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Os sambas de 2022 por Marco Maciel

Os sambas de 2022 por Marco Maciel
Twitter: @marcoandrews
E-mail: sambariobr@yahoo.com.br

As avaliações e notas referidas apresentam critérios distintos dos utilizados pelo júri oficial, em nada relacionados aos referidos desempenhos que as obras virão a ter no desfile

A GRAVAÇÃO DO CD – "Alô Brasil! Alô mundo! O Carnaval voltou!". A mensagem de Neguinho no fim da faixa da Beija-Flor sintetiza um período do qual nunca mais esqueceremos, enchendo de esperança o coração dos foliões órfãos do maior espetáculo audiovisual do planeta em 2021. Que a temida quarta onda de Covid-19 que assola alguns países da Europa não chegue em nosso país e atrapalhe os planos de vida normal definitiva e a consequência do retorno à Sapucaí e aos demais sambódromos.

Apesar do hiato de dois anos sem disco de samba-enredo, o período forçadamente sabático não motivou uma evolução nas gravações, pelo contrário. A pandemia levou, entre tantos notáveis do Carnaval, o grande Laíla, produtor dos álbuns oficiais desde os anos 70. Mário Jorge Bruno se viu sozinho pela primeira vez capitaneando os trabalhos. O CD de 2022 não só inicia uma nova era sem Laíla, como também inaugura um expediente marcado pela ausência dos CDs físicos, hoje considerados dispensáveis com a força das plataformas digitais. O colecionador de vinis, compact disc's e até fitas K7 que lute para adquirir um exemplar da limitadíssima tiragem que será feita pela Universal, de acordo com os pedidos e demandas.

A ideia de que os tempos estão mudando ficou explícita através da divulgação dos sambas no Spotify e na Deezer em EPs semanais, de acordo com as três finais correspondentes exibidas no já histórico e bem-sucedido "Seleção do Samba". Porém, a nova tecnologia acabou inversamente proporcional à qualidade da gravação. O produto entregue parecia um tanto cru, como se faltasse detalhes preciosos e um reflexo claro da pressa na finalização da faixa, devido à novidade no formato de apresentação. O áudio do intérprete desponta abafado, a captação dos instrumentos de bateria segue deixando a desejar e chamam atenção alguns efeitos aleatórios, como os parecidos com videogame na faixa da Tuiuti e o melancólico violino da São Clemente. As prometidas melhoras na mixagem com o álbum na íntegra não foram tão percebidas. Até o diretor de marketing da LIESA, Gabriel David, não poupou críticas à produção.

A principal peculiaridade do álbum é o intérprete chamar pelo nome o mestre de bateria (ou a nomenclatura de guerra desta), para que uma bossa seja feita na abertura da faixa, antes do início do canto do samba-enredo. Dirigentes como Luiz Pacheco Drumond voltaram a ser citados pelos cantores depois de muito tempo. A safra traz num primeiro pelotão os grandes sambas (pela ordem do CD) de Viradouro, Grande Rio, Mocidade, Vila Isabel e Unidos da Tijuca. Num segundo, os bons de Beija-Flor, Portela, Tuiuti e Imperatriz. E no último, Salgueiro, Mangueira e São Clemente.

Que a enxurrada de avaliações negativas à produção fique como lição para as próximas temporadas. Se o resultado do retorno ao estúdio em 2020 correspondeu às expectativas, o irregular CD de 2022 pode motivar a LIESA a repensar o formato. Quem sabe uma volta dos registros ao vivo na Cidade do Samba. Para os mais antigos, a saudade do extinto Teatro de Lona da Barra da Tijuca só aumenta...

NOTA DO DISCO: 8,0

1 – VIRADOURO – Abrindo o CD de 2022, a atual campeã nos brinda com o já famoso samba-carta de Felipe Filósofo e parceiros. O querido e carismático compositor proporciona mais uma inovação no gênero, depois das experiências na Acadêmicos do Sossego do samba sem rima (2016), do samba-diálogo (2017) e do samba sem-verbo (2018), agora no Grupo Especial como a primeira faixa do disco e sendo o hino a defender o campeonato da Viradouro. 

Como o samba-carta nasceu é um conto à parte. A vermelho-e-branco solicitou a volta dos sambas depois de uma safra problemática, e Filósofo celebrou o recall, já que, segundo o compositor na LIVE SAMBARIO realizada em março (na época do lançamento da segunda safra), o concorrente original dele, uma obra mais normal, não tinha repercutido nas redes sociais. Então prometeu, em nossa live, inovar anualmente em todas as disputas da Viradouro de 2022 em diante. 

