrofe. Nesse momento, a composição apela para o lado emocional, mas a sequência chÃO, coraçÃO e ilusÃO muito próxima traz um ar de repetição, prejudicando a unidade (-0,1 riq.poé).

No refrão central, o fim da “primeira parte” do enredo menciona com muita beleza e clareza, a Avenida Tiradentes, antigo palco dos desfiles das escolas de samba de São Paulo. Com uma bonita célula melódica, a obra, finalmente, engata no acelerador na melodia e traz uma sensação de carnaval antigo. O verso “Ah, quem me dera, amor” é bonito e abre o refrão. O problema é que a sequência é toda terminada em ar com “voltAR, encontrAR, cantAR” que antecedidos por amoR que termina em R e traz um cansaço que acontecia anteriormente na estrofe que antecede.

Na segunda estrofe, surge o “Daqui pra lá”. A crítica chega aos tempos atuais e apresenta os problemas que vemos no Anhembi e no Carnaval de São Paulo. O sambista engessado pelo regulamento, o dinheiro sobrepondo a criatividade e a vaidade virando ponto principal no show. Bem na linha da crítica de “O Samba Sambou” apresentada pela São Clemente em 1990/2019, a obra passeia por pontos óbvios e verdadeiros, mas sem a devida profundidade, falhando no foco do enredo que é voltado ao Carnaval de São Paulo (-0,1 adeq.).

Em construções de rima, o samba volta a apresentar falhas que aparecem na primeira. Com muitas rimas finalizadas em r como “valoR, olhaR e calaR” (-0,1 riq.poé), o samba parece ter os desenhos melódicos iguais aos da primeira, o que não é exatamente uma verdade, como podemos observar na ótima subida dono choro da velha baiana”, mas como já exposto, há, sim, essa sensação causada por esse tipo de finalização que desabona o conjunto (-0,1 div.mel).

Por fim, o refrão principal é até bem construído mencionando claramente os dois grandes momentos do enredo, mas se não cita o nome da escola como é comum, apela para o óbvio “o samba não acabou, nem vai acabar // sou resistência e você tem que respeitarque não agrega em nada na mensagem e nem, de fato, consegue apresentar quem é a tal resistência. Se é o samba ou sambista. Um problema notório (-0,1 adeq.). Com uma construção bonita e bem desenhada, a obra tem problemas óbvios que acabam por atrapalhar o geral. Há rimas previsíveis que transformaram algumas células melódicas com cara de dejavú. Mesmo assim, é seguramente, a melhor trilha que a agremiação trouxe nos últimos cinco anos.

Nota: 9,4

Falhas: 

⦁    Riqueza Poética: -0,2

⦁    Divisão Melódica: -0,2

⦁    Adequação: -0,2

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