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Os sambas de 2022 por Bruno Malta Com a safra de sambas de enredo fechada nas escolas do Grupo Especial do Rio de Janeiro, é possível assegurar que o resultado geral, mais uma vez, consegue manter a boa fase do gênero. Tendo várias propostas distintas seja no formato ou no modo de contar a história, as composições conseguem dialogar com o público fissurado do ano inteiro — a famigerada bolha — e também com os foliões de ocasião que se interessam pontualmente pelo universo da Marquês de Sapucaí, o que comprova, desse modo, a capacidade de renovação que a folia e os desfiles detém. É importante ressaltar que tudo isso é fruto de um processo iniciado no Carnaval de 2012 no gênero que conseguiu dar arejo para as trilhas. Com novos formatos e compositores que arriscaram sair da fórmula batida e desgastada dos anos 2000, onde a regra era o famigerado 10–4–10–4 sem brilho algum melódico e trazendo mera de descrição do enredo (parece familiar, São Paulo?), a qualidade do samba de enredo virou discussão novamente entre os sambistas, mas ainda faltava furar a bolha. Após os desfiles de 2018 — principalmente Beija-Flor de Nilópolis e Paraíso do Tuiuti -, o que era dito, cantado e falado na Sapucaí passou a ecoar fora dali. Matérias de grande alcance, imagens de alto impacto — quem não lembra do prédio da Petrobras ou do Vampirão com faixa presidencial? — e debate sobre como o posicionamento das agremiações na esfera político-social pode servir, no longo prazo, de fotografia daquele momento serviram de pauta no universo carnavalesco. Em 2019, isso se ampliou com o alcance sobrenatural do desfile da Estação Primeira de Mangueira sobre o Brasil que a história não conta. A apresentação que quebrou o paradigma da versão oficial para dar luz a um manifesto para muitas minorias foi sucesso absoluto. Em 2020, muitas escolas seguiram esse caminho mesmo que fora de uma questão panfletária ou tão propagada. Grande parte das composições tinham versos que sublinhavam críticas e, assim sendo, conseguiam invadir o coração de quem estava dentro ou fora do público carnavalesco através da inserção no contexto de dia-a-dia das pessoas. Versos como “O Rio pede socorro”, “Não tem bispo e nem se curva a capitão”, “Sorrir é resistir”, “E o país inteiro assim sambou, caiu na Fake News”, “Não tem futuro sem partilha, nem Messias com arma na mão”, “E o desabafo sincopado da cidade” apareceram num mesmo CD e criaram, claro, a sensação de que as escolas de samba estão dentro de um universo maior e que sabem disso, podendo, enfim, dividir seus sentimentos com o do público. Critérios de Julgamento No Quesito Samba-Enredo o Julgador irá avaliar a Letra e a Melodia do Samba-Enredo apresentado, respeitando-se a licença poética. Para conceder notas de 09 à 10 pontos, o Julgador deverá considerar: LETRA (valor do sub-quesito: de 4,5 à 5,0 pontos) MELODIA (valor do sub-quesito: de 4,5 à 5,0 pontos) 1) A pandemia e a saudade do Carnaval deixaram os compositores com um “ócio do bem” ajudando a sair do lugar-comum e do toque de caixa que as disputas entrelaçadas exigem. Com um espaçamento temporal maior, surgiu mais tempo para elaborar ideias e fórmulas que estejam distintas do que é natural para o gênero, trazendo, desse modo, o efeito de novidade. 2) Os temas, mais uma vez, estão dentro da proposta de diálogo com as comunidades sem deixar de servir como um cenário de comunicação nacional. Se Exu e Oxóssi apresentam vertentes de desmitificação importantes para uma sociedade que ainda vê os orixás com desconfiança, Waranã, Resistência e Empretecer o Pensamento falam sobre temas do dia-a-dia como os índios — vilanizados pelo atual governo — e os negros, outra parcela da sociedade que sofreu retrocessos inacreditáveis promovidos pela gestão nacional nos últimos três anos. Tudo isso é complementado com homenagens para Arlindo Rodrigues, histórico carnavalesco, Cartola, Jamelão e Delegado, figuras importantes da Mangueira, e Martinho da Vila, sambista nacionalmente conhecido, homenageado pela Vila Isabel. Falar e servir como elemento panfletário para o alcance de uma esfera maior também é um segredo dessa fórmula. 3)
O Seleção no Samba. O novo programa da Globo ajudou a
promover e movimentar as escolas de samba. De formato didático e
explicativo tirou o peso da pressão de torcidas numa final de
samba-enredo e deixou as agremiações mais tranquilas para
tomarem a decisão que achavam melhor. Mesmo que a gente discorde
de alguma escolha, nenhuma delas foi sem o desejo preponderante do que
a diretoria de cada agremiação achava mais adequado para
o seu projeto de desfile. Isso, por exemplo, facilitou
inovações como a carta da Viradouro ou até mesmo o
ousado samba da Vila Isabel a vencerem influências externas rumo
ao apogeu na Sapucaí. Mesmo que não seja definitivo, o
especial da emissora parceira da Liesa já deixou um impacto
positivo no próximo evento. 1 - VIRADOURO - A campeã Unidos do Viradouro falará sobre o Carnaval de 1919. A festa daquele daquele ano se assemelhará com a de 2022, pois aconteceu após gripe espanhola e a primeira guerra mundial sendo um grande afago para a população que vivia dias tristes. Isso, por motivos óbvios, também remete ao atual momento do país e do mundo com a pandemia do Covid-19. A atual campeã Unidos do Viradouro chega
ao próximo Carnaval recheada de expectativas. Com um enredo
definido há bastante tempo que consegue dialogar com a pandemia
sem ficar exatamente pesado — não há
menção direta ao acontecido atualmente, mas o paralelo
é natural — a opção da
agremiação foi rememorar o que foi o Carnaval de 1919, o
primeiro pós-epidemia da gripe espanhola. Através
dessa proposta, tenta mostrar o que a folia da época teve de
significados tanto para os apaixonados quanto para o futuro da festa. Depois
de uma safra de concorrentes que acabou frustrando a expectativa geral
dos amantes do Carnaval, o samba escolhido pela vermelho-e-branco rompe
inúmeros paradigmas e apresenta narrativa que pode, em caso de
sucesso, criar uma solução inédita para os sambas
de enredo. Menos
pelo formato inovador — carta — e mais pelo modo de contar
o tema — apenas valorizar os pontos chaves e criar uma
história paralela.
A composição assinada por Felipe Filósofo, Fabio Borges, Ademir Ribeiro, Devid Gonçalves, Lucas Marques e Porkinho traz algumas inovações mais claras — o formato de carta e as rimas todas em AABB — Obs. Os sambas de enredo, em geral, optam por rimas em ABAB que é a palavra A aparecer no verso 1 e a rima dela no 3. Nesse caso, a palavra A aparece no verso 1 e a rima no verso 2 — mas a principal mudança que ele apresenta é a maneira de contar o enredo. Com uma interpretação muito peculiar do tema — Uma carta de um pierrot apaixonado por sua colombina apresenta o contexto do Carnaval de 1919 — , a proposta é criar um cenário onde o tema é inserido de forma pontual criando associações e isso, ao longo da obra é feito com fineza. O início já deixa claro o formato. Os versos “Amor, escrevi esta carta sincera // virei noites a sua espera // Por te querer, quase enlouqueci // pintei o rosto de saudade e andei por aí” já indicam a ideia de apresentar um relato de um apaixonado com saudade. Além disso, apresenta o conceito das rimas em AABB. Com sincera/espera e enlouqueci/aí. A sequência já traz o “Segui seu olhar numa luz tão linda // Conduziu meu corpo, ainda // O coração é passageiro do talvez // Alegoria ironizando a lucidez”. Até aqui, o samba, apesar de utilizar da figura do pierrot declamando sua saudade, esquivou-se de várias citações do enredo como a citação de que o primeiro desfile do cordão do Bola Preta aconteceu neste ano. Além disso, apesar de passagens inspiradas, alguns versos — especialmente “alegoria ironizando a lucidez” — não se se justificam. (-0,1 letra) já que não dizem o que querem contar. Indo além, a composição engata a saída de casa do pierrot. Ele narra isso utilizando bem de alguns pontos do enredo. “Senti lirismo, estado de graça // Eu fico assim quando você passa // A avenida ganha cor, perfuma o desejo // Sozinho te ouço se ao longe te vejo // te procurei nos compassos e pude // aos pés da Cruz, agradecer a saúde”. A ideia é narrar a ida para a avenida e os momentos de saudade, além disso, sublinha a questão dos aplausos aos funcionários da saúde, principalmente da Cruz Vermelha essencial na salvação de muitas vidas durante a epidemia. Mas como já mencionado acima, a citações aos pontos do enredo são sempre pontuais. A saída do pierrot, por exemplo, na sinopse, fala de orquestras, de ribalta e da metrópole em festa. Aqui é tudo sublinhado em “A avenida ganha cor, perfuma o desejo”. A cruz vermelha, citada com heroica, ganha apenas um “agradecer a saúde”. Ou seja, se você quer entender tudo que ele está querendo dizer, preciso ir além, o que é uma novidade, mas não exatamente positiva. (-0,1 letra). Mesmo com essa inovações, a fórmula ainda preserva alguns preceitos básicos do gênero como o refrão de meio que faz outra citação sublinhada da sinopse “Choram cordas na nostalgia // pra eternidade, um samba nascia”. Nesse ponto, a referência é mais óbvia, mas também carece de olhar no texto-base para entender que o trecho fala da origem do samba na Praça Onze citada, no texto-base, através da frase “Descortino lembranças heroicas de vestes bordadas por sagradas mãos do caldeirão da Praça Onze” que já emenda na citação dos grandes sambistas que é unida na apresentação do Rio como Pequena África. Esse trecho ganha espaço na segunda com uma bela associação nos versos “Não perdi a fé, preciso te rever // Fui ao terreiro, clamei: Obaluaê! // Se afastou o mal que nos separou // Já posso sonhar nas bênçãos do tambor” que conclamam a fé em Obaluaê como uma saída para o fim do mal (epidemia) que afastou o pierrot de seu grande amor. A partir daí, a narrativa já entra numa fase mais apaixonada. “Amanheceu! Num instante já // os raios de sol foram testemunhar // o desembarque do afeto vindouro // Acordes virão da Viradouro”. Nesse momento, poderia surgir um problema maior por conta da citação a Viradouro. Afinal, por mais que se trata da escola que está trazendo o tema, em 1919, muitos vão dizer, ela nem existia. Mas a letra prepara isso com o “desembarque do afeto vindouro” que faz uma menção ao futuro e não ao que acontece em presente momento. Ou seja, no desembarque do que virá, os acordes vem de lá. É um pouco forçado, mas passa. O que não passa aqui são as notas esticadas que fazem a melodia ficar arrastada. “O desembaaaaaaarqueeeeee do afeto vindooooouro, acordes virããããão da Viradoooooouro”. Tudo alongado pra caber na melodia (-0,1 melodia). No encerramento da estrofe, surge “Tirei a máscara no clima envolvente // Encostei os lábios suavemente // E te beijei na alegria sem fim // Carnaval, te amo, na vida és tudo pra mim”. Pronto, finalmente o pierrot conta do seu amor pela colombina e diz que a beijou no Carnaval. Tudo perfeito e fim de história, certo? Errado. Aí é que mora o grande defeito dessa inovação narrativa. Na ânsia de fechar o tema como uma carta, o samba traz uma assinatura nos versos “Assinado: Um pierrot apaixonado // Que além do infinito, o amor se renove // Rio de Janeiro, 5 de Março de 1919”. Além de desnecessário — não agrega em nada! Zero! — o verso também é complicado na melodia já que a data fica ali encolhida (Ridejaneiro) no começo e esticada no fim (Ciiiiinco de Março de Mil…novecentos e dezenove) do verso resultando em mais um problema melódico. (-0,1 melodia). No todo, quando olhamos pro geral, aplaudimos a ideia, a criação diferenciada. Em meio a tantas novidades, o samba cumpre seu papel e mostra que o caminho de copia e cola da sinopse nem sempre é necessário, mas como toda inovação, alguns erros ou pontos que podem ser corrigidos ainda, surgem e chamam atenção. Nota: 9,6 Letra: 4,8 Melodia: 4,8 2 - GRANDE RIO - O Acadêmicos do Grande Rio traz uma temática que falará de histórias e manifestações culturais ligadas a entidade Exu. É uma visão poética sobre as diferentes faces, histórias, linhas e lugares que se conectam a entidade. O tema viajará propondo sete caminhos a serem percorridos. Passando pelos fundamentos africanos às múltiplas brasilidades. Renovada, aclamada e cercada de expectativa. Depois de um vice-campeonato em 2020, é assim que a Acadêmicos do Grande Rio chega
para o próximo Carnaval. Seguindo a linha densa-cultural adotada
no último desfile com o enredo sobre Joãozinho da Gomeia,
os carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad entregam
uma proposta sobre Exu e suas vertentes. Além disso, a narrativa
também conta com o olhar de Estamira, personagem que no
lixão de Gramacho em Duque de Caixas, utilizava de um telefone
para entrar em contato com o sagrado. O samba que embalará essa
apresentação é um convite para o mergulho nesse
universo cheio de nuances e energia.
