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Os sambas de 2022 por Carlos Fonseca

Os sambas de 2022 por Carlos Fonseca
Twitter: @eucarlosfonseca

As avaliações e notas referidas apresentam critérios distintos dos utilizados pelo júri oficial, em nada relacionados aos referidos desempenhos que as obras virão a ter no desfile

A GRAVAÇÃO DO CD – "Depois da tempestade, a felicidade, a bonança", já cantava a Vila Isabel dezessete anos atrás. E o mundo não se acabou. O carnaval voltou! Nesta retomada, o Grupo Especial carioca apresenta em 2022 uma safra tão boa quanto a de 2020. Nenhuma obra beira o catastrófico, mesmo aquelas que não tem tanta qualidade e ficam na parte de baixo possuem alguma virtude. Contudo, uma safra tão boa não merecia um resultado fonográfico tão abaixo do esperado. O produto final apresenta uma sonoridade estranha, com naipes, cordas e vozes mal equalizadas. Aliás, onde estão as cordas que praticamente são despercebidas nas faixas? Pra onde foram? Só aparecem nas introduções e nos detalhes harmônicos? Enfim... o que dá pra elogiar são os intérpretes voltando a "chamar" os mestres de bateria, algo que não ocorria desde o CD de 1998 - que, coincidentemente, tem a Viradouro na capa como em 2022. Mário Jorge Bruno, em seu primeiro ano atuando sozinho na produção do álbum, é um profissional de alto gabarito e merece todos os louros por sua vasta contribuição à discografia do samba-enredo, mas o resultado final apresentado para 2022 deixou a nítida impressão de que o toque especial de Laíla na produção fez muita falta.

Destrinchando a safra, quatro sambas despontam no pelotão da frente: Grande Rio, Unidos da Tijuca, Vila Isabel e Mocidade. Elas tem obras de muita qualidade e com um grande trunfo, cada qual à sua maneira. Beija-Flor e Tuiuti, com bons sambas, aparecem logo atrás. Na sequência, a Viradouro desperta muita curiosidade do bamba com o seu "samba-carta". Apesar de uma produção que deixou a desejar, o "Carnaval da Redenção" está bem servido em termos musicais. 
NOTA DA GRAVAÇÃO: 9,4

1 – VIRADOURO - "Pra eternidade um samba nascia".

Grande campeã de 2020, findando um jejum de 23 anos, a vermelho e branco de Niterói abre o CD apostando na ousadia para tentar o bi: um samba em formato de carta para narrar o enredo sobre o carnaval de 1919. A obra de Felipe Filósofo e seus blue caps, marcada por fazer sambas fora do padrão nos últimos anos, tem trechos muito poéticos, ao passo que existem problemas narrativos e melódicos. O grande porém são as esticadas de nota em trechos como "A avenida ganhar cor, perfuma o desejo / Sozinho te ouço se ao longe te vejo" da primeira estrofe e a partir do "Amanheceu! Num instante já" na segunda - ironicamente, esta é uma das passagens mais bonitas. 

Mesmo sublinhando poucos trechos do enredo, a carta sincera do Pierrot Apaixonado tem grandes trunfos como "Por te querer quase enlouqueci / Pintei o rosto de saudade e andei por aí"; "Não perdi a fé, preciso te rever / Fui ao terreiro, clamei: obaluaê! / Se afastou o mal que nos separou / Já posso sonhar nas bênçãos do tambor" e, sobretudo, "Tirei a máscara no clima envolvente / Encostei os lábios suavemente / E te beijei na alegria sem fim / Carnaval, te amo, na vida és tudo pra mim". Há de se destacar o quanto Zé Paulo Sierra foi muito bem na faixa. A carta caiu como uma luva ao seu estilo de interpretação, bem como o tributo à Dominguinhos do Estácio no grito de guerra, bradando seu inesquecível "olha a Viradouro chegando" - seguido do "Vai Ciça!" tão marcante no desfile passado. Em suma: a carta é um bom samba, mas será um desafio dos grandes pra escola e vale a curiosidade. Sendo bem trabalhado, tem potencial para dar certo no desfile, em 27 de fevereiro de 2022. NOTA: 9,8

2 – GRANDE RIO – "As sete chaves vêm abrir meu caminhar".