Na carta sincera, o pierrot assume a função do eu-lírico, podendo representar qualquer folião saudoso da festa não-realizada em 2021. Ele endereça a presente epístola à colombina, que personifica o próprio Carnaval. Folia que voltava para as ruas como celebração ao retorno da vida normal depois da pandemia da gripe espanhola do ano de 1918, trazida pelos combatentes da Primeira Guerra Mundial recém-encerrada. O povo voltava a brincar em 1919, assim como nós, se Deus quiser, retornaremos em fevereiro. 

Excetuando, obviamente, o refrão principal, a narrativa pode ser utilizada tanto há mais de 100 anos atrás como nos dias atuais. A letra é antológica, possivelmente poderá se tornar uma das melhores da história recente do samba-enredo, e reescreve o tema proposto não procurando seguir passo a passo da sinopse, de maneira a apresentar com toda a licença-poética um personagem que procura voltar pros braços do Momo, e sua busca acaba sendo bem-sucedida com romantismo. A forma como a cura é abordada é esplêndida, em versos como "aos pés da Cruz agradecer à Saúde" (referência à Cruz Vermelha, citada no texto da escola), "fui ao terreiro, clamei Obaluaê" (o orixá da saúde) e "se afastou o mal que nos separou". A frase "tirei a máscara no clima envolvente" pode ser aplicada no contexto, com duplo sentido.

O refrão principal é um acontecimento, com a assinatura do pierrot apaixonado e a data da Quarta-Feira de Cinzas do dito "maior Carnaval de todos os tempos": 5 de março de 1919. A letra é primorosa, porém tamanha ousadia acarreta em alguns problemas na melodia. As notas exageradamente esticadas no trecho "Amanheceu, num instante já / os raios de sol foram testemunhar / o desembarque do afeto vindouro / acordes virão da Viradouro" deixam vários buracos que devem obrigar Ciça a utilizar um andamento bem pra frente, para que o samba adquira valentia, já que a qualidade musical é de total lirismo (conforme diz a letra, no célebre verso). Por outro lado, a sequência favorece os vibratos de Zé Paulo Sierra, que vem se tornando notório por encarnar um cantor-ator em suas performances, segundo as palavras do próprio Felipe Filósofo. O hino foi composto sob medida pro intérprete, que abraçou e colocou sua cara no samba-carta rapidamente, numa atuação impressionante no álbum. A homenagem ao saudoso Dominguinhos do Estácio não poderia faltar, no começo da faixa durante o grito de guerra, bem como o "vai Ciça" também marca presença.

O estilo é distinto das obras atuais, com a cabeça do samba-enredo sendo mais forte que o refrão principal, que tem a função de complemento da segunda parte (encerrada com o apoteótico "Carnaval te amo, na vida és tudo pra mim") e finalização da música, em que prolifera uma levada dolente, e não precisa dos refrães para a sustentação da melodia. Tanto que o pequeno central de apenas dois versos não tem explosão, apenas fecha a primeira. Zé Paulo Sierra, na LIVE SAMBARIO, enalteceu a obra e reforçou que a Viradouro, como atual campeã, tem a liberdade para arriscar, a fim de sair da zona de conforto das últimas obras funcionais com que desfilou, incluindo o histórico "ensaboa". Ouso dizer que, se emplacar, o samba-carta entrará pra história do Carnaval. Que 2022 seja a libertação similar a de 103 anos atrás.

Sentimos o lirismo!

NOTA: 9,9

2 – GRANDE RIO – A Tricolor de Duque de Caxias passa a seguir uma nova fórmula de "time que está ganhando não se mexe". O grande êxito da homenagem a Joãozinho da Goméia no antológico "pedra preta" virou a chave da agremiação que, capitaneada pelos talentosos carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad, se abraça à linha de temas culturais que modificou todas as estruturas e a reputação da escola junto aos amantes do Carnaval. O tema sobre Exu, que visa retirar o rótulo pejorativo que o orixá representa para muitos e enaltecer suas virtudes, proporcionou mais uma bela safra de concorrentes e um sério candidato a repetir a conquista do Estandarte.

A melodia do hino é tão envolvente que você não percebe que não há nenhum bis, sequer um estribilho. A música é impulsionada por uma cabeça que se torna a marca do samba-enredo: "boa noite moça, boa noite moço", a saudação do Exu catiço quando ele baixa na Terra para abrir os caminhos. "Fala Majeté" é a expressão utilizada por Estamira, uma das personagens do enredo, que dizia se comunicar com o orixá no lixão de Gramacho. 