De autoria de Gustavo Clarão, Arlindinho Cruz, Jr. Fragga, Claudio Mattos, Thiago Meiners e Igor Leal, a composição não tem um refrão ao longo de toda a letra, mas isso passa despercebido pela força da melodia e por um samba que é alinhado quase dentro de uma ideia de manter o ritmo pegado em todo o tempo. A cabeça já é muito bem amarrada nessa opção pela força com “Boa noite moça; boa noite moço // Aqui na terra é nosso templo de fé // (Fala Majeté!)” que já apresenta a narrativa através de Exu. Essa entidade quando chega a terra costuma saudar todos com um boa noite. Por fim, o Fala Majeté já cria a conexão com Estamira. Essa quando se comunicava com o sagrado através do telefone se utilizava do “Câmbio, Exu! Fala Majeté!”. Ou seja, em três versos, a obra já apresenta o narrador e a sua conexão com um personagem do enredo. E tudo isso embalado numa melodia que tira as pessoas da cadeira. A seguir, o samba emenda nos versos “Faísca da cabaça de Igbá // Na gira… Bombogira, Aluvaiá! // Num mar de dendê // Caboclo, andarilho, mensageiro // Das mãos que riscam pemba no terreiro // Renasce Palmares, Zumbi Agbá” que apresenta alguns elementos importantes para explicar a energia de Exu. O primeiro verso fala de Igbá que se trata do assentamento de um Orixá neste plano sendo materalizado numa cabaça; Na sequência apresenta Bombogira (a divindade responsável pelos caminho) e Aluvaiá (a comunicação e a proteção). A união dessa construção traz a explicação de que Exu se divide pela enorme energia que tem através de várias vertentes. E essa energia também ganha caminhos. E aí que surge “Caboclo, andarilho, mensageiro” e o “renascer de Palmares”. Aqui, inclusive, cabe um parêntese: Exu está em Palmares por ser um mortal eterno defensor do ente coletivo presente em todo canto. Tudo que ele sempre defendeu também faz parte do herói negro. Renasce Palmares, Zumbi Agbá! Perfeito! No fim da estrofe, surge o “Exu! O ifá nas entrelinhas dos odus // Preceitos, fundamentos, Olobé // Prepara o padê pro meu axé”. Nesse ponto traduz que a entidade está presente nas entrelinhas de odus de ifá. Isso significa que Exu está dentro das predestinações que influem em nossas características. Estando dentro dos caminhos predestinados por Odu, fazendo, claro, parte dos preceitos e fundamentos e servindo como integrante dos rituais. Já Olobé é mais uma dessas vertentes de Exu, que acaba como o executor do sacrifício nos rituais sendo, também, celebrado em padê, no rito que cultua a entidade. Tudo certo. No falso refrão central chegamos na melhor melodia da obra. A letra apresenta faces de Exu em muitos lugares. Seu Zé Pilintra, Maria Padilha, as sombras da noite, os ciganos, o jogo de cartas, a rua…em tudo está Exu. E o samba traz isso. “Exu caveira, sete saias, catacumba // É no toque da macumba, saravá, alafiá // Seu Zé, malandro da encruzilhada // Padilha da saia rodada… Ê mojubá // Sou capa preta, tiriri, sou tranca rua // Amei o sol, amei a lua, marabô, alafiá // Eu sou do carteado e da quebrada // Sou do fogo e gargalhada… Ê mojubá”. Nesse trecho, há uma coisa que eu acho mais impressionante. Além de explorar o enredo através de um bis que não repete, podendo, dessa forma, citar mais elementos, não fica o efeito lista. Tudo é amarrado de um jeito cria a distinção dos cenários, mas sem ficar só uma apresentação de elementos. É muito bem feito e raro de se ver. A segunda estrofe (ou quarta, dependendo do seu critério) começa apresentando mais facetas de Exu. “Ô luar, ô luar… Catiço reinando na segunda-feira // Ô luar… Dobra o surdo de terceira // Pra saudar os guardiões da favela // Eu sou da Lira e meu bloco é sentinela”. Primeiro já expõe que a segunda-feira é de exu, que o surdo de terceira é o toque para saudar e é na favela onde estão seus guardiões. E, claro, nas encruzilhadas da lira surge seu bloco Sentinela. A letra, novamente, segue sem sobressaltos. Só não me agrada melodicamente o bis do “ô luar” que mesmo sendo uma referência ao fantástico samba “Mundo da Lua” da própria Grande Rio em 1993 não cria o efeito de falso refrão, sendo só uma saída de variação que acabou não sendo bem sucedida (-0,1 melodia). No fim, aparece um quase terceiro refrão com “Laroyê, Laroyê, Laroyê // É poesia na escola ou no sertão // A voz do povo, profeta das ruas // Tantas Estamiras desse chão // Laroyê, Laroyê, Laroyê // As sete chaves vem abrir meu caminhar // À meia noite ou no sol do alvorecer pra confirmar”. É como se o samba já preparasse um ponto de círculo, sem deixar cair. O início é forte, o falso refrão de meio é inspiradíssimo, o fim da segunda é um refrão sem ser refrão e o refrão que também não é refrão é uma pancada. Não há quedas melódicas em termos de força ou impacto. Na letra, a premissa de conclamar a presença de Exu na arte (é poesia) conduz a duas interessantíssimas referências que surgem na música “Exu nas Escolas” (escola) de Elza Soares e o livro “Grande Sertão Veredas”, de Guimarães Rosa, (sertão); Concluindo o trecho, a voz do povo, a voz das ruas emerge na presença de figuras como Estamiras (novamente lembrada), Arthur Bispo do Rosário e Sinhá Olímpia. Todos que, por algum motivo, foram considerados loucos pela sociedade, mas que sempre tiveram a presença daquela entidade dentro de si abrindo seus caminhos na noite — horário de manifestação de exu para a Umbanda — ou no dia — horários de rituais de exu no Candomblé. O refrão principal fecha a ideia de uma saudação de Exu para a Grande Rio vestida com sua potência. Através “Adakê Exu, Exu ê Odará // Ê bará ô, elegbará” bisado, é como se Exu depois de declamar sua presença nos muitos lugares estivesse encontrado a Grande Rio numa encruzilhada e com a esperança acesa (Lá na encruza, a esperança acendeu // Lá na encruza, onde a flor nasceu raiz) se dissesse pronto para abraçar a Grande Rio e o que ela pretende contar na Sapucaí (Firmei o ponto, Grande Rio sou eu // Eu levo fé nesse povo que diz). É uma sacada interessante já que apesar do eu-lírico sempre se desenhar através de Exu, a defesa pode também ganhar o viés da própria escola. O meu único senão na letra é que a repetição do nome da entidade, principalmente por se tratar de uma narrativa sob seu olhar, é desnecessária (-0,1 letra). De todo modo, se trata de um dos melhores sambas do ano que destrincha uma temática que beira a perfeição de tão densa, rica em detalhes e que, ao mesmo tempo, não ganha um tom professoral. Nota: 9,8 Letra: 4,9 Melodia: 4,9 3 - MOCIDADE - Após quarenta e seis anos, a Mocidade Independente de Padre Miguel apresenta uma temática afro. A figura central é o orixá Oxóssi que é apresentado através da formação do mito, do sincretismo e da relação do com a bateria da Estrela Guia. A Mocidade Independente de Padre Miguel é
mais uma escola que volta a fazer um enredo afro após muito,
muito tempo. Após exatos quarenta e seis anos, a Estrela-Guia
mergulha nas matizes africanas e traz Oxóssi,
orixá-protetor da agremiação, para a Marquês
de Sapucaí. Com o comando do estreante Fábio Ricardo na
parte plástica, a verde-e-branco apresenta um tema que embarca
fundo na mitologia, luta e, claro, na relação do
homenageado com a bateria Não Existe Mais Quente. Mais do que uma simples temática afro, é uma reverência ao próprio povo de Padre Miguel.