Pedrada! Uma pena que, diferente do "Pedra Preta" (2020), foi bem prejudicado pela produção do álbum, desconfigurando sua característica - as cordas mal são percebidas na faixa, por exemplo. Apesar disso, é um samba todo pra cima, que não cai em qualquer momento. A letra, sem refrões, é muito bem elaborada. O trecho central "Exu caveira, Sete Saias, Catacumba / É no toque da macumba, saravá, alafiá!" é coisa séria. A abertura da segunda estrofe ("Ô, luar, ô, luar… catiço reinando na segunda-feira / Ô, luar… dobra o surdo de terceira") é um achado. Ainda na segunda, o "Laroyê, laroyê, laroyê! / É poesia na escola e no sertão / A voz do povo, profeta das ruas / Tantas estamiras desse chão" é lindo. A conexão do último verso "Eu levo fé nesse povo que diz:" com o primeiro "Boa noite, moça, boa noite, moço" é uma baita sacada... Enfim, fica difícil descrever tantos pontos positivos de mais um sambaço que a Grande Rio apresenta, que recebeu mais uma boa interpretação de Evandro Malandro. O banho de cultura voltou pra ficar de vez. A ver se Exu vai abrir os caminhos pra tricolor de Caxias enfim levantar o troféu de campeã. NOTA: 10

3 – MOCIDADE –"Mandinga de Tia Chica fez a caixa guerrear".

A flechada certeira para o Batuque ao Caçador. É aquele samba que você ouve uma vez, e depois outra, e outra até não parar mais. Tem uma melodia bem aguerrida e a letra apresenta passagens muito interessantes como "Quem rege meu ori governa minha fé" e o bis "Quem é de Oxóssi é de São Sebastião". Seu melhor momento é o trecho final, que vai do "Inverteu meu tambor / De Dudu e de Coé, foi Quirino, foi Miquimba / De Jorjão, o agueré" até ao bom refrão principal ("Arerê, Arerê Komorode") que invoca que "Todo Ogã da Mocidade é cria de Mestre André". Wander Pires tem mais uma atuação de destaque, driblando a burocrática produção. A bateria, outro destaque, faz duas paradinhas no fim da faixa - ponto positivo para o resgate da famosa bossa de abertura do samba de 1998 na introdução. A obra que marca a primeira incursão de Carlinhos Brown no universo do samba-enredo exalta Oxossi da maneira mais feliz possível. NOTA: 10

4 – BEIJA-FLOR - "Arte negra em contra-ataque".

É mais um daqueles sambas que tem o carimbo de qualidade da Beija-Flor: uma melodia pesada aliada a uma letra forte. E neste caso, forte no sentido mais literal da palavra, quando alia a indignação pelo racismo enraizado em nossa sociedade e a exaltação da intelectualidade negra presente no enredo. A primeira estrofe é fora-de-série - a sequência "Quem é sempre revistado / É refém da acusação / O racismo mascarado pela falsa abolição / Por um novo nascimento, um levante / Um compromisso / Retirando o pensamento / Da entrada de serviço" já fala por si só. Outros grandes momentos são o falso refrão ("Versos para cruz, Conceição no altar / Canindé, Jesus, ô, Clara!!") e o trecho final ("Canta Beija-Flor! Meu lugar de fala"). Pena que o samba não teve uma gravação à sua altura - salvam-se a bateria e Neguinho, que ao fim da faixa anuncia para o Brasil e o Mundo que "o carnaval voltou!". Por fim, o refrão principal tem um dos melhores versos da obra e, talvez, do carnaval, que resumem fidelíssimamente a negritude nilopolitana: "Ergui o meu castelo nos pilares de Cabana / Dinastia Beija-Flor!" NOTA: 9,9

5 – SALGUEIRO - "Sabiá me ensinou: sou diferente".

Enredo de temática negra está no DNA Salgueirense desde que carnaval é carnaval e costumeiramente nos brinda com bons sambas. Mas, a obra que exalta a Resistência deixa muito a desejar. Melodicamente tem a valentia característica da Academia, apesar de nuances bem similares ao samba de Xangô (2019), e só isso. A letra faz a receita básica, destacando os principais pontos, sem nada de excepcional. Dois trechos de destaque estão na primeira ("Me formei na Academia / Bacharel em harmonia / Eis aqui o meu quilombo, escola") e segunda estrofes ("Sambo pra resistir / Semba meus ancestrais / Samba pelos carnavais"). O refrão principal é bem frágil melodicamente, muito pela esticada do "Salgueiro... Salgueiro...". Emerson Dias e Quinho fazem uma atuação convencional na faixa, assim como a Furiosa. E, em dado momento, na segunda passada, entra do nada uma voz entoando os versos "Ê, Galanga, ê… Rei Zumbi, Obá", do refrão central. Seria um revival do "Espírito" de Silas de Oliveira criado por Ivo Meirelles no samba do Império Serrano em 2016 na Série A? NOTA: 9,6

6 – MANGUEIRA - "A Estação Primeira relembra o passado".