As variações do samba impressionam, por sempre buscar soluções distantes do lugar comum. A partir do verso "Exu caveira, sete saias, catacumba", quando você espera um refrão normal, aparece um falso arrojado que ao ouvir faz você sair do chão, tamanha a explosão. Claramente se nota que a melodia foi composta primeiro para a letra ser inserida posteriormente, e ainda assim todas as palavras se encaixam perfeitamente. O começo da segunda é ainda mais vibrante com o "ô luar ô luar" que remete ao clássico da escola de 1993. Os falsos refrães seguem impulsionando, com o "laroyê laroyê" que faz uma ótima preparação para o (também falso) refrão principal, este com menos força que a cabeça. O interessante é que a narrativa é circular e permanente, já que o último verso "eu levo fé nesse povo que diz" recebe o "boa noite moça...", que abre o samba, como complemento. 

O hino tem seguidas explosões, não caindo nunca, e tanto na versão concorrente quanto no CD oficial, recebe interpretações vibrantes de Evandro Malandro, cada vez mais identificado com a Grande Rio. A obra em nada deve ao já histórico "pedra preta" e também tem potencial para entrar na história recente do samba-enredo.

NOTA: 10

3 – MOCIDADE – Desde 1976 sem desfilar com um tema afro, a verde-e-branco quebra o tabu de quase meio século com uma obra vibrante, cuja melodia envolvente nem faz você sentir a complexidade da letra. O excesso de expressões, principalmente na primeira parte, causa até um temor por parte do júri oficial, que despontuou sem piedade a União da Ilha em 2017 por este motivo (o que foi um absurdo). E tanto Ilha quanto Mocidade não têm tradição na temática. Evidentemente, é preciso um estudo mais aprofundado para você compreender o que está sendo cantado. Tanto que a escola disponibilizou em suas redes sociais um glossário que explica algumas palavras presentes no samba-enredo, de qualidade musical tão elevada que você entoa "arerê komorodé", exclama que está "areretizado", mas não esconde o desconhecimento dos detalhes da exaltação à Oxóssi e toda a ligação e o sincretismo que o orixá tem com a bateria Não Existe Mais Quente. Não é à toa que os grêmios recreativos carnavalescos são conhecidos como ESCOLAS de samba.

Resumindo a primeira parte, ela se dedica a exaltar o orixá do arco e flecha, da mira certeira, o dono da mata que receberá sua oferenda (ajeum) no dia sagrado (quinta-feira), que incorpora na batida que proporciona alegria ao riscar o ponto, sob o axé da árvore sagrada (Jurema). Oxalá coroa Oxóssi, o orixá da Mocidade, o rei da comunidade de Padre Miguel. No refrão do meio, a imponência é sintetizada no fortíssimo verso "Oxóssi é caçador de uma flecha só", e também consta algo que anda aparecendo nos sambas recentes: versos diferentes na segunda virada em "irmão de Ogum/irmão de Exu". 

A segunda parte enaltece a ligação de Oxóssi com o Candomblé da Bahia (onde é chamado de Ibualama), fazendo o link com o terreiro de Gantois (e a homenagem à Mãe Menininha pela Mocidade em 1976), chegando ao Rio de Janeiro. É dado início à exaltação aos ritmistas, através da citação ao Cacique de Ramos e à saudosa Tia Chica (a lendária líder espiritual de Padre Miguel) no falso refrão do "ô juremê, ô juremá", que reforça a falange de Oxóssi na Umbanda. Os quatro últimos versos que servem de preparação pro vibrante refrão principal mencionam aqueles que construíram a história da bateria da Mocidade Independente, que dedica seu ritmo e dança ao orixá da flecha certeira com seu tambor invertido (a primeira marcação aguda e a segunda grave, ao contrário das demais), e faz do aguidavi (vareta utilizada na percussão dos tambores no candomblé) a baqueta que Mestre André conduzia seus ritmistas tal qual um maestro (ele não usava apito).

O refrão principal de melodia grudenta que fixa em nosso subconsciente saúda a festa de Oxóssi pra vencer o mal que um dia foi feito, reforçando a repetição do "arerê komorode" que causa um grande efeito no ouvinte e torna inesquecível já na primeira audição. Há a exaltação ao orixá ("arolé") e o esplêndido verso "todo ogã da Mocidade é cria de Mestre André". Sim, porque os ogãs são quem rufam os tambores nos cultos. A ponto de Wander Pires, que vive o melhor momento da carreira, mudar seu grito de guerra para "alô meus ogãs de Padre Miguel". Aliás, que gravação estupenda de Wander, pra mim a melhor do disco.

A melodia se mantém coesa, valente e pesada durante todo o tempo, característica dos sambas da temática, com uma primeira mais extensa e sendo impulsionada por refrães, falsos refrães e estribilhos até chegar na explosão do refrão principal. O samba mantém o positivo histórico da Mocidade de obras grandiosas desde 2017, quando a escola abriu um novo portal com o título dividido com a Portela e sempre chegando nas campeãs desde então. Há tempos a comunidade pedia um enredo para o ori da Mocidade (Oxóssi), tal qual o Salgueiro realizou em 2019 com Xangô. E o sincretismo permitirá que a história da mais famosa bateria de escola de samba do Carnaval seja contada na Sapucaí com um samba vibrante e à altura.