Nesse sentido, a obra assinada por Carlinhos Brown, Diego Nicolau, Richard Valença, Orlando Ambrósio, Gigi da Estiva, Nattan Lopes, JJ Santos e Cabeça do Ajax consegue traduzir nos versos, a fortaleza do enredo sem deixar a emoção do torcedor de lado. O início já conclama o caçador com uma espécie de saudação. Nos versos “Okê arô ofá da mira certeira // Dono da mata, okê okê, mutalambô // Seu ajeum já preparei na quinta feira” há uma tradução bem simples; O Rei, que fala mais alto (Oxóssi), do arco e da flecha certeira, é o dono da mata, tem o banquete preparado (Ajeum) em seu dia sagrado (Quinta-feira). Fácil, né? Na sequência, surge “No fundamento, a batida incorporou // Samborê pemba folha de jurema // A proteção de ogboju odé // Pai oxalá lhe deu seu diadema // Quem rege meu ori, governa a minha fé // Nos idilês, a ancestralidade // O alaketu no egbé da Mocidade”. A ideia é explicar que batida incorporada se trata do batismo de Ifá que lhe selou destino de caçador de uma flecha; Essa citação é seguida pelas lembranças de proteção e da coroação de Oxalá e do reforço de que da família, surge a ancestralidade. Toda a densidade e profundidade da formação do mito é traduzida sem qualquer percalço na primeira estrofe. O refrão central ainda mantém essa opção de mitologia através de “Oxossi é caçador de uma flecha só // Herdeiro de Iemanjá, irmão de ogum (exu) // Aquele que na cobra dá um nó // Aquele apaixonado por Oxum”. Oxóssi, definitivamente consagrado, é o caçador de uma flecha só, herdeiro de Iemanjá, irmão de ogum e de exu, dá o nó na cobra e é apaixonado por oxum. O único senão aqui é que as repetições de Aquele e Aquele — questão de tom e desenho melódico — tornam, com o passar do tempo, a melodia arrastada, perdendo um pouco do brilho (-0,1 melodia). A segunda estrofe começa sensacional nos versos “Ibualama, o mar atravessou // No Gantois virou São Jorge guardião // Um rio inteiro em teu nome, meu senhor // Quem é de Oxóssi é de São Sebastião” pela capacidade de síntese. O resumo é simples: Um orixá (Ibualama) vem para o Brasil com os escravos. Como a religião ainda era perseguida e reprimida, para ser aceito, ele é sincretizado. Na Bahia (Gantois) e em boa parte do país, com São Jorge. No Rio de Janeiro, com o santo padroeiro de São Sebastião do Rio de Janeiro. É tão perfeito e tão claro que é exemplo pra quem quiser fazer samba de enredo. A sequência ainda traz muito desse trecho do sincretismo através de “Ô juremê, ô juremá // Caboclo lá da jurema é cacique nesse congá // Ô juremê, ô juremá // Mandinga de tia chica // Fez a caixa guerrear” que remete a questão do ponto da umbanda (Cabocla Jurema, ô Juremê, ô Juremá) que cultua o orixá. O ponto conflitante é que, mais uma vez, a repetição de palavras — Juremê, Juremá, Caboclo da Jurema, Juremê, Juremá — , tira o brilho melódico da célula. Fica maçante com a repetição das audições. (-0,1 melodia). Para fechar essa parte, surge a Mocidade Independente de Padre Miguel, de fato, na conversa. No extrato “Inverteu meu tambor, de Dudu e de Coé // Foi Quirino, Foi Miquimba, de Jorjão, o agueré // Fez do aguidavi, baqueta da nossa gente // Pra evocar nesse terreiro toda alma independente”, os compositores mostram a importância de Oxóssi para a bateria da escola. A invertida no toque de caixa é para bater “saudação” para o orixá, o Aguidavi é a vareta utilizada na percussão dos tambores de candomblé que foi adotada, o Agueré é a dança para o protetor e, claro, os nomes citados (Dudu, Quirino, Miquimba, Jorjão e Coé) são importantes personagens da bateria da escola que faz ecoar a alma independente na Sapucaí. Demais! O refrão principal é explosivo. Não tem um sujeito nessa vida que fica parado com “Arerê Arerê Komorode // Komorode arole Komorode // Arerê Arerê Komorode // Toda ogã da Mocidade é cria de mestre André” pela força que a melodia detém. A questão que fica é só o funcionamento para 70 minutos. É sempre importante frisar que um desfile exige cerca de 25 passadas e 50 execuções do mesmo bis. Ou seja, não é fácil manter o pique quando a gente tem um trecho — que embora seja ótimo em letra e tenha todo sentido — (é a celebração da festa para o Rei Oxóssi e a saudação das crias de Mestre André) muito repetido e pode, sim, ficar cansativo por isso (-0,1 melodia). Em linhas gerais, fica latente que essa obra foi pensada, verso a verso, para traduzir significado histórico e emocional de um tema denso e, sobretudo, ardiloso de se amarrar. Nesse sentido, os compositores foram perfeitos. Só alerto que a ideia de tantos bis para grudar e tirar da cadeira podem ser uma espécie de fundo falso para o rendimento da obra na Sapucaí. Nota: 9,7 Letra: 5,0 Melodia: 4,7 4 - BEIJA-FLOR - Mais do que discutir a figura do negro, a temática da Beija-Flor de Nilópolis se propõe a enaltecer as glórias e as histórias dos negros e abordar a luta contra o racismo. Na visão da agremiação, a raça negra é símbolo de conquistas tão fundamentais na história da humanidade que jamais poderia sofrer de preconceito. É assim que a agremiação nilopolitana virá para o próximo Carnaval. Quando a Beija-Flor de Nilópolis apresentou o enredo “Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor”, a ideia inicial era dialogar em cima da intelectualidade negra para, dessa forma, construir uma nova visão a respeito da arte e das conquistas do povo preto. Com os sambas que disputaram a trilha-sonora do desfile da agremiação, a proposta temática mudou. Apesar de ainda manter a ideia de modificar a visão da sociedade, a construção passa mais por escancarar que o preconceito que fez e ainda, infelizmente, faz parte do nosso dia-a-dia não tem sentido algum e que respeitar é um princípio básico e não algo a se comemorar.Com isso, a composição assinada por J. Velloso (in memorian), Júnior Fionda, Léo do Piso, Beto Nega, Júlio Assis, Manolo e Diego Rosa coloca o dedo na ferida para ressignificar tudo que é dito sobre o negro no Brasil em todas as fases da história. A primeira estrofe é mais histórica, mas já te traz nuances da modernidade. “A nobreza da corte é de ébano // Tem o mesmo nome que o seu // Ergue o punho, exige igualdade // Traz de volta o que a história escondeu” são os primeiros versos que mostram um ponto claro do enredo: Apresentar o olhar do negro sem qualquer desejo de respeitar o que é socialmente aceito. É o negro reclamando do que perdeu, do que passou e do que viveu apenas por ser quem é. A sequência tem uma dobradinha que dá uma sensação de falso refrão com “Foi-se o açoite, a chibata sucumbiu // Mas você não reconhece o que o negro construiu // Foi-se o açoite, a chibata sucumbiu // E o meu povo ainda chora pelas balas de fuzil” que é uma espécie de dobradinha pela repetição do quinto e do sétimo verso. A seguir, a estrofe é fechada com “Quem é sempre revistado, é refém da acusação // O racismo mascarado pela falsa abolição // Por um novo nascimento, um levante, um compromisso // Retirando o pensamento da entrada de serviço”. Se os dois primeiros versos seguem a linha “da indignação”, os seguintes já preparam “o pedido” por uma reconstrução da imagem. O problema é que a linha da letra não cria uma conexão nessa mudança. A mensagem sai do racismo mascarado direto para o pedido de um novo nascimento. Não há construção para unir os dois. (-0,1 letra). O refrão central passa a exaltar personalidades negras para então construir uma transição histórica. A abertura é através de “Versos para cruz, Conceição no altar // Canindé Jesus, ô Clara!!” que indica um caminho através da citação de escritores — Conceição faz referência a professora Conceição Evaristo, Cruz é o poeta Cruz e Sousa, Clara é Clara dos Anjos, livro de Lima Barreto e Canindé Jesus é Carolina de Jesus, oriunda da favela do Canindé. Esse trecho, que poderia criar um efeito-lista, ganha um complemento maravilhoso no verso “Nossa gente preta tem feitiço na palavra” que sintetiza a ideia proposta resolvendo tudo. Por fim, o último verso transmite a ideia geral; Com “Do Brasil acorrentado ao Brasil que não se cala // E o Brasil não se cala!!” há um resumo bem amarrado da passagem histórica que a escola quer transcrever. Se antes, o negro era acorrentado e não tinha direito de usar a palavra, agora, ele, simplesmente, não se cala. É perfeito. E é mais por toda a segunda que amarra uma construção mais de reivindicação. Essa estrofe é aberta com “Meu pai ogum ao lado de xangô // A espada e a lei por onde a fé luziu // Sob a tradição nagô // O grêmio do gueto resistiu” que traz uma correlação com a Beija-Flor. Ogum é o orixá protetor da escola e tradição nagô faz referência ao enredo de 1978, o primeiro verdadeiramente afro que deu um título para a escola de Nilópolis. Logo depois surge “Nada ao menos de respeito, não me venha sufocar // Quantas dores, quantas vidas nós teremos que pagar // Cada corpo um orixá! Cada pele um atabaque”. Lembra da reivindicação? Pois bem, ela surge aqui. Nada menos que respeito, não me venha sufocar (dupla referência ao acontecido no Carrefour de Porto Alegre em 2020 e toda restrição que o negro sofre na sociedade), quantas coisas o negro ainda terão que passar para ganharem apenas o lugar de igualdade? Tudo isso em curtos versos, com mensagem direta. No fim, ainda há espaço para “o contra-ataque” negro. “Arte negra em contra-ataque // Canta Beija-Flor, meu lugar de fala // Chega de aceitar o argumento // Sem senhor e nem senzala, vive um povo soberano // De sangue azul nilopolitano”. Se o negro reivindicava, ele encontra na Beija-Flor e na sua arte, a chance de contra golpear. Aproveitando-se do povo nilopolitano, encontra um lugar de fala que não aceita o argumento e que vive soberano. Isso é lindo e é tão Nilópolis que chega a doer na alma. A única coisa que eu lamento aqui é surge muitas palavras de igual valor ou até iguais. Nada/Não, Quantas/Quantas, Cada/Cada. Sem/Nem. Dava para ser melhor arrumado esse trecho mantendo a força da ideia (-0,1 letra). O refrão principal é uma fortaleza. Daqueles que só ouvindo já dá pra ver a escola cantando. Olha só: “Mocambo de crioulo: Sou eu! Sou eu! // Tenho a raça que a mordaça não calou // Ergui o meu castelo, nos pilares de Cabana // Dinastia Beija-Flor”. Esse Cabana citado é um dos fundadores da Beija-Flor, personagem fundamental para a construção do que significa a escola para sua cidade-natal. Aqui, não há ressalvas. É bonito, forte e ainda traz o negro e a Beija-Flor lado a lado, como sempre foi fechando um samba que é praticamente irretocável e ainda traz, na melodia, um cheiro de Beija-Flor de 2007/2008, aquele rolo compressor que deixou as adversárias boquiabertas. Nota: 9,8 Letra: 4,8 Melodia: 5,0 5 - SALGUEIRO - Mantendo o padrão histórico da Academia, o Acadêmicos do Salgueiro busca retratar os negros os colocando em seu “devido lugar histórico”. A temática tem enfoque no Rio de Janeiro, e que traz consigo todas as formas que o povo teve para resistir e preservar sua cultura, sua fé, sua voz e sua sobrevivência. Sempre muito aguardado, o Acadêmicos do Salgueiro traz para o próximo Carnaval, o enredo Resistência será
assinado por Alex de Souza que concluirá o quarto desfile na
Academia do Samba. A temática que dialoga sobre o negro é
mais uma da série iniciada em 2018 que propõe
reflexões através de diferentes vertentes (Mulheres, o
palhaço Benjamin e o ato de resistir), mas, dessa vez, sem
um recorte que direcione a ideia em um caminho mais inventivo para
impedir a queda na armadilha das frases genéricas e de
lemas/construções que já passaram pela avenida mais de cem vezes nos últimos anos.