Bem mediano. Até que a produção, dentro das suas limitações, conseguiu torna-lo escutável e a melodia, com ressalvas, tem lá o seu brilho, mas a obra tem claríssimos problemas de letra, destacando o refrão principal com rimas todas em "ado": "estrelADO / apaixonADO / passADO / DelegADO". O trecho "Tem cantor, mestre-sala e compositor / Lustrando sapato, vendendo jornal / Chapéu de pedreiro no mesmo quintal", da primeira estrofe, é mal resolvida melodicamente. O único trecho de destaque é o refrão central: "As rosas não falam, mas são de Mangueira / Eu vi seu Laurindo beijando a bandeira / José Clementino na flor da idade / O sol colorindo a minha saudade". Marquinho Art'Samba quase não é ouvido de tanto que sua voz é mal equalizada (problema recorrente do disco) e abafada pelo coral. Cartola, Jamelão e Delegado, que sozinhos renderiam um enredo tão bom quanto este, mereciam mais, muito mais.  NOTA: 9,7

7 – PORTELA - "Casa pra se respeitar: Meu Baobá!".

É um samba morno, sem brilho, mas que Gilsinho e a Tabajara do Samba souberam conduzir bem na gravação e o torná-lo bem escutável. Melodicamente apresenta nuances bem características da Portela. A letra não tem muito destaque, sendo apenas descritiva e fiel a sinopse. Gosto da virada melódica da passagem do refrão central (mais precisamente do último verso, "Põe aluá no coité e dandá") pra segunda ("Saluba, mamãe! Fiz do meu samba curimba / Mata a minha sede de axé / Faz do meu Igi Osè moringa"). E apesar do "Azul e Banto", o refrão principal é bem bom - e a bossa em ritmo de Ijexá o deixou mais melodioso. NOTA: 9,6

8 – VILA ISABEL - "Modéstia à parte, o Martinho é da Vila!".

É sambaço. É Martinho na mais pura essência. É a escola encontrando seu Dikamba caminhando na Boulevard ("Pela 28, chinelo de dedo") e o chamando para ser reverenciado, como bem sintetizado na cabeça da letra "Ferreira, chega aí / Abre logo uma gelada, vem curtir / A Avenida engalanada / Nossa gente emocionada vai reluzir". Os refrães são muito bons, sobretudo o principal ("Partideiro, partideiro ó / Nossa Vila Isabel brilha mais do que o sol") com a sacada da repetição do "A vida vai melhorar" no final. Há trechos e mais trechos à se destacar, mas é nos versos finais o melhor momento: "Tão bom cantarolar porque o mundo renasceu / Me abraçar com esse povo todo seu". Lógico que o samba ajuda, mas, a belíssima atuação de Tinga e o show a parte da Swingueira de Noel proporcionam, apesar das limitações, uma das melhores faixas do CD. NOTA: 10

9 – UNIDOS DA TIJUCA - "Erê, essa mata é sua".

Nem o maltrato feito a ele na gravação tira o brilho que esse samba tem. A obra que narra a lenda do Guaraná alia uma melodia forte e uma letra que, sem dúvida, é uma das melhores do ano. Tal como a Grande Rio e a Vila, é difícil de citar qual é seu melhor momento. O refrão "Erê, essa mata é sua" é forte e empolgante. O trecho "Um lugar onde as pedras podiam falar / Onde irmãos desfrutavam / A beleza singular" é muito bom. O falso refrão central tem uma sacada ("E nasce Kahu’ê, o curumim / Renasce Kahu’ê, o curumim") belíssima. A segunda estrofe é brilhante, sobretudo no trecho final "E se a cobiça e o fogo chegarem na aldeia / Deixa a força Mawé ressurgir / E sorrir quando o sol reluzir / Nesse dia eles vão temer / E o amor vai vencer". Embalada por um convencional registro da Pura Cadência, Wantuir ganha a companhia da filha, Wic Tavares, efetivada como intérprete após se destacar defendendo a obra nas eliminatórias. E a voz da jovem é a que se sobressai durante toda a faixa, deixando o veterano mais discreto. Independente disso, já é uma grande parceria interpretando outro sambaço da safra. NOTA: 10

10 – SÃO CLEMENTE - "Rir é resistir, seguir em frente".