NOTA: 9,9

4 – BEIJA-FLOR – Último samba composto por J. Velloso, falecido em 2020, a obra resgata a imponência apresentada pelos nilopolitanos nos anos 2000, sendo muito familiar aos ouvidos de quem se acostumou com os sambas-enredo da Beija-Flor daquela época. Valente do início ao fim, a pegada remete aos melhores tempos da escola nesse século. De refrães marcantes, a melodia é encorpada e vibrante, de excelentes variações. Daqueles de fazer rasgar a pista!

É louvável o verso "ergui o meu castelo dos pilares de Cabana", em homenagem ao grande compositor da Beija-Flor, exaltado também na sinopse. Ainda que o enredo tenha a intenção principal de mostrar os pensadores de pele preta e os ideais dos negros, a poesia opta por uma narrativa em que a luta e a resistência ganham mais destaque. Ou seja, fica parecido com o que Salgueiro e Paraíso do Tuiuti apresentarão na temporada. 

A intelectualidade se faz presente no refrão do meio, com as citações a Cruz e Souza, Nossa Senhora (da Conceição) Aparecida (ainda que também possa sugerir a menção à escritora Conceição Evaristo), Carolina de Jesus (e sua morada, a favela do Canindé em São Paulo) e o livro "Clara dos Anjos" de Lima Barreto. A Beija-Flor é mais uma escola a apostar na modificação do último verso do refrão na segunda virada, o que se tornou uma tendência atual. Uma dos melhores frases do ano no Grupo Especial sintetiza muito bem a intenção do tema: "arte negra em contra-ataque".

Inclusive, o samba é repleto de trechos fortíssimos, de clamor, como o esplêndido final da primeira parte em "quem é sempre revistado / é refém da acusação / o racismo mascarado pela falsa abolição/ por um novo nascimento, um levante, um compromisso / retirando o pensamento da entrada de serviço", em que o "nascimento" pode servir de referência a Abdias do Nascimento. Ainda há a auto-exaltação, presente em "sob a tradição nagô/o grêmio do gueto resistiu", numa referência ao clássico nilopolitano de 1978 "A Criação do Mundo na Tradição Nagô".

O tom de contestação elevado da poesia se mantém durante toda a obra, gerando mais uma interpretação de elevado nível de Neguinho. É a Deusa da Passarela querendo se reencontrar com a multicampeã luxuosa e valente de um passado ainda não tão distante.

NOTA: 9,8

5 – SALGUEIRO – Envolvida em mais uma polêmica escolha, a Academia do Samba opta por um refrão principal curto em relação aos convencionais. Buscando um efeito similar ao "Salgueiro vermelho" de 2003, os compositores usam como cartão-de-visitas um "Salgueirô Salgueirô" que divide opiniões, ainda que me agrade. O problema é o temor pela identificação do jurado de erro de prosódia, ou seja, sílaba tônica deslocada. 

É uma obra que por alguns momentos lembra aquelas que o Salgueiro trouxe na década de 2000, num misto de melodia pesada com valentia, e a levada pra cima. A estrutura não traz muitas inovações: uma primeira um pouco pra trás, um refrão do meio robusto, pra na segunda parte o hino se soltar e ficar mais pra frente. Talvez isso justifique a brusca modificação melódica no começo da segunda. Uma subida tão gigantesca no tom que claramente Quinho se atrapalha ao cantá-la na primeira passada da faixa (Emerson Dias mostra muito mais segurança no trecho na passada seguinte). Mesmo com a melhora na qualidade dos sambas-enredo no último decênio, estas subidas ainda são uma tendência para ajudar na funcionalidade na avenida, algo que infelizmente limita a beleza musical. Na minha opinião, o começo original da segunda parte na versão dos compositores era o melhor momento do samba. 

A letra descreve bem a resistência do negro contra as mazelas, sendo bem objetiva e tornando a mensagem facilmente compreensível, deixando de lado o excesso de citações aos baluartes salgueirenses utilizadas por alguns concorrentes da disputa. Destaco a sequência "sambo pra resistir/semba meus ancestrais/samba pelos carnavais". Versos como "da bala que marca feito chibata" e "e nunca mais sinhá" podem implicar em duplos sentidos, através de referências ao saudoso compositor Bala e à ex-presidente Regina Celi. 