Nesse sentido, a missão dos compositores não era fácil e não dá pra colocar o frágil resultado da obra da vermelha-e-branca apenas na conta deles sem pensar no contexto do qual eles fizeram parte. A composição assinada por Demá Chagas, Pedrinho da Flor, Leonardo Gallo, Zeca do Cavaco, Joana Rocha, Renato Galante e Gladiador não brilha e traz ao ouvinte uma sensação de “dejavu”, mas não exatamente por opção deles e mais por conta do enredo não trazer nenhuma ideia nova que agregue para quem tá esperando a passagem da agremiação do Andaraí. O início da obra já começa com “Um dia, meu irmão de cor // chorou por uma falsa liberdade // kaô cabecilê sou de Xangô // Punho erguido pela igualdade” que tenta apresentar a ideia de que o negro ainda precisa resistir na luta pelo fim da discriminação e a conquista dos direitos. Só que a transição para “Hoje, cativeiro é favela // De herdeiros sentinelas // Da bala que marca, feito chibata” não é das mais bem feitas. Fora que a questão temporal da obra fica um tanto prejudicial (-0,1 letra). A sequência da primeira ainda tenta trazer o Salgueiro e suas nuances para a narrativa. “Vermelho na pele dos meus heróis // lutaram por nós contra a mordaça // Ê mãe preta, mãe baiana // Desce o morro pra fazer história”. Mas além de deixar a coesão da proposta meio esquisita pelas mudanças, o samba ainda traz outro adicional temporal e um desnecessário “mãe preta, mãe baiana” que tenta dar ênfase, mas acaba sem causar impacto (-0,1 letra). O fim da estrofe não é ruim e traz uma boa trinca em “Me formei na academia // bacharel em harmonia // eis aqui o meu quilombo, escola” que entrega para o refrão central que traz várias referências aos enredos negros da agremiação. “Ê galanga ê, Rei zumbi obá // Preta aqui virou rainha…Xica // Sou a voz que vem do gueto // Resistência no tambor // Pilão de preto velho eu sou” que, de cara, já remete a três grandes carnavais do Salgueiro (1960 — Quilombo dos Palmares, 1963 — Xica da Silva e 1992 — O negro que virou ouro nas terras do Salgueiro) conseguindo trazer elementos do tema para o que a Academia apresentou em toda a sua história. Na segunda estrofe, a coisa, no entanto, complica bem. O início, modificado melodicamente, após a vitória na disputa é num tom alto — quase incantável — nos versos “No Rio batuqueiro, macumba o ano inteiro, axé” (-0,1 melodia) e é emendado em uma pobreza impressionante da letra com “Gingado de malandro // kizomba e capoeira // caxambu e jongo // fé na rezadeira // Tempeiro de iaiá // Não tenho mais sinhô e nunca mais sinhá”. Pobre por ser literalmente uma lista: Gingado de malandro, kizomba, capoeira, caxambu, jongo, fé na rezadeira, tempeiro de iaiá, não tenho mais sinhô e nunca mais sinhá. Nove elementos que não conversam entre si e nem seguem o padrão imposto desde o fim da primeira estrofe de misturar os elementos com a história da escola. É ruim, é mal feito. (-0,1 letra). Por fim, o samba chega num trecho que melodicamente fica esquisito. O “Sembo pra resistir // semba meus ancestrais // samba pelos carnavais” era, originalmente, bisado e tem uma melodia muito forte para servir apenas de conexão para o que vem a seguir “Torrão Amado, o lugar onde nasci // o povo me chama assim”. A sensação é de que dá um ponto final e vem uma espécie de puxadinho pra encerrar o samba. Ruim (-0,1 melodia). O refrão principal é curtinho e foca no chamar o componente com “Salgueiro, Salgueiro // o amor que bate no peito da gente // Sabiá me ensinou: Sou diferente!” que tenta retomar aquela reconexão de resistência negra e a escola, mas além de esticar muito a melodia no primeiro verso (típica falha de faltar letra aqui) com a separação forte das sílabas do nome da escola (Sal-Guei-Ro) (-0,1 melodia), ainda não consegue criar qualquer sentido no último verso. Sabiá te ensinou a ser diferente. Tudo bem, eu sei que se trata do Djalma Sabiá, fundador da agremiação, falecido em 2020, mas isso não fica, sob ponto algum, explícito no samba. Se você precisa pesquisar algo pra entender do que tá sendo falado, o compositor não fez o que devia para o ouvinte. E, portanto, o trecho é ruim. (-0,1 letra). No conjunto, fica claro que a falta de recorte deixa o trabalho dos compositores mais árduo do que o normal. Afinal, eles precisam se equilibrar numa corda bamba. Falo mais do Salgueiro? Ou falo mais dos elementos do tema? Misturo os dois? De que forma? Tudo isso deveria ser direcionado pelo que deverá ser apresentado, mas não foi e refletiu numa obra que mesmo longe de ser uma tragédia, não encanta. Nota: 9,3 Letra: 4,6 Melodia: 4,7 6 - MANGUEIRA - A Estação Primeira da Mangueira vai homenagear três dos maiores ícones de sua história: Cartola, Jamelão e Mestre Delegado. Intitulado com “Angenor, José e Laurindo” a definição remete aos nomes de batismo dos baluartes celebrados: Angenor de Oliveira (Cartola), José Bispo Clementino dos Santos (Jamelão) e Hélio Laurindo da Silva (Mestre Delegado). Com Leandro Vieira, mais uma vez, assinando seu Carnaval, a Estação Primeira de Mangueira presta uma tripla homenagem para alguns de seus principais nomes. Angenor, José e Laurindo ou, simplesmente, Cartola, Jamelão e Delegado são os homenageados pela verde-e-rosa no próximo desfile. Com o tema reunindo tanta gente de peso, criou-se uma expectativa muito grande no samba da escola e, de certa forma, apesar do concorrido concurso da escola (a disputa teve 51 sambas — recorde no ano no Especial), a sensação é de frustração. Antes de tudo, é importante frisar que construir um samba tão aguardado para personagens que por si só já davam um enredo não é exatamente simples. Por mais que exista um fio condutor óbvio para unir os três — a Mangueira — ter que dividir isso sem que fique um pedaço do Angenor/Cartola, pedaço do José/Jamelão, pedaço do Laurindo/Delegado não é fácil e é uma armadilha que acaba sendo óbvia. No fim das contas, a obra vencedora de autoria de Moacyr Luz, Bruno Souza, Leandro Almeida e Pedro Terra, traz uma introdução falando do morro/escola, embarca em Cartola, mistura os três, depois acaba indo em Jamelão e Delegado. Ou seja, caiu na arapuca e tentou sair dela tudo na mesma composição. A primeira estrofe já parte com um “Mangueira, teu cenário é poesia // liberdade e autonomia // Que o negro conquistou ôôô” que já dá bem o tom clássico de samba da Mangueira. O primeiro verso traz o nome da escola e já emenda numa apresentação prévia dos homenageados com o “liberdade e autonomia que o negro conquistou”. Os três reverenciados são negros. Só que a sequência já quebra um pouco esse bom início já que resume a Angenor “o legado, a dinastia, a sabedoria”. São três menções para se referir louvando o primeiro mencionado. Numa obra que precisa de dinâmica pelo espaço curto e pela força de cada um, não dá pra perder esse tempo (-0,1 letra). A sequência engata uma belíssima união do trio no fim da estrofe e no refrão central. Percebam: “Nesse solo sagrado (Mangueira), o samba ecoou // tem cantor (Jamelão), mestre-sala (Delegado) e compositor (Delegado) // Lustrando sapato, vendendo jornal, chapéu de pedreiro no mesmo quintal // Três iluminados reis do Carnaval”. Isso é tão bonito que dá até certa tristeza perceber a morosidade melódica. É tudo muito esticado. Lustraaaaando saaaaapato, vendeeeendo joooornal. Todas as notas são alongadas, prejudicando o canto e a beleza da melodia (-0,1 melodia). O refrão central também segue essa linha de unir os personagens através de laços finos, mas bem amarrados. “As rosas não falam, mas são de Mangueira (Cartola) // eu vi seu Laurindo beijando a bandeira (Delegado) // José Clementino na flor da idade (Jamelão) // o sol colorindo a minha saudade”. É bonito e bem feito. Mas aí na estrofe seguinte, a coisa complica já que essa ideia é praticamente abortada. Os versos “É verde e rosa, a inspiração // a devoção por toda nossa raiz // Quem traz a cor dessa nação // Sabe que o morro é um país” serviria para qualquer enredo que falasse da Mangueira ou até mesmo para um samba de quadra. Não agrega, tampouco ajuda a contar a história e sequer explora os homenageados. É sem sentido estar ali (-0,1 letra). Com o desperdício de quatro versos, só restaram quatro para citar Jamelão e Delegado. Isso é feito em “A voz do meu terreiro, imortaliza o