Faltou mais capricho para reverenciar a brilhante carreira de Paulo Gustavo, de morte precoce que causou enorme comoção ao país. A aurinegra tem uma obra de melodia praticamente sem variações e uma letra que tem percalços, embora a sacada de Dona Déa narrar a história do filho seja muito interessante. Na segunda estrofe, a ideia de citar a família do humorista é aquele case clássico de que a ideia é boa, mas a conclusão é bem problemática. Casos dos versos "'Dethales', o amor venceu" e "Divina 'idea', dei luz ao seu brilho". O melhor momento é o refrão central "Dona Hermínia mandou avisar que pode / Brincar na Avenida e dizer no pé / Mulher com mulher, tudo bem / Homem com homem, também / O negócio é amar alguém", contrapondo ao principal ("São clementes aqueles que amam / Que cuidam, que sentem") que carece de explosão. Leozinho Nunes e o estreante Maninho mostram entrosamento na faixa, mas quase não são escutados, de tanto que jogaram suas vozes pra trás. NOTA: 9,6

11 – PARAÍSO DO TUIUTI - "Pra vencer a opressão com a força da melanina".

Bom demais. Melodicamente denso, objetivo para a proposta do tema e bem feito. A cabeça do samba ("Olodumarê mandou / Oxalá me conduzir pelo céu da liberdade / Me falou Orunmilá / Vai, meu filho, semear pelo mundo a humanidade") é muito boa, embora me incomode que a estrutura melódica seja muito similar ao samba de 2020. Curto muito os efeitos do "Ei / Hei" do refrão central (afinal, que raios é esse efeito esquisito de teclado nesse refrão???) e do "E cantar! Cantar! Cantar…" no trecho final que antecede o bom refrão principal ("Ogunhiê! Okê arô / Laroyê! Meu pai, kaô / Tem sangue nobre de Mandela e de Zumbi / Nas veias do povo preto do meu Tuiuti"). Todos os méritos as notáveis atuações da Supersom e de Celsinho Mody e Carlos Júnior, este estreante no carnaval carioca, que tiraram onda - Grazzi Brasil, que voltou ao carro de som da escola, faz uma participação na faixa. Assim como a Vila, conseguiu driblar (e bem) a burocrática produção. NOTA: 9,9

12 – IMPERATRIZ - "Sonhei com Dalva e fui morar com Deus". 

De volta ao seu lugar, a Rainha de Ramos exalta Arlindo Rodrigues com um samba bem bonito, mas que a gravação (ela de novo...) tirou seu brilho, o tornando um tanto com ar de convencional. A letra, em primeira pessoa, tem passagens muito inspiradas como na cabeça "Eu ainda era menino / À luz de um nobre destino / O dom de tocar corações / E você era menina, suspirando poesias / Entre versos e estações" e no final "Se a saudade é certeza / Um dia a tristeza será cicatriz / Eterna seja! Amada Imperatriz!". Gosto dos refrães, o central ("Canta Salgueiro, ô, salve a Mocidade!") melodioso e o principal, mais forte, terminado com "E lá do alto o Pai Maior mandou dizer / Quem viveu pra te amar, seguirá com você" - verso que dá margem a uma interpretação dupla, pois o "Pai Maior" pode se referir tanto a Deus quanto a Luiz Pacheco Drumond, histórico presidente da escola falecido em 2020 e exaltado por Arthur Franco no início da faixa com a frase entoada por Preto Joia no samba de 1994 ("a força da sua presença está muito mais viva dentro de cada um de nós"). Aliás, Franco e Bruno Ribas, que estreia na escola, não comprometem, mas a produção embolou demais suas vozes com as do coral - principalmente na primeira passada, quando formada pelos cantores do carro de som da agremiação. O destaque da faixa é a Swing da Leopoldina com três bossas na segunda passada - uma delas reproduzindo a batida da Mocidade Independente no refrão central. A título de curiosidade: Gabriel Melo, diretor de carnaval do Vai-Vai, volta a ser compositor único de um samba-enredo da Imperatriz 54 anos depois de Bidi em "Bahia em Festa" (1968) - NOTA: 9,8

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