Acho um bom samba, diferentemente do pensamento de muitos, mas distante do pelotão de frente da safra. Em tempo: o efeito inserido no refrão do meio na segunda passada me remete ao "espírito" do Silas de Oliveira inventado por Ivo Meirelles na faixa do Império Serrano para 2016.

NOTA: 9,4

6 – MANGUEIRA – Para o Carnaval 1998, a parceria de Moacyr Luz chegou na final de samba da verde-e-rosa que homenagearia Chico Buarque com uma obra aclamada. A derrota na decisão pra um hino mais limitado em termos de letra e melodia comoveria muita gente. O samba foi gravado pouco tempo depois para o CD de Paulinho Tapajós (outro compositor do samba vencido, junto com Edmundo Souto), com o nome de "Ao Chico com Carinho" e participações na faixa de Beth Carvalho, Quinzinho, Jurandir, Nelson Sargento, Darcy e a Velha Guarda da Mangueira. 

24 anos depois, o oposto aconteceu. O mesmo Moacyr Luz seria vitorioso na Mangueira, com um samba-enredo considerado inferior a um outro finalista apontado como favorito, num tema também de celebração a notáveis mangueirenses. Cartola, Jamelão e Delegado mereciam uma trilha melhor, assim como Chico Buarque no distante 1998. O refrão principal com todas as rimas terminadas em "ado" é reflexo de uma solução pouco feliz. Ouvir uma única rima por oito versos seguidos é cansativo, a audição não é agradável. E a melodia do trecho é genérica, a impressão que dá é que foi escutada em diversas outras obras. 

A letra não utiliza a narrativa da maioria dos concorrentes, que é descrever separadamente os grandes baluartes mangueirenses. A poesia busca ser mais subjetiva, principalmente na segunda parte, quando se assemelha mais a um samba de quadra ou meio de ano, numa auto-exaltação que poderia ser inserida em qualquer enredo pra preencher lacunas restantes. O foco dos compositores na primeira é destacar os ofícios do trio na juventude, que gera o trecho mais chamativo de todo o samba-enredo: o controverso "lustrando sapato, vendendo jornal", cantado numa lenta separação silábica que chega a causar uma discrepância com relação aos demais versos. 

A melodia do samba busca ser classuda, no entanto, excetuando o belo refrão do meio (melhor momento da música) que sintetiza a tripla homenagem, você não se emociona escutando a obra, que carece de momentos de explosão. Marquinho Art Samba fez uma belíssima gravação, crescendo um pouco a qualidade no CD. Mas o samba-enredo para Angenor, José e Laurindo está muito aquém da história que a trinca construiu na verde-e-rosa e nas artes do país. Talvez a Mangueira esteja buscando a mesma solução do já citado Carnaval de 1998: ser campeã com um samba contestado e limitado. Se Moacyr Luz chorou antes com a derrota injusta, hoje ele sorri com a vitória que muitos julgam inexplicável.

NOTA: 9,2

7 – PORTELA – O fato do samba oficial ter vencido um concorrente celebrado na disputa faz com que suas qualidades sejam ocultadas e os defeitos mais evidenciados. Se fala muito, por exemplo, do trocadilho "azul e banto" que abre o excelente refrão principal, no estilo samba de roda, o cartão-de-visitas do hino portelense pra 2022. Ou do verso "raiz imponente da primeira semente" que, assim como o já citado "lustrando sapato, vendendo jornal" da Mangueira, é tão estendido na melodia que parece deslocado do restante. 

Mas a Águia levará um bom samba pra Sapucaí. A eliminatória teve semelhança com a do Salgueiro num aspecto: foram muitos os concorrentes que exaltavam em demasia os baluartes. Porém, a obra escolhida também deixa de lado as citações e apresenta uma letra mais objetiva, ainda que seja necessário esclarecer o sentido de alguns versos. Afinal, como a Mocidade, a Portela há muito tempo não desfilava com um tema afro: há exatos 50 anos, desde "Ilu Ayê" de 1972 (citado no refrão, que saúda Oxóssi e Xangô).

A primeira parte pede pro componente separar a mucua, o fruto da árvore Baobá, elo ancestral entre o céu (orun) e a Terra (ayê). O orixá Apaoká, entidade protetora da sagrada jaqueira portelense, baixa no xirê, a festa que a azul-e-branco de Oswaldo Cruz e Madureira promoverá na avenida. O refrão do meio originalmente tinha duas melodias diferentes. O trecho era bonito de se ouvir na gravação, mas pra funcionalidade no desfile seria inviável. A solução foi manter a melodia da segunda virada. Apesar de manter a boa qualidade musical, o fato do refrão ser extenso ainda pode ser um prejuízo no rendimento da obra. 