samba” (Jamelão) // E quem guardou com o amor o nosso pavilhão, tem aos seus pés a nossa gratidão (Delegado) que fecha bem a mensagem. Quando chegamos no refrão principal — alvo de maior polêmica — percebemos o quanto a obra acaba explorando pouco da temática. Nos versos “Só sei que Mangueira é um céu estrelado // Não é brincadeira sou apaixonado // A Estação Primeira relembra o passado // Valei-me Cartola, Jamelão e Delegado”, a composição além de falhar em riqueza poética por todas as terminações em ado (-0,1 letra) ainda demonstra uma incapacidade de explorar com explosão e emoção o tema. É um samba que acaba frio e travado melodicamente, sem causar emoção ou apreço ao ouvinte. Um ponto que pode explicar essa trava no embalo da canção é que existem muitas rimas e palavras iguais ao longo da trilha. Jornal/quintal/Carnaval; Mangueira (4x), idade/saudade; inspiração/nação/pavilhão/gratidão. Não tem saída ou nuance melódica que aguente girar tanto e parar no mesmo lugar na letra (-0,1 melodia). Quando pensamos no resumo da ópera ou do samba, sentimos a sensação de frustração mencionada lá no começo. Seja pela expectativa ou até por pontos de inspiração que a letra traz, o saldo final é de que tudo poderia mais bem elaborado. Nota: 9,5 Letra: 4,7 Melodia: 4,8 7 - PORTELA - A Portela traz um tema que busca contar a história e a simbologia dos baobás, árvores gigantescas e milenares originárias da África. O baobá é o alicerce, é a representação da distância, da dor, da saudade, da incerteza e da esperança de voltar. Além disso, simboliza resistência. Por tudo isso, é considerada a Árvore da Vida. Depois de ficar fora do desfile das campeãs pela primeira vez desde 2014 no último Carnaval, a Portela resolveu apostar num enredo afro que não acontecia desde 1972 para tentar voltar a brigar pelo título. Tendo a dupla Renato e Márcia Lage, mais uma vez, na condução plástica e artística, a Águia apresenta o enredo “Igiosé Baobá” que tenta traçar um paralelo entre a árvore Baobá, considerada símbolo de força e resistência pela cultura africana, com a própria Portela e seus baluartes. O resultado da mistura é um samba que ainda não conseguiu decifrar os meandros da temática de forma que o enlace entre os dois pontos seja satisfatório.Com as assinaturas de Wanderley Monteiro, Vinicius Ferreira, Rafael Gigante, Bira, Edmar Jr, Paulo Borges & André do Posto 7, a obra portelense é, de longe, o pior samba da escola desde 2012 e consegue, mesmo com as limitações de uma temática de direção repetida, ser abaixo do que o enredo propõe. O início com “Prepara o terreiro, separa a Mucuá // Apaoká baixou no xirê // Em nosso celeiro a gente cultua // Do mesmo preceito e saber” traz a ideia de juntar a Portela e o Baobá. O fruto (Mucuá) que dá em cada pé (Apaoká) será celebrado na Portela já que ambas tem o mesmo preceito (ideia inicial) e saber. A seguir, essa ideia é reforçada com “Raiz imponente da primeira semente // Nós temos muito em comum // O elo sagrado de Ayê e Orun // Casa pra se respeitar // Meu Baobá” que traz a ideia de que os dois tem muito em comum e que o Baobá, a árvore, é o elo sagrado de Ayê (terra/mundo físico) e orun (mundo espiritual). O problema é que nesse trecho tem um “Casa pra se respeitar” que não faz nenhum sentido já que o “meu baobá” responde melhor ao verso anterior. Parece, portanto, estar ali apenas para dar um gás, mas não funciona bem nem nesse ponto (-0,1 letra). No refrão central, a coisa complica mais. Primeiro, uma coisa que é preciso entender. Todo samba, melodicamente, precisa funcionar para o canto e para a dança. Isso tá no critério de julgamento. Só que a melodia desse trecho é introduzida em um tom baixo, sem capacidade de fazer colocar o “canto para fora”, tampouco para a dança na avenida. É um equívoco melódico na construção (-0,1 melodia). A letra apresenta um “Ôbatalá colofé // Tem batucada no Arê // Pra minha gente de fé // Ayeraye // Nessa mironga tem mão de Ofá // Põe Aluá no coité e Dandá”. Nesses versos, a tentativa é bater cabeça e pedir saudação para a celebração. Colofé é um pedido de benção a Obatalá (orixá-rei) em nome da batucada portelense e sua gente de fé. Em seguida, o ritual (celebração) surge a mão de Ofá (arco e flecha) através bebida (Aluá), coité (condutor) e dandá (planta). É como se os itens fossem essenciais para se celebrar Baobá. Aqui meu problema com a letra é que por mais que os itens afro escondam, acaba se criando um efeito lista. São várias coisas citadas num ritmo de ponto-chave sem uma conexão bem amarrada (-0,1 letra). Na segunda estrofe, o samba tenta “abrasileirar” o enredo.”Saluba mamãe // fiz do meu samba corimba // Mata minha sede de axé // Faz do meu igi ose moringa”. O início é uma saudação a Nanã, orixá feminino importante na construção do homem na terra, logo depois, há menção do samba como um elemento presente nos rituais da umbanda e cita a base do Baobá (igi osé) na moringa (árvore que também é uma planta medicinal). Aqui, por mais que a tentativa seja de unir os elementos — a citação ao samba é uma ideia nesse conceito — de Portela e Baobá, é tudo muito confuso. Afinal, a lista anterior não faz referência conectiva com esse trecho (-0,1 letra). Na transição para o Brasil e para Madureira/Oswaldo Cruz, o samba cria os versos “Quem tenta acorrentar o sentimento // Esquece que ser livre é fundamento // Matiz suburbano, herança de preto // Coragem no medo // Meu povo é resistência // feito um nó na madeira do cajado de Oxalá // Força africana, vem nos orgulhar” que apresenta o trecho mais político do tema onde a resistência do Baobá se mistura com a resistência africana e, consequentemente, da Portela. O ponto aqui é mais melódico. As frases são pensadas com efeito de alta/baixa, mas isso é potencializado de um jeito que torna o canto difícil. Por exemplo, o tom é muito alto em QUEM TENTA, ESQUECE, CORAGEM e muito baixo em trechos como SENTIMENTO, FUNDAMENTO e PRETO. Dá pra considerar que é uma variação melódica, mas como isso dificulta o canto para quem vai repetir isso na avenida, é um erro de construção de desenho. (-0,1 melodia). No refrão principal, a opção é por um trecho swingado melodicamente — até por ser longo — , mas pobre, muito pobre em letra. A começar pelo primeiro verso com “Azul e BANTO, aguerê e alujá”. O banto ganha trocadilho com branco por se tratar de uma referência ao grande conjunto de línguas do grupo nigero-congolês e é seguido por aguerê (toque de atabaques para a dança do orixá) e alujá (a dança executada pelos iaôs em transe). Só que com todo respeito do mundo, azul e banto não dá. Não tem justificativa. (-0,1 letra). Na sequência, surge “Pra poeira levantar // De crioula é meu tambor // Iluayê na ginga do meu lugar // Portela é Baobá // No gongá do meu amor” que, novamente, cria a correlação juntando a ideia de que a Portela é um baobá fazendo, inclusive, menção a IluAyê — histórico samba de 1972 — que foi o último tema afro da agremiação. O problema é que percebam as rimas: Levantar/tambor/lugar/Baobá/amor. Quatro com finalização em ar ou or. Muito, mas muito pobre (-0,1 letra). Em geral, como já mencionado anteriormente, a sensação é de que a Portela tem um samba bem abaixo do que se acostumou a levar e que, sem dúvida alguma, ainda não trouxe tudo o que esse enredo poderia explorar, especialmente em termos de contextualização histórica. Nota: 9,3 Letra: 4,5 Melodia: 4,8 8 - VILA ISABEL - Homenageando Martinho da Vila, a Unidos de Vila Isabel presta reverência a um dos principais nomes em todos os tempos. Com extensa trajetória dentro da agremiação, o artista é uma bandeira histórica da azul-e-branco dentro e fora do mundo carnavalesco. A Unidos de Vila Isabel traz, enfim, o enredo mais aguardado de sua história. Martinho da Vila,
de inestimáveis serviços prestados para a
agremiação do Boulevard, será, enfim, o tema da
azul-e-branco na Sapucaí. Trazendo uma temática que
mistura as muitas versões do artista, o carnavalesco Édson Pereira tenta
ir além de apenas contar sua relação como
enredista e compositor, trazendo também o lado
político-social e, claro, a família e seus gostos como a
própria mesa de bar. Tudo
isso é exibido de um jeito que só a escola do
coração do mestre poderia fazer e com um samba que tinha
que ser feito por quem fez.
Melodia: 5,0De autoria de André Diniz, Evandro Bocão, Dudu Nobre, Professor Wladimir, Marcelo Valença, Leno Dias e Mauro Speranza, a obra transcende o concurso interno ou até mesmo o desfile em si e vai além. Toca o coração por ter verdade. Ter sentimento de fã pra ídolo. Ter carinho pelo Martinho e, principalmente, pela Vila Isabel. Uma coisa que me chama especial atenção nesse samba, além do conceito inovador de narrar vários Martinhos dentro de uma mesma figura que se entrelaça, é que a melodia dele é especialíssima. Praticamente montada para te trazer o aroma do bairro, da mesa de bar, da rua 28 de Setembro, sede da escola, e do próprio homenageado. É como se você entrasse num ambiente a parte da Sapucaí, enxergando apenas esse universo peculiar. Sem mais delongas, vamos tentar entender essa construção. A cabeça já começa com “Ferreira, chega aí // Abre logo uma gelada, vem curtir // A avenida engalanada // Nossa gente emocionada vai reluzir” que conclama Martinho. O homenageado com seu cervejinha vai curtir a Vila Isabel com a avenida brilhando reluzindo sua gente emocionada. Na sequência, surge as brincadeiras com seus sambas para a Vila Isabel. “Os sonhos de iaiá // Suas glorias e cirandas, resgatar // Não acaba quarta-feira, a saideira // Nem o meu laiaraiá” que faz referência a seis grandes sambas de sua autoria. Carnaval das Ilusões (1967) — ciranda, Iaiá do Cais Dourado (1969) — iaiá, Glórias Gaúchas (1970) — glórias, Gbala (1993) — resgatar, Pra Tudo Se Acabar Na Quarta-feira (1984) — não acaba quarta-feira e Sonho de um Sonho (1980) — Os sonhos. Além disso, ainda há uma referência a música Pagode da Saideira, também sua composição encaixada ali. É tudo tão perfeito e tão bem amarrado que impressiona. Repare: Martinho é convidado com sua gelada. A Vila emocionada reluz na avenida que brilha e canta que o sonho, a glória e a ciranda serão resgatados. Afinal, não acaba quarta-feira (de cinzas), a saideira e o laiaraiá do partido alto. É perfeito. É intuitivo e resume com alto poder de síntese. A estrofe ainda apresenta “Raízes da roça para os pretos forros // Tanto talento não guarda segredo // O dono do palco, o Zumbi lá do morro // Pela 28, chinelo de dedo // Se a paz em Angola lhe pede socorro // Filho de Teresa, encara sem medo” que expõe características de Martinho ao longo da vida. É importante explicar que o “Raízes” além de ser referir ao mestre no campo e na roça na serra dos Pretos Forros, também é uma dupla referência ao enredo da Vila em 1987 também feito por ele fechando aquela ideia de construção já mencionada. Depois, o samba traduz a ideia de que o filho de Teresa tem um talento que não guarda segredo — Anália, sua primeira mulher, interpretava suas músicas. Certo dia, um produtor pediu uma fita com as músicas e nela estava a voz de Martinho. Não deu outra, sucesso imediato fazendo que um talento desse porte não pudesse ficar escondido — , é o dono do palco (cantor e compositor), o Zumbi (referência negra) do Morro dos Macacos (favela ao redor da Vila) que anda de chinelo pela avenida 28 de Setembro e que não hesita em aceitar o pedido para se apresentar numa Angola em guerra pedindo socorro. Não podia ser mais didático. O refrão central manifesta uma ideia que é a única que eu discordo da execução. Os versos “Seguiu escola do Pai Arraia // Reforma agrária e festa no arraiá // Em cada verso, mais uma obra-prima // Ousar, mudar e fazer sem rima (Só você pra fazer sem rima)” são ótimos, mas tem um problema de encaixe. Aqui o enredo recorda o Martinho político. Perceba: Primeiro foi o convite, depois a história na Vila Isabel, na sequência, seus gostos e trejeitos, agora o a versão política que se enlaça — também — com a escola. O seguiu escola do Pai Arraia é uma referência ao desfile de 2016 quando ele fez o enredo e compôs o samba que homenageou Miguel Arraes. Só que essa ideia é quebrada pelo Reforma Agrária e Festa no Arraiá. Note: Martinho seguiu escolas do Pai Arraia, Reforma Agrária e Festa no Arraiá. A ideia é trazer três referências de dois desfiles diferentes que contaram com a presença do griô, mas isso ficou sem união. (-0,1 letra). Essa falha, inclusive, é uma pena por dois fatores: 1) Quebrar uma letra fantástica. 2) Ser de fácil ajuste. Era só deixar “Pediu escolas do Pai Arraia, Reforma Agrária EM festa do Arraiá”. Cabia na melodia e deixava tudo ajustado. O trecho é finalizado com “Em cada verso, mais uma obra-prima” e “ousar, mudar e fazer rima” que enfatizado por “só você para fazer sem rima” na repetição. Em Raízes, 1987, Martinho compôs um samba que não tinha rimas. A explicação para a decisão foi de que ouviu uma vez de que samba-enredo era fácil de ser feito pois era necessário apenas rimar. Gênio que é, resolveu mostrar que era difícil e compôs SEM RIMA. A segunda estrofe ainda resvala nas posições políticas (sim!) e artísticas do gênio. O início com “Profeta, poeta, mestre dos mestres // África em prece, o griô, a referência // O senhor da sapiência, escritor da consciência” traz a ideia de que Martinho previu pautas como o racismo e feminismo através da sua poesia e é festejado com adjetivos fortes como mestre dos mestres, griô e referência, além de ser mencionado de forma sublime sua cadeira na Academia Carioca de Letras através do “escritor da consciência”. Outra característica desse pedaço é a ideia de formação de trincas (sapiência, referência, consciência) tanto em ideias quanto em rimas, algo que o homenageado sempre usou na hora de compor. No fim, o samba expõe o Martinho no jeito de ser e sua família com algumas referências fantásticas. Através dos “E a cadência de andar, de viver e sambar // Tão bom cantarolar porque o mundo renasceu // Me abraçar com esse povo todo seu // Eu vou junto da família // Do Pinduca à alegria pra brindar // Modéstia à parte, o Martinho é da Vila”, o samba fecha a ideia de como ele se comporta de um jeito único e ainda festeja o fim da pandemia com o renascimento do mundo. Tudo isso ainda ganha o molho especial do convite a família (Pinduca e Alegria são o codinomes internos da família Ferreira para os filhos mais velho e mais nova do griô) para festejar que, modéstia à parte — referência a Noel, também cantado nos versos do gênio — , ele é da Vila. Não tem como não berrar esse trecho. Até por conta da construção melódica explosiva, ele é quase berrado do peito pra fora. Um encerramento apoteótico que chega pulsando no excelente refrão. O refrão, inclusive, fecha a obra com “Partideiro, partideiro ó // Nossa Vila Isabel brilha mais do que o sol // Canta negro rei, deixa a tristeza pra lá // Canta forte minha Vila, a vida vai melhorar (A vida vai melhorar)” com três referências claríssimas sobre a obra do gênio. Em 1972, em “Onde o Brasil Aprendeu a Liberdade”, Martinho trouxe um refrão com “Cirandeiro // Cirandeiro, Ó // A pedra do seu anel // Brilha mais do que o sol” que serve de inspiração para o “partideiro” de agora. Já em 2012, no enredo sobre Angola, foi festejado pela Vila como o “negro rei Martinho” no enredo e no samba. E, claro, “Canta, canta, minha gente” um dos seus maiores sucessos é celebrada através do “Canta negro rei”, do “Canta forte minha Vila” e do “A vida vai melhorar”. É tão fácil que encanta pela simplicidade e pela genuína força natural que provoca. Por tudo que o samba tem de sacadas, de interpretações fáceis e, claro, por demonstrar saídas que só alguém que ama Martinho e a Vila Isabel poderia trazer, já merecia estar entre os melhores do ano. Tendo a beleza poética e uma melodia irretocável isso só aumenta o patamar da obra que tem tudo para ser uma das melhores da Sapucaí em 2022. Nota: 9,9 Letra: 4,9 9 - UNIDOS DA TIJUCA
- Para
contar a história do Guaraná, a Unidos da Tijuca, sob
novo comando artístico, traz a lenda que envolve o fruto e a
formação do povo Sateré-Mawé que resiste e
reexiste ao longo do tempo.
Estreando Jack Vasconcelos como carnavalesco, a Unidos da Tijuca apresenta a história indígena que conta a formação do povo Sateré-Mawé e a lenda do Guaraná como fruto vermelho que existe e resiste ao longo da história. Com uma narrativa remodelada, o enredo — Guaraná — que parecia desinteressante ganhou um novo viés e acabou por atrair atenções de todos os sambistas pela excelente trilha que embalará o próximo desfile da agremiação do Borel. A composição assinada por Anderson Benson, Eduardo Medrado e Kléber Rodrigues mergulha numa espécie de mar doce para interpretar um enredo doloroso, cheio de vinganças e traições. E, para isso, aproveita-se de um viés quase declamatório da história. Para começo de conversa, é importante explicar que o tema conta uma lenda que diz que Tupana, criador das coisas boas do mundo, reinava no alto do céu na forma de sol. Já Yurupari, a lua, regia as más na escuridão. O equilíbrio só era possível através de Monã que servia como mediadora da energia cósmica no universo. O início do samba retrata isso de uma forma muito peculiar. Toda essa explicação ganha a síntese “Alto céu // De Tupana e Yutupari // Duas forças que vão fluir // A energia de monã // Que equilibra o bem e o mal”. Paralelamente, a lenda também conta que em uma floresta encantada e abundnte, três irmãos Yucumã, Ukumã’wató e Anhyã-Muasawê viviam bem e felizes num lugar onde até as pedras falam. Esse pedaço no samba ganha os versos “Um lugar onde as pedras podiam falar // Onde irmãos desfrutavam // A beleza singular”. Repare como o samba até aqui é uma interpretação leve — quase infantil — do que a lenda nos traz. Sempre com um poder de síntese claro e com rimas ricas com Yutupari/fluir e falar/singular. Mas a lenda ainda diz que a Anhyã, a guardiã, era bela e habilidosa atraindo atenção dos animais que viviam na floresta e gerando ciúme dos irmãos. Um dia, uma cobra, tomada de amor por ela, tocou em seu pé e a fez engravidar. Inflados pelo ódio instaurado por Yurupari (lua), os irmãos expulsaram Anhyã da aldeia e a proibiram de voltar. Tudo isso é resumido em dois versos irretocáveis: “Anhyã, bela e habilidosa // Mas a cobra ardilosa usa a flor pra lhe tocar”. Repare: O início da lenda, o retrato do lugar e a gravidez estão todos na primeira estrofe e mesmo sem o detalhamento que a sinopse e a lenda em si traz ficam claros para quem está ouvindo. É tão raro que a gente fica até surpreso. A história segue dizendo que após a expulsão, Anhyã vai dar a luz a Kahu’ê, o curumim mais bonito e alegre. Prodígio e tagarela, saltou os olhos assim que ouviu falar do paraíso que dava frutas e animais perto dali. Sem saber que sua mãe de lá tinha sido expulsa, foi saciar sua fome nessas bandas. Quando seus tios souberam do fato invocaram Yurupari (lua) que se transformou em serpente e tirou a vida da criança. Tudo parecia perdido. Mas quando os raios de Tupana (Sol) tocaram o chão, Anhyã, ainda triste, resolveu levar seu filhos as margens do rio para enterrar os olhos do curumim e regar com suas lágrimas. Nos olhos de Kahu’ê surgiram dois fritos; O da esquerda deu um