Trocando em miúdos, o refrão central traz a benção de Obatalá, o orixá que criou o mundo, eternizada em plena batucada pelas ruas e encruzilhadas (arê). Há um mistério que envolve quem colhe folhas para os rituais (mãos de ofá), e são feitas as oferendas através do aluá, bebida feita com farinha de milho ou de arroz, servida nos terreiros em recipiente conhecido como "coité".

A segunda parte mantém o bom nível da obra, com versos excelentes e contestadores como "quem tenta acorrentar o sentimento/'esquece' que ser livre é fundamento" (referência à árvore do esquecimento presente na sinopse) e "coragem no medo/meu povo é resistência feito um nó/na madeira do cajado de Oxalá". Enfim, é um samba valente, deve render na Sapucaí, e não é nada desprezível. Muito pelo contrário...

NOTA: 9,5

8 – VILA ISABEL – A maneira como André Diniz, Evandro Bocão, Dudu Nobre e companhia escolheram para resumir poeticamente a história de Martinho José Ferreira faz passar um filme no ouvinte, em que o grande sambista, um dos maiores ícones da cultura brasileira, desfila com vestuário simplório pela Boulevard 28 de Setembro, a principal via do bairro de Vila Isabel, de chinelo de dedo quando é chamado pelos amigos para tomar uma cervejinha. A narrativa tem uma introdução coloquial pra depois, de forma brilhante, citar os grandes sambas-enredo e os feitos de Martinho em sua vitoriosa carreira, numa fácil compreensão.

Diniz e parceiros possuem o aval do amantes de Carnaval para inovações e soluções arrojadas, sobretudo pras obras da Vila. Tanto que você costuma estranhar quando ouve pela primeira vez e são necessárias mais audições para que o samba te cative, já que a cabeça é diferenciada, numa melodia pouco convencional para o gênero atual. O refrão do meio (cuja virtude é rimar "Pai Arraia" com "arraiá", totalmente dentro do contexto) tem a peculiaridade de explodir na segunda virada, além de conter também o último verso modificado com relação à primeira. Aliás, o "só você pra fazer sem rima" felizmente o compositor Felipe Filósofo não entendeu como uma indireta em sua participação na LIVE SAMBARIO, com o compositor da Viradouro seguindo louvando o mestre...

A segunda parte procura emocionar, enumerando adjetivos merecidos que preparam para o grande momento, que é a celebração de que "o mundo renasceu/me abraçar com esse povo todo seu". Vale lembrar que o samba foi composto ainda em 2020, quando nem havia vacina contra a Covid-19, mas que já pregava um otimismo pela volta à normalidade com saúde e responsabilidade. O que é mais simbólico é a manutenção da repetição, no ótimo refrão principal, do verso "a vida vai melhorar". Numa perspectiva da pandemia próxima do fim em fevereiro, cantarolar que a vida vai melhorar na manhã de Terça-Feira de Carnaval, no instante em que os desfiles estarão sendo encerrados (a Vila é a última escola), promete um arrastão e uma apoteose na Sapucaí, depois de um 2021 sem escolas de samba na avenida. Pro desfilante extravasar e celebrar o fim das trevas! E com um samba-enredo à altura de Martinho da Vila. 

NOTA: 9,9

9 – UNIDOS DA TIJUCA – Diferentemente da maior parte dos sambas tijucanos nas eliminatórias, que apostaram em obras valentes com vieses político e crítico, o hino vitorioso optou por uma linguagem infantil para contar a lenda do guaraná, pegando o curumim Kahu'ê como o fio condutor da letra. Para os amantes do bom samba-enredo, como é maravilhoso ver a dupla Eduardo Medrado-Kléber Rodrigues celebrando uma vitória no Grupo Especial depois de duas décadas. A última vitória ocorreu na Tuiuti em 2001, com Medrado não assinando por estar disputando na mesma temporada a final da Imperatriz.

Aliados a Anderson Benson, os compositores, cuja bandeira é a inovação artística no gênero, estrearam com pé-direito na Unidos da Tijuca proporcionando uma obra que traz suas marcas. O refrão principal é um achado. O Erê fixa em seu subconsciente para nunca mais sair, ecoando em looping. A pureza da poesia emociona, sem contar a síntese perfeita do enredo presente na letra. Ouvindo a cabeça você nota de cara que o samba é diferenciado, com variações excelentes. O falso refrão central é primoroso. Em live no SAMBARIO, Eduardo Medrado explicou que a filha mais nova foi quem lhe inspirou na abordagem, ao falar da comoção da infância pela morte do curumim, originando os espetaculares versos "Presença tão breve/a ingenuidade sucumbe à maldade". O compositor então sugeriu aos parceiros que reforçassem a ideia do renascimento do pequeno índio. E "renasce Kahu'ê, o curumim...".