falso Guaraná. O da direita, o verdadeiro Guaraná que fez florescer um pássaro que dava origem ao primeiro mawê que, mais tarde, geraria a nação Sateré-Mawé. No samba, tudo isso é tratado de uma forma mais didática e doce. O falso refrão central faz referência primeiro a morte e depois ao ressurgimento de Kahu’ê nos versos: “E nasce Kahu’ê o curumim // De olhos alegres… sempre assim // Presença tão breve // A ingenuidade sucumbe à maldade // Renasce Kahu’ê o Curumim // Seus olhos alegres não têm fim // Pois o bem é maior, vai reexistir”. Ou seja, o curumim nasceu com seus olhos alegres, mas sua presença foi breve, já que sua inocência sucumbiu, mas ele renasce através de seus olhos que regados por sua mãe fizeram que o bem seja maior e reexista. É simples, é direto e é bonito! A sequência na segunda estrofe ainda traz “Vida ligeira, passageira // Plantada no solo da pura emoção // De pele vermelha, os frutos de uma nação // Vida inocente, vira semente // E ao som de uma ave a cantar // Floresce imponente o povo do guaraná” que traduz o significado da passagem de Kahu’ê mesmo ligeira, plantada no solo, vira frutos que dão no povo do Guaraná. Aqui, apesar da repetição do vida em duas ocasiões, algo que poderia servir como ponto passível de punição, a ideia de oposição (vida ligeira, passageira — morte // vida inocente, vira semente — renascimento) traz uma execução interessante sem causar a sensação de “girar em círculos” tão feroz em outros sambas. Fechando a história, a lenda ainda traz que Yurupari, ainda inquieto com a restauração do bem naquelas bandas, luta de todas as formas para impedir a paz. Assim sendo, surge o momento político do enredo que cita colonizadores, missionários religiosos enviados às aldeias, caçadores, garimpeiros e madeireiros ilegais, grileiros de terras que destroem terras indígenas. É um recado claro para o alto comando da nação. Apesar da aura pesada, é iluminado por versos que sempre me emocionam quando executados. “E se a cobiça e o fogo chegarem na aldeia // Deixa a força mawê resurgir // E sorrir quando o sol reluzir // Nesse dia eles vão temer // E o amor vai vencer”. Ou seja, mesmo com esses destruidores chegando na aldeia, não tem problema, quando o sol (Tupana) reluzir, o amor vai vencer e a força Mawê (do povo vermelho) vai ressurgir. É tudo o que já aconteceu uma vez e sempre acontecerá perante a lenda. É perfeito! Coisa de craque! O refrão principal faz o encerramento propondo a ideia de que o ciclo de renovação é constante e é proporcionado pela bebida (Guaraná) vinda do fruto vermelho, além, claro, de fazer uma espécie de defesa final do “Dono da Terra”. Através de “Erê, essa mata é sua // Erê, vem provar doce mel // Waranã da Tijuca // Vem brincar no Borel” a ideia é evidente. Erê, a criança indígena que se renova dentro da aldeia, terá a mata pois é sua, provará o doce mel (guaraná) e brincará como o fruto inocente que é. Simples. Fácil. Direto. Perfeito. Em linhas gerais, é um samba claro, de evidentes referências que faz um passeio sublime por uma lenda densa e cheia de nuances. É uma obra tão fantástica que não merece ressalvas obtendo, com louvor, a nota máxima. Nota: 10,0 Letra: 5,0 Melodia: 5,0 10 - SÃO CLEMENTE - A São Clemente é uma das duas escolas do Rio de Janeiro no Grupo Especial que mudaram de enredo nesse ano pandêmico. Ao abrir mão de Ubuntu, a escola de Botafogo resolveu apostar numa homenagem a Paulo Gustavo, artista do gênero da comédia morto pela Covid-19 em Maio deste ano. Com o novo tema e com a estreia do carnavalesco Thiago Martins, a irreverente agremiação da Zona Sul busca reverenciar um dos maiores gênios de sua geração sem esquecer-se de seu lado crítico e sarcástico característico de sua história. A São Clemente, originalmente, levaria para a avenida o enredo Ubuntu que dialogaria sobre a humanidade e o bem-estar coletivo. Com o avanço do tempo e a preparação estendida, as coisas mudaram. A morte de Paulo Gustavo, humorista conhecido em todo o país, em virtude de complicações da Covid-19 no último mês de Maio, fez com que a aurinegra considerasse uma homenagem ao artista mais adequada para seu projeto de desfile. A troca fez com que reestabelece-se o modelo de temática mais irreverente, o que, por si só, já é uma tradição na escola de Botafogo. O resultado da composição que embalará o desfile é divertido e tem toques emocionais, mas ainda fica devendo em alguns pontos, principalmente na questão poética. Uma coisa muito importante (e legal!) da obra assinada por Cláudio Filé, James Bernardes, Arlindinho Neto, Braguinha, Colaço, Marcus Lopes, Caio Tinguinha, Danilo Gustavinho, Kaike Vinícius e Igor Leal é a narrativa através do olhar de Dona Déa, mãe de Paulo Gustavo. A partir dessa ideia, não há, como em outros sambas, problemas temporais ou de conexão, resolvendo, desse modo, questões que observamos em sambas anteriores. O início já dá um tom emocionante com “O céu me sorriu (Paulo Gustavo) // a irreverência me chamou (São Clemente), eu vou // Imortal é nossa relação // a benção lhe dou, num gestor de amor”, o problema é depois disso surge “Pra você vestir // Preto e amarelo e sorrir // Atuar com Otelo e Dercy // Pra plateia vibrar, gargalhar, delirar” que além de soar meio estranho na história por coisas que veremos depois, ainda tem várias rimas pobres; Vestir, sorrir, Dercy e vibrar, gargalhar, delirar. Esse trecho é tão redundante que a expressão sorrir ou sorriu acaba aparecendo duas vezes em seis versos. São dois erros em pouco tempo. (-0,1 letra). O fim da estrofe, por sua vez, já traz um contato maior das obras de Paulo Gustavo. “Na próxima cena, no primeiro plano // Nem só Marcelina, nem só Juliano // Milhões de herdeiros // Anunciando a mãe de todo brasileiro”. Isso é bacana por duas coisas: 1) Já traz conexões com a principal realização da carreira do homenageado (Minha mãe é uma peça — Marcelina e Juliano) e 2) O último verso “anunciando a mãe de todo brasileiro” complementando “milhões de herdeiros” é muito bem bolado pelo fato do artista ter criado o filme baseado na mãe que narra o samba. Ou seja, a escola vai anunciar o que ela tá narrando. Baita! No refrão de meio, a composição ganha um momento diferente em termos de melodia. Se antes, vinha num tom mais baixo, quase que declamado, explode ali. “Dona Hermínia mandou avisar que pode // Sambar na avenida e dizer no pé // Mulher com mulher, tudo bem // Homem com homem também // O negócio é amar alguém” é de uma simplicidade cativante que chama atenção a cada audição. Só tem uma ressalva que é o segundo verso; “Sambar na avenida e dizer no pé” é tão pobre e tão mal encaixado na melodia que num trecho tão gostoso chama atenção negativamente (-0,1 melodia). A segunda estrofe já causou mais polêmica pelos trocadilhos. Pessoalmente, não acho que “DeThales” ou “Idea” incomodam, mas entendo as ressalvas. Meu ponto é mais como o tema acabou sendo um pouco desperdiçado. O início é “De”Thales”, o amor venceu // O sentimento mais fiel // Semente que gerou Romeu // Semente que gerou Gael”. Nessa fase, o foco chega na parte pessoal da vida do humorista. Casado com Thales Bretas teve dois filhos: Romeu e Gael. Mas aí entra um ponto: Qual é a justificativa do sentimento mais fiel? Se o amor venceu, o sentimento já é fiel, certo? E por qual motivo tem dupla citação para o Semente que gerou? Não era melhor resumir tudo num verso só e explorar mais pontos? É ruim (-0,1 letra). A sequência tem algumas coisas interessantes como “Exemplo de atitude pra uma nova geração // corrente de amizade sempre em alta tensão // vai que cola esse meu despedaçado coração” que fala da vida pessoal (Paulo foi um importante homem homossexual na mídia e que acabou ajudando no diálogo sobre a homossexualidade em famílias Brasil afora) e traz paralelos interessantes dos programas que Paulo Gustavo produziu (220V = Corrente de alegria/alta tensão e Vai que Cola). O problema é que a ênfase “Ah coração!!!” não consegue se conectar com o que vem a seguir nos versos “Sou eu a primeira platéia // Divina “idea”, dei luz ao seu brilho // A nossa vida é uma peça // Graças a você meu filho”. Fica ali solto e sem necessidade. (-0,1 letra). No refrão principal, Dona Déa exalta a São Clemente. Nos versos “São Clementes (trocadilho bacana aqui!), aqueles que amam, que cuidam, que sentem // Mostrando a cara da nossa gente”, a ideia é exaltar a homenagem da escola para o artista. É como se a São Clemente cuidasse, sentisse e amasse tanto Paulo Gustavo que o utilizava para mostrar o riso e o humor de todos nós. O ponto só é a repetição do que/que/que. Se ficasse apenas São Clementes aqueles que amam, cuidam e sentem, ficaria melhor embalado (-0,1 letra). Os últimos versos são um lema de Paulo Gustavo “rir é resistir, seguir em frente” e a exaltação do artista no “Paulo Gustavo pra sempre”. A questão é que parece faltar melodia nesse pedaço final. Talvez só fosse uma única palavra (presente) ficasse mais adequado para o canto (-0,1 melodia). De todo modo, é um samba gostoso que te transmite uma sensação de emoção, alegria e reverência na medida certa para o homenageado. Se fosse melhor trabalhado poeticamente, tinha tudo para estar entre os melhores do ano. Nota: 9,4 Letra: 4,6 Melodia: 4,8 11 - TUIUTI - O Paraíso do Tuiuti já tinha enredo, mas mudou. A nova escolha passa por uma exaltação da raça negra. Contando a história de luta, sabedoria e resistência do povo negro ao longo da existência da humanidade, Paulo Barros assina um enredo autoral — o primeiro de origem africana em sua carreira — em sua reestreia na agremiação de São Cristóvão. A chegada de Paulo Barros no Paraíso do Tuiuti atraiu atenções por si só. Primeiro por se tratar de um dos carnavalescos mais consagrados do Grupo Especial, segundo por conta de seu estilo mais lúdico numa agremiação que nos últimos anos, passou a debater temas de grande interesse popular através de histórias interessantíssimas como o enredo de 2019 que falava do bode ioiô, mas dialogava em cima de assuntos além da linha adotada no desfile em si. Originalmente, Paulo impôs seu estilo com “Soltando os Bichos” que falaria sobre a causa animal e a necessidade de defesa para a construção de um mundo melhor, mas após muito tempo de preparação, o enredo foi deixado de lado e surgiu algo “mais” Tuiuti dos últimos anos. “Ka ríba tí ÿe — Que nossos caminhos se abram”, além de se integrar na linha adotada pela agremiação também consegue, mesmo bebendo de várias fontes, trazer um olhar diferente da luta do negro na sociedade. O samba escolhido de autoria de Moacyr Luz, Cláudio Russo, Aníbal, Chico Alves, Píer, Júlio Alves e Alessandro Falcão venceu a disputa interna que teve apenas três participações e conseguiu entregar uma composição de qualidade, mantendo o bom nível da discografia da escola de São Cristóvão. A proposta da letra não é criar nenhuma novidade narrativa, mas construir um cenário onde tudo se encaixe com precisão e crie empatia com o ouvinte e, nisso, ele vai bem. A primeira estrofe apresenta a narração de um negro que vai encontrando os seus caminhos. Primeiramente, ele conversa com os orixás. Nos versos “Olodumarê mandou // Oxalá me conduzir pelo céu da liberdade // Me falou Orunmilá // Vai meu filho semear pelo mundo a humanidade // Nos caminhos de Exu // Me perdendo encontrei nua e crua essa verdade // Que a raiz do preconceito // Nasce do olhar estreito da cruel desigualdade”, ele apresenta essa espécie de diálogo. O negro através de Olodumarê, Deus Supremo, segue o caminho conduzido por Oxalá, pai de todos os orixás. Depois após o conselheiro do orixá conhecedor do destino das pessoas, ele semeia a humanidade no caminho de Exu, guardião dos caminhos, que apresenta a verdade dos fatos e a raiz da desigualdade através da própria sociedade. O único senão desse pedaço é a questão melódica. São quatro versos em rimas que terminam em ade. Liberdade, humanidade, verdade, desigualdade. A sensação é de que são quatro versos que acabam com o mesmo tom, a mesma célula e não trazem variação ali. (-0,1 melodia). A seguir, a estrofe fecha com um tom de lamento muito interessante através de “Sou Alabê gungunando o tambor // Trago cantos de dor, de guerra e de paz // Pra ver secar todo pranto nagô // E gritar por direitos iguais // Meu sangue negro que escorre no jornal // Inundou um oceano até a pedra do sal”. Aqui, os tambores que tocam de Alabê trazendo a dor, a guerra e a paz do povo preto, mas sem esquecer que é preciso secar o pranto para gritar por direitos iguais, afinal, o sangue escorreu pelo oceano até a chegada na pedra do sol. Essa última frase, inclusive, faz referência ao processo escravatório onde muitos navios negreiros desembarcavam no Brasil e seus integrantes eram comercializados nos mercados localizados na então Pedra da Prainha, atualmente Pedra do Sal. O refrão central é brilhante por uma rara felicidade de acerto em letra e melodia. Abrindo um novo momento do enredo com “Êh Dandara! // A espada e a palavra eh! // Não vai ser escrava // Hei de ver noutras negras minas // Um baobá malê que nasceu do chão // Pra vencer a opressão com a força da melanina”, o samba cita Dandara dos Palmares, esposa de Zumbi, que não aceitou a escravidão como destino. Nesse sentido, a letra brinca muito bem com isso. O início conclama ela e a luta através da espada (guerra) e da palavra (mobilização) para confirmar que ela não seria escrava e sua força iria se espalhar em outras mulheres negras. É lindo. E ainda tem a brilhante sacada do Êh, eh, Hei. Coisa de craque! Os últimos versos falam da sabedoria negra através das cantigas que cultuam pedido de paz e igualdade na luta contra a opressão. Na segunda estrofe, o samba tem uma ligeira queda no começo. “Negro é cultura e saber // Ka ri ba ti yê caminhos de sol” são dois versos tão pobres que contrastam muito fortemente com tudo que tá sendo apresentado. A qualidade da letra é tão grande em toda a composição que esse trecho chama a atenção negativamente (-0,1 letra). A seguir, surge os artistas negros com belas citações “Onde Mercedes e Stellas // Por becos e vielas se fazem farol // Pra iluminar alafins // E morrer só de rir feito mil Benjamins”. Artistas negros como Mercedes Baptista, consagrada no teatro e Mãe Stella, doutora e escritora, são luz entre tantos becos e vielas para iluminar futuros soberanos (Alafins, na cultura iorubá significa soberano) e fazer o riso como Benjamin, primeiro palhaço negro do Brasil. Lindo, didático e fácil de entender. Esse trecho é finalizado com uma saída já vista no samba da Beija-Flor. De um bis, sem bis. “E cantar! Cantar! Cantar!… // A beleza retinta que veio de lá // E cantar! Cantar! Cantar!… // Pra saudar o meu orixá” que fecha o trecho com precisão traduzindo bem o significado da proposta. Cantar para saudar a beleza retinta e também cantar o orixá. Maravilhoso! O refrão principal finaliza a história com a continuação da construção anterior através dos versos “Ogunhiê! Okê Arô! // Laroyê! Meu pai kaô // Tem sangue nobre de Mandela e de Zumbi // Nas veias do povo preto do meu Tuiuti”, mas de modo invertido. Se o orixá aparece na segunda, nesse ponto, ele já abre o pedaço com duas saudações. Já a beleza retinta que veio de lá surge “tem sangue nobre de Mandela e de Zumbi nas veias do povo preto do meu Tuiuti”. Sem sobressaltos e com força melódica, o encerramento é extremamente feliz e consegue traduzir o sentimento de uma trilha que mesmo sem inovar consegue encantar com sua precisão. Nota: 9,8 Letra: 4,9 Melodia: 4,9 12 - IMPERATRIZ - De volta ao Grupo Especial, a Imperatriz Leopoldinense presta uma homenagem ao carnavalesco Arlindo Rodrigues, responsável pelos dois primeiros títulos da agremiação na elite da folia do Rio de Janeiro. O artista completaria, se vivo, noventa anos em 2021. Na visão da carnavalesca Rosa Magalhães, voltando para a Imperatriz após onze anos, o enredo também presta uma reverência a Dalva de Oliveira e Lamartine Babo, dois músicos que foram apresentados em trabalhos do grande homenageado. Voltando ao Grupo Especial, a Imperatriz Leopoldinense traz a carnavalesca Rosa Magalhães, consagrada na agremiação com cinco campeonatos entre 1994 e 2001, para uma aguardada homenagem a Arlindo Rodrigues.
A somatória Arlindo, Rosa e Imperatriz já daria
emoção por si só, mas ainda teve a
adição da partida de Luiz Pacheco Drummond,
histórico patrono da verde-e-branco, que sofreu um AVC em 2020. Tudo
isso gerou um enredo que, além de esperado, ficou extremamente
importante para a reconstrução da imagem gresilense.
Nesse sentido, a composição assinada por um único
autor — Gabriel Mello — que é, também, um
torcedor da escola deixa tudo mais carregado.
Melodia: 4,9O samba em si, claro, segue essa linha quase apelativa. Narrado por Arlindo para a Imperatriz, a letra traz uma espécie de declaração de amor com trechos inspirados que tocam, sobretudo, o torcedor que vive a paixão pela Imperatriz. O início já destaca claramente o eu-lírico; “Eu ainda era menino // à luz de nobre destino // o dom de tocar corações” e o sentimento para a Imperatriz “E você era menina // suspirando poesia // entre versos e estações” para, em seguida, já mergulhar no avanço temporal com “Quando a mão do grande professor // nosso destino em ouro enfeitou // fui da ribalta à Avenida” que fala do encontro de Fernando Pamplona com Arlindo Rodrigues. O professor (Pamplona) levou o homenageado (Arlindo) então do teatro (ribalta) para o Carnaval (avenida). Tecendo o enlace com a Imperatriz, a obra cita “Você tão linda, foi cenário de amor (Lá lá lá lá lauê)” que faz referência ao Martim Cererê, desfile de 1972 da própria Imperatriz. Na sequência vem um “Fiz da Orquestra da folia // Manequim das fantasias // Que João noutro tempo rasgou”. Esse último verso “João noutro tempo rasgou” faz uma lembrança do desfile de 1989 onde o artista (Joãozinho 30) subverteu a concepção de fantasias ao apresentar mendigos e lixo no primeiro setor da Beija-Flor com fantasias rasgadas, mas, considerando o desenvolvimento e a forma como o samba história enreda o tema, ficou, de certo modo, jogado (-0,1 letra). No refrão central, o samba traz alguns versos bem insólitos, principalmente no cenário dos anos 90 da Imperatriz de intensa rivalidade com Salgueiro (1993 e 1994) e Mocidade (1995 e 1999). O início com “Pega na saia rendada! Pra ver o que eu vi // Espelho da Raça Encarnada… Xica e Zumbi! E descobrir novos Brasis na Identidade” apesar de óbvios registros (Quilombo de Palmares — 1960, Xica da Silva — 1963, Festa para um rei negro — 1971, A Festa do Divino — 1974 e o Descobrimento do Brasil — 1979, enredos de sucesso no Salgueiro e na Mocidade) ainda não escancaravam o que o último verso faria com “Canta Salgueiro ô! Salve a Mocidade” que explodem. Aí entra um ponto interessante: Apesar de bonito e justo por se tratar de um momento importante da carreira do artista, a Imperatriz e sua trajetória lembrada na primeira parte como forma de enlace é deixada de lado (-0,1 letra). Mas se isso acontece no refrão de meio, a segunda entra, literalmente, em tudo que Arlindo significou para o povo de Ramos. Nela, o início faz uma dupla referência com a peça O Arquiteto e o Imperador da Assíria que teve cenografia de Arlindo Rodrigues com seu encontro com Luizinho Pacheco Drummond. Com os versos “Lembro que o Imperador // me levou pra ser rei em sua assíria”, Arlindo quer mencionar que Luizinho o levou para a Imperatriz, mas utilizando a peça como uma dupla imagem para a citação. É bom! Na sequência, vem uma série de citações aos carnavais do artista. “Amanheceu e nós dois // fomos uma só voz no altar da Bahia // Brilhei…no seu palco iluminado // Dancei… Sabiá cantou meu apogeu // Numa derradeira serenata // Sonhei com Dalva e fui morar com Deus”. Bahia fala de 1980, estreia dele, Palco Iluminado é 1981, no bicampeonato que falou de Lamartine Babo. Sabiá cita 1982 e o enredo “Onde canta o Sabiá”. Já a derradeira serenata é o de 1987 quando Arlindo, bem fragilizado com os problemas de saúde, mal conseguiu completar o Carnaval, partindo logo após o desfile. Esse último verso é tão forte que acaba sendo bisado, sendo uma espécie de refrão no meio de duas estrofes. O problema é que melodicamente, essa solução acaba sendo mal ajustada. Com um desenho de saída muito abaixo em tom — ruptura melódica para novo momento — , o samba perde força na estrofe seguinte (-0,1 melodia.). A letra, no entanto, é mais inspirada; “Seu samba nascendo do morro // ecoa no povo e ressoa no céu // Desperto em seus braços de novo // nos mais belos traços da flor no papel”. Aqui, Arlindo diz que a Imperatriz consegue com seu samba levar uma mensagem até ele no céu através de Rosa Magalhães. O verso “nos mais belos traços da flor no papel” é uma bonita homenagem a consagrada carnavalesca. Mas os últimos versos, apesar de lindos, não se conectam com o resto da proposta. Com “Se a saudade é certeza, um dia, a tristeza será cicatriz, eterna seja amada Imperatriz” não fala com o que está sendo construído. Observe: A Imperatriz ressoa o samba no céu através dos traços de Rosa convocando Arlindo. Perfeito. O que saudade, a tristeza e o amor pela Imperatriz trazem nessa mensagem? Nada. É uma pena que isso desabone o melhor trecho da obra (-0,1 letra.). O refrão principal, por sua vez, cumpre seu papel e ainda traz uma pertinente homenagem a Luizinho Pacheco Drummond. Com “Vem me encantar // voltar pro seu lugar // seu manto é meu bem querer // e lá do alto, o pai maior mandou dizer // Quem viveu pra te amar, seguirá com você”, o samba constrói uma mensagem clara de Arlindo convocando a Imperatriz para retornar ao Especial e ainda traz uma mensagem de Luizinho com o lema “Quem viveu pra te amar, seguirá com você”. É simples, mas bonito e fecha um samba que mesmo longe da perfeição estética, deve trazer bons momentos para a escola de Ramos. Nota: 9,6 Letra: 4,7 |
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