A segunda mantém as incríveis variações, que procuram fugir do lugar-comum. Um exemplo claro é a sequência "e se a cobiça e o fogo chegarem na aldeia/deixa a força Mawé ressurgir/e sorrir quando o sol reluzir". A melodia é similar aos trechos que apareciam nos grandes sambas que Medrado-Kleber e parceiros costumavam disputar na Imperatriz (e amargar derrotas muitas vezes injustas). Pra fechar o hino, uma mensagem fundamental em tempos em que o ódio desafia o bom senso e tenta se perpetuar no poder: "e o amor vai vencer". Em tempos de fim de pandemia, semear o otimismo e novos tempos é algo muito bem-vindo, "pois o bem é maior".

A presença de Wic Tavares no samba é um caso à parte. Nos anos 90, seu pai Wantuir defendia as obras da parceria de Medrado na Imperatriz. Anos depois, a filha recebeu a oportunidade de ser a principal voz dos compositores nas eliminatórias. Ela pegou a melodia de primeira e sua interpretação no estúdio deixou os autores embasbacados (palavras do próprio Medrado na LIVE SAMBARIO). Membro do carro de som do pai, Wic trouxe sua identidade para o samba e sua voz feminina acentuou ainda mais a já referida pegada infantil. A ponto de você não imaginar a obra cantada por outro intérprete, nem mesmo no marcante timbre do veterano Wantuir. Pois a filha terá a honra de ser intérprete oficial da Unidos da Tijuca ao lado do pai. Ambos dividem a faixa oficial, tal qual Aroldo e Ito Melodia fizeram no disco de 1996 no samba da União da Ilha. Porém, a já citada identificação de Wic com o samba-enredo é tão gigantesca que, no disco, a voz de Wic fica em primeiro plano, mal dando pra notar a presença de Wantuir no registro. Fechado este parêntese, é um passo importante para ouvirmos num futuro próximo mais vozes femininas nos discos de samba-enredo.

NOTA: 10

10 – SÃO CLEMENTE – A homenagem a Paulo Gustavo gerou uma safra em que os compositores mesclaram obras irreverentes, de acordo com a biografia do saudoso humorista, com hinos emocionantes e até melancólicos em virtude da perda prematura do intérprete da Dona Hermínia. O samba vencedor procura ser um misto dos dois sentimentos. Entretanto, a produção do CD optou pelo segundo predicado e deixou a obra triste, com um insistente violino na introdução e no ótimo refrão do meio, cuja intenção inicial era ser mais descontraído, com a boa mensagem direta e coloquial sobre todas as formas de amar. Um refrão com a cara da São Clemente, mas que na faixa oficial fica até depressivo. Me remeteu à produção da música da escola de 2008, que na versão dos compositores era pra cima, mas que no disco oficial recebeu um andamento arrastado. Parecia até outro samba!

O refrão principal tem a sacada interessante e original de tratar "clementes" como adjetivo ao invés de substantivo, mas o mesmo não apresenta muita força, ao contrário do já mencionado central. A obra é simpática, apresenta uma melodia funcional e eficiente para o desfile. A letra é simples e fácil, utilizando como eu-lírico Déa Lúcia, a mãe de Paulo Gustavo. Apesar dos trocadilhos que poderiam ser evitados, como os famigerados "deTHALES" e "divina iDÉA", o começo da segunda parte é o melhor trecho melódico, com os versos que citam os filhos de Paulo e Thales Bretas gerando um bom efeito. 

Tecnicamente, o samba não se destaca na safra, sendo apenas correto e que deverá ser uma trilha formal para o desfile de homenagem precocemente póstuma a Paulo Gustavo. A grande notícia para os clementianos é a excelente sintonia na gravação entre Leozinho Nunes e Maninho, este estreando como intérprete oficial depois de uma década como apoio na São Clemente. Historicamente, a agremiação costuma revelar excelentes cantores, e o registro no CD comprova o bom entrosamento da nova dupla.

NOTA: 9,1

11 – TUIUTI – O carnavalesco Paulo Barros trocou o enredo "Soltando os Bichos", mais de acordo com o estilo do artista, por um tema que exalta a luta e a resistência do negro. Algo até batido, mas que gerou ao Paraíso um dos bons sambas do ano. A letra vem numa linha similar ao histórico hino de 2018, com vários momentos rebuscados, algo característico de Cláudio Russo e parceiros. Mesmo assim, a letra é de fácil compreensão. Destaque para versos como "meu sangue negro que escorre no jornal/inundou um oceano até a Pedra do Sal", "pra vencer a opressão com a força da melanina" e "e morrer só de rir feito mil Benjamins". Dos sambas de Russo costumam despontar termos como "emana", "enleva" e "caudaloso", então pouco comuns no gênero. Nesta obra, aparece um "gungunando". Algo como se o tambor estivesse murmurando, soando baixo, ou produzindo um som profundo.

A melodia tem uma bela levada, muito agradável de cantar e de se ouvir, e apresenta um selo de identificação de Russo, Moacyr Luz e demais com a Tuiuti. A cabeça do samba tem uma divisão silábica similar ao samba de 2020, dos mesmos compositores, com trechos divididos em três versos. Apresenta refrães fortes e uma segunda parte mais curta, em que o complemento e preparação para o principal se passa numa melodia que se assemelha a refrão falso, no belo efeito do "e cantar, cantar, cantar". 

Um samba-enredo muito simpático, com bela atuação de dois cantores oriundos do Carnaval de São Paulo: Celsinho Mody e Carlos Júnior (este estreando na Sapucaí). A faixa ainda tem a participação de Grazzi Brasil, que entoa no começo um canto (num áudio mais baixo), semelhante à Iara inserida por Leonardo Bessa na faixa da Unidos de Padre Miguel em 2018, e discursa no final, explanando o enredo (até remetendo ao CD de 2014...). A cantora está de volta à Tuiuti, que defendeu em 2018 e 2019. No refrão do meio, curioso o efeito inserido que se assemelha ao jogo de videogame do Sonic no momento em que o porco-espinho captura anéis e argolas. Aliás, estas sonoplastias estão espalhadas ao longo da faixa e dificilmente saem da sua cabeça depois de algumas audições. Coisas da produção do CD...

NOTA: 9,7

12 – IMPERATRIZ – Desde o longínquo 1968, quando o saudoso Maurílio da Penha Aparecida e Silva, o Bidi, assinou "Bahia em Festa", que a Imperatriz não tinha um samba-enredo assinado por um único compositor. Em todo o Grupo Especial do Rio, os últimos haviam sido Martinho pra Vila em 2010, J. C. Couto também pra Vila Isabel em 1997 e Miro Barbosa como autor do samba da Beija-Flor em 1996. Pois Gabriel Mello conseguiu este feito, num período em que tal expediente não se imaginava mais que aconteceria, com o predomínio de escritórios e parcerias que ultrapassam uma dezena de nomes, chegando até a duas.

Numa narrativa em primeira pessoa, Gabriel encarna Arlindo Rodrigues, o grande homenageado gresilense, numa letra romântica, repleta de pureza e inspirada (mas de fácil leitura), aliada à melodia dolente bem característica da Imperatriz em seus melhores tempos, com Rosa Magalhães (de volta à escola) no auge. A relação entre o carnavalesco e a agremiação é a primeira bela sacada ("eu ainda era menino" (...)/"e você era menina/suspirando poesias..."), passando pelas citações a Fernando Pamplona e Joãosinho Trinta. O refrão do meio deixa de lado o lirismo do restante da obra, e com valentia saúda as passagens do artista pelas coirmãs Salgueiro e Mocidade com vibração.

A segunda parte foca a trajetória de Arlindo Rodrigues na Imperatriz Leopoldinense, louvando também a figura de Luiz Pacheco Drumond, referido na letra como "imperador" e "pai maior" (neste, também pode significar Deus). Antes de passear com dolência pelos enredos levados pelo carnavalesco em Ramos na época que marcou seu apogeu (conforme reforça a letra do samba), interessante o verso "me levou pra ser rei em sua Assíria". É uma referência à peça de teatro "O Arquiteto e o Imperador da Assíria", da qual Arlindo foi cenógrafo em 1970. O estribilho "sonhei com Dalva e fui morar com Deus" lembra com emoção seu último Carnaval em 1987, quando, meses antes de sua morte, transformou Dalva de Oliveira em enredo. O auge do samba são os sete versos finais, que culminam na maior explosão da obra com poesia e lirismo (ainda que o trecho lembre um pouco o fim de Vila Isabel 2018). A sequência "se a saudade é certeza/um dia a tristeza será cicatriz/eterna seja amada Imperatriz" é uma das mais bonitas da temporada. O refrão principal serve mais pra complemento da segunda parte. 

Uma pena a saída de Preto Jóia da escola. A impressão dada é que o samba foi feito especialmente pra sua voz, principalmente na primeira parte. Na versão gravada pelos intérpretes oficiais da Imperatriz antes da Seleção do Samba, se percebe que a obra caiu como uma luva para o veterano. Na faixa oficial, com Arthur Franco e Bruno Ribas, fica claro que o samba perdeu tempero, faltando as pitadas gingada e malandreada, aliadas ao gigantesco carisma de Preto Jóia.

NOTA: 9,7

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